Reflexos. (Capítulo 20)

Capítulo 20 : Afastando-se de todos os outros.

Foi meio que estranho tentar dormir de novo com um garoto no meu quarto.Não um garoto no sentido literal da palavra,mas uma pessoa com...Bem,você entendeu.Mesmo assim,o sono me venceu.

Ultimamente,eu não vinha tendo muitos sonhos.Não que eu estivesse reclamando,claro.Mas eu me sentia tão esgotada que mal caía na cama e dormia um sono extremamente pesado.Se um terremoto acontecesse exatamente lá em casa, provavelmente eu nem acordaria.

Mas aquelas palavra do Gabe me deixaram com medo.Tipo,nem no último lugar de “coisas impossíveis que pretendo fazer antes de morrer” estava algo do tipo descer até o inferno e sair de lá com vida.

O fato é que eu não tinha saída.De qualquer jeito,estaria em perigo.A diferença é que em uma das opções menos gente se machucaria. Indiretamente,é claro.Porque se eu tinha que esconder essas visões estranhas que eu estava tendo praticamente de dois em dois segundos, isso também significava que eu teria que me afastar das pessoas.Ou aprender a controlar tudo aquilo.O que,segundo o Gabe,era muito difícil de fazer.Mas ele também achava que eu não devia ficar isolada do resto do mundo.”Você vai ficar mais suscetível” foi o que ele disse.

Mas como é que eu ia conciliar o fato de que eu tinha que ficar sozinha e ao mesmo tempo não podia fazer isso?Merda,ô vida complicada essa minha.

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Acordei com o despertador tocando.Seis e quinze.Minha vontade de levantar estava num nível negativo,mas fazer o quê?

Parecia que eu tava sozinha no quarto.Bem,acho que até mesmo os anjos se cansam depois de passar horas e horas olhando uma pessoa roncar ( não no sentido literal, porque eu não ronco (ou pelo menos acho que não)) e se virar na cama.Tudo isso sentado numa poltrona pequena para o seu tamanho.Bem,não fui eu que pedi,foi?

Ele apareceu de novo quando eu estava descendo as escadas.Óbvio que eu quase morri de susto, com uma coisa aparecendo do seu lado assim do nada.

-Pelo amor de Deus,vê se não aparece em silêncio assim!

-Desculpa,sério.É que é difícil pra nós fazer algum tipo de barulho.

-Então vê se da próxima vez dá pra pelo menos aparecer no meu campo de vista,e não atrás de mim.

-Tá bom então.

Ele ficou sentado na minha frente enquanto eu tomava café.Quis perguntar se ele queria comer alguma coisa,mas como que lendo meus pensamentos ele balançou a cabeça.Bem,eu não sabia que anjos não comem,certo? O silêncio reinava na cozinha. Não dava certo correr o risco de ficar conversando com ele e a Rita entrar.Imagina a cena,eu batendo altos papos comigo mesma.Sim,porque ela não conseguiria ver o Gabe (e era exatamente por isso que ele ficaria perto de mim o dia todo,sem ninguém perceber)e consequentemente acharia que eu era maluca.Ou esquizofrênica. Resumindo, eu estaria com problemas.

Estávamos praticamente na porta da escola agora.Foi quando ele respirou fundo,duas vezes,fazendo uma careta.Eu continuei andando, até que ele agarrou meu braço e me virou.No meio de um monte de gente,tem noção?Quando ele se deu conta disso,fez um sinal pra eu acompanha-lo.

-Alice,isso é importante.Nos últimos dias,apareceu algum aluno novo na escola?Puxe pela memória.

-Aluno novo?Não,não entrou ninguém desde o começo do ano.Não que eu tenha visto.

-Tem que ter alguém.Sei lá,alguém novo?Um professor,um zelador,alguém?

De repente veio o lapso.A baba dos meninos,a raiva das meninas.

-Entrou,sim.Ontem.A assistente da coordenadora.Foi lá na sala e tudo.

Se fosse possível,ele estava mais branco que o habitual.

-E como ela era?

-Ah,bem,bonita. – era a verdade,oras – Morena,cabelo preto,olho preto...

-Você não olhou nos olhos dela,olhou?

-Hum,não.Acho que não.

-Mas ela chegou a ficar perto de você?

-Perto quanto?

A cada resposta,ele parecia entrar mais ainda num estado de pânico.

-A situação está muito pior do que eu pensei.

-Mas por quê?É ela?

-Sim, – senti um arrepio – o que significa que estamos atrasados.E agora,não vou mais poder ficar muito perto de você.Corremos o risco de ela perceber minha presença e se apressar.É melhor que ela pense que você não sabe de nada.Assim,vai aguardar ordens. Se ela notar que você sabe quem ela é ou o que pretende,não vai esperar.

-E agora?Tipo,você não pode impedir ela de fazer alguma coisa?

-Posso.Mas se ela me notar,vai chamar reforços.E eu não sou páreo pra muitos.

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Meu coração parecia querer sair pela boca.Eu tentava evitar olhar para os lados,pra não parecer desconfiada.Mas a pior parte foi quando eu fui entrar no prédio.Ela estava postada exatamente na passagem,como se estivesse esperando alguém.Melhor,como se estivesse me esperando.

Dei meia-volta.Não tinha cara-de-pau o suficiente pra atravessar ali sozinha,com ela olhando pra mim.Pelo menos,ela não demonstrou ter me visto.

Fiquei dando voltas,esperando

1. Aparecer mais gente pra lotar o corredor,ou

2. Aparecer alguém conhecido,pra eu poder fingir que estava com versando com a pessoas e não ter que passar olhando diretamente na cara dela.

Acabou que a escolhida foi a segunda opção.Provavelmente porque eu já estava cansada de dar voltas e voltas no mesmo lugar,então acabei numa conversa com uma menina que eu conhecia de vista.Ela era até simpática,ao menos o suficiente pra segurar uma conversa com uma pessoa que você mal conhece por um minuto.

Tentei parecer normal,mas eu me sentia completamente estranha.Um ET no meio de pessoas normais.Mesmo assim,falei uma vez ou outra com as meninas.Não podia simplesmente me afastar completamente delas assim do nada,apesar de ser a coisa mais certa a se fazer. Estando perto de mim,elas corriam perigo.

Dei uma desculpa pra sumir na hora do recreio.Disse que ia na biblioteca.Acabei não indo,exatamente porque com certeza teria gente lá,e eu sentia que precisava de um lugar isolado.Senti várias vezes como se estivesse sendo transportada pra outro lugar,como se meu corpo não me obedecesse.Previ outra crise,provavelmente outro desmaio.Tentava me concentrar,pelo menos até chegar a um lugar que não estivesse cheio de gente.

Acabou que eu fui até a mesma área isolada em que eu tinha encontrado com o Henrique alguns dias atrás.A mesma onde eu tinha desmaiado.Acho que eu ia acabar reivindicando aquela área como “exclusiva para desmaios,por favor não atravesse se estiver se sentindo bem”.

Sentei,escorada no banco.Abracei meus joelhos,apoiando a cabeça neles.Pelo menos ali ninguém me veria.Ou assim eu pensei.

Não senti quando eu apaguei.

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Estava no quarto,com Gabe do meu lado.Ele me mandava pensar em coisas,pra depois me chamar ou fazer barulho.Segundo ele,isso servia pra exercitar minha concentração. Não deve ter funcionado muito bem,já que eu parecia estar concentrada em todo e qualquer mínimo barulho que acontecia,menos naquilo em que eu realmente deveria estar pensando.A tarde passou e a noite entrou,e nada.Pra mim,não parecia haver progresso nenhum.

-Calma,Alice.Pra primeira vez,você até foi bem.Isso é mais coisa de prática.Não exija demais de você mesma,ou vai acabar se sobrecarregando e explodindo.

Como se eu já não estivesse a ponto de explodir.Minha cabeça era alvo intermitente de pontadas,como se estivessem enfiando um prego dentro do meu cérebro.Sentia ela latejar,mas não queria demonstrar isso.

Entrei com tudo debaixo do chuveiro.Deixei a água escorrer,tentando não pensar em nada.O que foi praticamente impossível,já que lampejos de fatos e sonhos apareciam nos meus pensamentos sem motivo nenhum.

Um desses lampejos me lembrou que eu tinha um namorado,e que já faziam séculos (olha o exagero) que eu não falava com ele.Tinha dúvidas se eu devia deixar a gente se afastar ou não.Sei lá,era tudo tão confuso.No entanto,sabia que ele seria um dos mais afetados se ficasse perto de mim.Mas a verdade é que eu não queria que ele se afastasse. Sabia que era errado e que estava sendo egoísta,mas que se dane.

Gabe tinha saído.Disse que eu ainda precisava de privacidade,e decidiu ficar no jardim. A noite estava agradável,então não questionei. Realmente queria ficar sozinha e colocar minha cabeça no lugar.Mas antes de qualquer coisa,peguei o telefone e apertei a discagem rápida.

O telefone tocou só uma vez.

-Rodrigo?

-Oi meu amor!Desculpa não ter aparecido hoje,é que eu tive um problema aqui num trabalho,até me esqueci do resto.Sério,não vai acontecer de novo.

Isso aumentou ainda mais o peso na minha consciência.Fez a dor de saber que ele não devia ficar perto e que estava fazendo uma coisa errada ficar pior ainda.Uma lágrima silenciosa escorreu pela minha bochecha.

-Não precisa pedir desculpa,eu também nem te dei notícia.Minha vida tá meio louca agora também.Mas então,quer almoçar comigo amanhã?

Adeus tentativa de afastamento.

-Claro!Eu passo pra te pegar amanhã.

-Fechado então.

-Desculpa,tenho que desligar.Tem ainda umas coisas pra terminar

aqui,não tô nem um pouco afim de madrugar.Se cuida,certo?

-Tá bom.Te amo.

-Eu te amo mais.Dorme com os anjos.

-Beijo.

Um sorriso se formou os meus lábios.Ele se confrontava com os pensamentos na minha cabeça.Não queria deixa-lo.Não podia.Apesar de ter que fazer isso.

Não,não vou.E ponto final

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A noite tinha sido agitada.Eu não tinha conseguido dormir direito,apesar de não ter tido pesadelo nenhum.Agradeci aos céus quando o sol nasceu,me dando uma razão pra levantar da cama.

Como combinado,ele apareceu de manhã pra me levar.Me senti bem,como se o dia tivesse ficado mais azul.Era impressionante como Rodrigo conseguia me fazer sentir bem.como se o mundo realmente fosse lilás (cor-de-rosa é muito clichê,e eu não gosto de rosa) e não tivesse problema nenhum.

Gabe tinha combinado comigo que ficaria nos portões da escola,no caso de alguma necessidade.Portanto,eu estava realmente sozinha.

Foi quando senti alguém segurar o meu braço e dizer:

-Precisamos conversar.