Reflexos. (Capítulo 14)

Capítulo 14:A criação do mundo.

Eu parei de gritar.Coisa de milésimos de segundo.Tipo,não sou bem do tipo que grita quando tem sustos.Pelo contrário,eu não consigo nem abrir a boca,e é como se meus músculos parassem de me responder.Em outras palavras,eu fico paralisada.

Foi mais ou menos o que aconteceu.Eu fiquei como uma estátua, encarando a janela.Sem piscar,sem mover um músculo que fosse.

Não que houvesse alguma coisa ali.Assim que eu vi,os olhos sumiram. Como se fosse um tipo de aviso,que tinha ficado ali apenas o tempo necessário pra eu notar(e ficar completamente sem reação depois)

Ao fundo,eu escutava meu nome.Levei um tempo pra perceber que minha avó estava desesperada,pensando que eu tive um choque ou coisa assim.

-Alice?Pelo amor de Deus,o que aconteceu?Primeiro você grita e depois você para e não responde.

-A..é..que..eu..eu...eu

-Alice,você teve um pesadelo.Horrível,por sinal.Me conta,o que era?

Nunca acreditei em significado de sonhos,nem em nada desse gênero. Minha avó não.Ela dizia que tudo que acontecia tinha um significado, que toda e qualquer coisa que a gente fazia tinha uma consequência, fosse ela boa ou ruim.Que você literalmente recebia tudo aquilo que dava.

Qual era minha opção?Não me sentia nem um pouco tentada a contar o sonho a ela.Tinha a impressão que quanto menos pessoas soubessem dele,melhor seria pra mim.Mas o que eu ia fazer?Ninguém acorda gritando às,hum,três da manhã por um pesadelo besta.Eu sentia que devia resolver tudo aquilo,o que quer que fosse,sozinha.Ao mesmo tempo,me sentia frágil e incapaz de fazer qualquer coisa que fosse a respeito.

Eu estava morrendo de medo.Não sei,parecia mais sensato contar tudo à ela.Afinal,o que é um pressentimento comparado a um fato?

Contei.E,contra todas as minhas expectativas,me sentia melhor a cada sílaba.O mesmo não acontecia com a minha avó.A expressão dela só ficava mais e mais preocupada.

Antes mesmo de eu terminar,ela me abraçou.Não um abraço comum,um abraço meio que desesperado.Como se eu tivesse uma doença terminal ou fosse morrer.Como se ela nunca mais fosse me ver.

-Não acredito,entre tantas e tantas pessoas,não acredito que é você.

-Uh,eu não tô entendendo.O que é que sou eu?

-Alice,lembra uma história que eu contava pra você dormir,alguns anos atrás?Uma que falava da criação do mundo.

-A das metades?

-Essa mesma.

A história era mais ou menos assim:

No começo de tudo,os seres humanos eram perfeitos.Todos viviam no céu.A Terra era um lugar completamente desolado,e o subterrâneo era e reinos dos demônios.Eles viviam das coisas ruim dos mundo.

Terremotos,desabamentos,enxurradas.Destruição.Mas eles se sentiam incompletos,como se alguma coisa faltasse.Foi então que eles perceberam que só se sentiriam saciados com a infelicidade e as catástrofes humanas,as brigas,o ódio,a ira.

Naquela época,isso era uma coisa impensável.Mas,você sabe,demônios são demônios.Eles não confiavam nem em si mesmos.Prejudicavam uns aos outros.Eles eram a personificação de todos os defeitos,imagináveis ou não.Bolaram um "plano maléfico".Ninguém sabe como,conseguiram fazer com que um demônio fosse até o céu.Não sei se você sabe,mas os demônios conseguem influenciar pessoas a fazerem coisas ruins.Eles plantam a semente,a ideia na cabeça da pessoa,mas dependem dela para por em prática.Felizmente (ou não),o livre-arbítrio é a principal característica dos seres humanos.Quanto mais "fraca" for a mente da pessoa,mais forte a influência.O demônio achou uma pessoa de mente fraca.Um homem.A esposa estava grávida.Enquanto eles passeavam, ele teve a impressão de escutar uma voz dentro de si,uma voz suave dizendo que a esposa só trazia problemas.Mostrando como a vida dele seria melhor sem ela.

Sabe,o céu não tem paredes.Foi relativamente fácil para o homem empurrar a mulher,fingir que ela tinha escorregado e caído.

Enquanto caía,ela só viu a imensidão lá embaixo.Pensou que ia morrer. Mas as aves e os animais marinhos se apiedaram dela.As gaivotas juntaram-se,formando uma rede com suas asas,amortecendo a queda dela.Uma tartaruga gigante permitiu que a depositassem no seu casco.

Antes de cair do céu,ela tentou se segurar.Entre seus dedos,ficaram presos grãos de terra,a terra sagrada do céu.Ela depositou os grãos em cima do casco da tartaruga,e fez algumas preces para que eles se multiplicassem.No outro dia de manhã,todo o casco já estava coberto, como uma ilha pequena.Ela fez outras preces,para que a terra a desse alimentos e proteção.

Na terra do céu,as coisas cresciam do nada.Tanto que,naquele dia,de tardezinha,uma árvore já tinha crescido.A mulher retirou alguns galhos e fez uma cabana.Se alimentou dos frutos da planta.

Dias e dias se passaram.O bebê nasceu,uma menina.Todos os dias,mãe e filha faziam suas preces,para que pudessem continuar vivendo naquele pedaço de terra abençoado.

O tempo passava e passava.O bebê virou criança,a criança virou mulher.E,um dia,quando a mulher cuidava da terra apareceu um homem.Ela não fazia a menor ideia de quem ele era,já que só conhecia a mãe como semelhante.Ele passou o dia observando-a.Quando ela se recolheu para ir dormir,ele tirou duas flechas da aljava.Uma era afiada,e a outra era rombuda.Cruzou-as sobre o peito da mulher e sumiu.Nunca mais apareceu.

Meses depois,a mulher descobriu que estava grávida.Ela só não sabia que era de gêmeos.Um era destro,o outro era canhoto.Ainda dentro da barriga,eles brigavam.Disputavam tudo.Quem ficava como,qual comida ia pra quem.Eles disputaram até a hora de nascer.

O irmão destro queria nascer normal,do jeito que todo mundo nasce.O irmão canhoto insistia em fazer diferente.Queria sair por outro lugar.Tentou o umbigo,o nariz,a boca.Sem sucesso.

Acabou que ele saiu pela axila da mão,matando-a.Do lado de fora,o irmão destro reclamou com ele.

-Não disse?Tá vendo o que você fez?Matou a nossa mãe!

Começaram a discutir.Ainda bebês.A avó apartou.

Eles cresceram assim.O irmão destro fazia tudo certo.O irmão canhoto era seu oposto.Eles cresciam e cresciam.E brigavam e brigavam.

Quando viraram homens,decidiram fazer o mundo.Pegaram barro e moldaram as plantas e os animais.O irmão destro fez os animais úteis.O canhoto fez os peçonhentos.O irmão destro fez as terras férteis,o canhoto os desertos.O destro fez as plantas frutíferas,o canhoto fez as venenosas.Depois,descobriu que podia fazer remédios com elas.

E eles continuavam discutindo.

Num dia,decidiram que um deveria desaparecer.Decidiram apostar pra ver quem seria.Mas,tudo que eles tentavam fazer,terminavam empatados.Sempre.

Nessas disputas,conheceram mais a si mesmos e ao outro.E,como disputa final,decidiram que cada um devia dizer seu ponto fraco ao outro,para que pudessem lutar.

O irmão canhoto,que era tronxo,falou a verdade:

-Só o que me mataria é a ponta do chifre do veado-rei.

E o destro,que era correto,mentiu.

-Ah,qualquer pedaço de pau me mata.

Acabou que o irmão destro matou o canhoto.A avó,indignada,lançou uma maldição sobre ele,e ele faleceu pouco depois.Mas não antes de povoar o mundo.

E,até hoje,os humanos tem um pouco dos dois irmãos,o destro e o canhoto.Os demônios,agora com seres imperfeitos para influenciar, fizeram a festa.Sempre havia alguns deles na terra,plantando a infelicidade,fazendo as coisas darem errado.Desde sempre,até a eternidade.

-Mas vó,o que isso tem a ver comigo?

-Você carrega uma benção e uma maldição,Alice.

MLTG
Enviado por MLTG em 05/02/2011
Reeditado em 19/02/2011
Código do texto: T2774589
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