Reflexos. (Capítulo 29)

Capítulo 29 : Livros.

Foi a mesma coisa: tudo saindo de foco, girando. A conhecida sensação de calmaria vinha, como se uma injeção de morfina estivesse sendo aplicada, desligando todo o meu sistema, como uma voz doce que convidava a esquecer tudo, a mergulhar num estado inerte, onde nada nunca poderia chegar até mim.

Era uma tentação.

Não, não faça isso. Continue. Era um fiapo de consciência que teimava em manter o sistema ligado.

O único problema é que EU NÃO QUERIA ficar acordada.

Ou será que queria?

Ah, sei lá. Enquanto isso, a fagulha de consciência tomava forma, como uma bolha de sabão que se enche com cuidado pra não estourar, que oscila até atingir a forma esférica, perfeita. E que depois se solta e sobe, impulsionada pelo vento pra fazer alguma coisa importante ou simplesmente desaparecer.

Foi aí que parou. Assim, do nada, exatamente como tinha chegado. Não sei o que tinha acontecido; talvez a vontade de ficar consciente tivesse vencido a força que teimava em me fazer desmaiar. De qualquer jeito, tudo voltou ao normal numa fração de segundo.

Quando entrei de novo na sala, tentava debilmente controlar a distonia e a tremedeira que insistiam em me fazer parecer doente. Andei no modo automático até minha banca, ainda meio desligada, como se estivesse em stand-by ou poupando energia o suficiente pra ligar de uma vez.

Aos poucos,meu cérebro foi voltando a funcionar.E a primeira coisa em que ele pensou foi “você tem alguma ideia do que acabou de fazer?” . Pra falar a verdade, só um pouco.Foi como uma conexão empática, alguma coisa assim,logo depois de eu sentir aquele troço estranho perto do Henrique.

Tinha que chegar em casa.Precisava falar com Gabe, e algo me dizia que ele tinha a (s) resposta (s) pra (s) minha (s) pergunta (s).

Claro que ele estava me esperando.Era uam das partes legais de um anjo da guarda,ele sentia quando eu estava mal ou tinha algum problema.

- O que foi que aconteceu? Sério Alice,se o que você pretendia com aquela tentativa de comunicação era me deixar apavorado,tenho que dizer que você conseguiu com todas as honras – ele passou a mão nos cabelos,tirando-os dos olhos.

-Não precisa ficar assim,eu tô bem – pra comprovar,dei uma volta completa ao redor de mim, pra ele ver que não faltava nem um pedaço

– Em compensação...

-Alguém mais não está – ele completou a minha frase – E,pela sua cara de preocupação,aposto dez pra um que o nome desse alguém começa com “Hen” e acaba com “rique”.

-Nossa,como você está perceptivo hoje – pontuei,um pouco sarcástica – Não adivinhou também os números da sena não?

-Essa parte eu deixo pra você,garota das visões.Mas e então,o que foi que houve? – sentou confortavelmente na minha poltrona,enquanto eu ia pra cadeira do computador.

-Tipo,eu fui falar com ele,e dizer pra ele tomar cuidado com alguma coisa,e ...

-Até que enfim!

-Sim,e aí ele não disse nada – nada de mencionar a expressão de preocupação muito fofa,nah – E,tipo assim do nada,ele me deu um abraço e...

-E aí você derreteu – Gabe piscava os olhos freneticamente,e desviou pra não ser atingido pelo projétil em forma de almofada que eu arremessei exatamente contra o rosto do infeliz, que, mesmo assim, ainda atingiu o objetivo.Sério, devia ter uma lei proibindo os anjos de ficarem tirando onda dos humanos.

-Dá pra parar ou tá difícil????

-Calma,Alice,calma.Eu sei que você fica meio nervosinha quando – ele parou a frase na metade quando eu peguei outra almofada – Ok,ok.

-Mas só uma pergunta,qual o motivo de tanta animação?

-Você preferia que eu estivesse com uma cara de enterro? – a expressão automaticamente mudou e ele ficou cabisbaixo, os olhos de cachorro que caiu da mudança,a boca retorcida num bico de choro.

-Não,não.Só não tô entendendo porque é que tu tá assim,tão feliz, quando tem um troço escuro e do mal perto do Henrique.

-Essa é a parte ruim do negócio – a cara de choro se desmanchou.

-Ah,e por acaso tem ALGUMA parte boa?

-Claro que sim.Não tá notando?É,acho que não.Mas vai,faz uma forcinha pra lembrar o que foi que aconteceu de especial,sim?

-Gabriel meu amor,NÃO ACONTECEU NADA DE ESPECIAL,ENTENDEU OU QUER QUE DESENHE?

-Claro que aconteceu – os olhos azuis brilhavam de tanta empolgação – Não no sentido que você talvez esteja pensando – ele arqueou uma sobrancelha - Mas eu não acredito que você realmente não tenha percebido o que fez hoje.

-Hunnnn.Não.

Você.conseguiu.falar.comigo.a.quilômetros.de.distância.Tem.ideia.do.que. é.isso?

-Isso?Bem,se por “falar” você pressupõe uma tentativa de conexão mais falha do que de rádio no meio de uma serra,bem,eu consegui.

-Sabe,você devia parar de se autodepreciar.Foi legal sim,e claro que ninguém ia conseguir fazer um negócio assim perfeito na primeira vez,certo?

-Se você tá dizendo...

-Você só precisa treinar mais um pouco,e aposto que vai conseguir fazer isso sem gastar a mínima energia.

-Sério que gasta energia pra fazer isso? – ele balançou a cabeça – Ahá,então foi POR ISSO que eu fiquei tonta,certo?

-Também.Aí vem a parte ruim da história.

-Manda logo de uma vez.

-Eu andei pesquisando nesses últimos dias – ele levantou da poltrona, indo até o canto do quarto pegar uns livros gigantes e provavelmente publicados no tempo em que Adão era menino

-Me diz que você passou um pano nesses troços antes de trazer pra cá – ou eu provavelmente passaria a noite inteira espirrando.Maldita alergia à pó.

-Claro que eu passei – ele parecia ofendido – Primeiro,eu tenho amor à minha existência. Segundo,eu tenho amor ao seu nariz.

-Gabe,você é um anjo – não diga,achei que fosse um coelhinho – Mas então,o que é que tem de tão importante nessas coisas aí – encarei os livros com uma cara de asco – Sei lá,não seria mais fácil procurar na internet não?

-De ser,seria sim.Mas aí a gente não ia ter certeza da informação – ele acenou com a cabeça, me chamando pra perto dele – Pode vir sem medo,eles não mordem.

-Hahaha.Muito engraçado.

Ma aproximei devagar,respirando a cada passo,procurando algum vestígio de poeira.

-Relaxa,Alice.Eu passei o aspirador de pó em todos esses livrinhos aí.

-Sééééééério?Gabriel,eu te amo,já disse isso hoje?

-Nem precisa dizer,eu sei que você não vive sem mim.

-Nossa,além de tudo modesto.

-Claro.Agora,tarefinha de hoje:vamos ler esses livrinhos.

-Todos?

-Claro que não,mas a gente tem que terminar tudo isso o quanto antes.

-Afinal de contas,o que tanto tem aqui? – enquanto falava, peguei um livro grosso encadernado em couro marrom, furado aqui e ali. O título fora gravado em letras douradas desenhadas e cheias de floreios.Só entendi uma palavra:daemon (demônio)

-São vários idiomas.Tem em latim,grego,alemão,italiano e...

-E vários outros idiomas que você vai traduzir,certo?

-Claro que sim.A não ser que você seja superdotada e poliglota e não tenha me contado.

-Não,não sou.

-Certo.Vamos começar com esse aqui.

-Só uma pergunta:pra que exatamente eu vou ter que “estudar” isso aí?

-Nós vamos.São listas e informações de demônios,Alice.Se você realmente vai, erm –nenhum de nós dois gostava da parte “descer pro inferno” – Bem,se você realmente vai,é bom ter o máximo de informações. E a gente ainda aproveita pra ver se aquilo que estava perto do Henrique era alguma coisa dessas.

-Certo então – engoli em seco – Bora começar.

Tenho que admitir,foi bem menos chato do que eu pensei que seria.De verdade,era até interessante, tinha um seres lá bem...bem...bem diferentes.

De vez em quando,fazíamos paradas de uns poucos minutos e depois voltávamos.

Estávamos no começo da letra C (o livro era em ordem alfabética) e eu já estava começando a ficar cansada. Era muita informação, eu ficava com medo de perder alguma coisa e no final das contas ela ser a mais importante.Foi no meio de um desses pensamentos que meu celular vibrou,o toque anunciando uma nova mensagem.

-Dois minutos – levantei e fui procurar o celular.

A mensagem dizia algo como “E aí,não vai responder a outra mensagem não?”

Foi aí que eu lembrei da mensagem de mais cedo,aquela totalmente corta-clima.

-Mas quem foi que mandou essas duas mensagens? – Gabe perguntou.

-Rodrigo.