Os Cavaleiros - parte 16

Um vento gelado começou a soprar na direção oposta ao meu caminhar, algumas lembranças afloraram na minha mente. Senti que precisava parar um pouco a subida pelas escadas, então sentei-me alguns degraus antes de chegar a casa zodiacal Aquário.

Comecei a olhar ao meu redor como se procurasse algo que havia perdido. Sentia uma força telepática entrar em contato comigo.

Como se essa força maior me pedisse, relaxei o corpo e comecei lembrar de uma viagem a Sibéria que tinha sido feita há tempos atrás.

Imagens apareciam fluidamente em minha memória. Deixei que ocorresse normalmente.

O céu estava tão azul no pais do gelo que chegava a tingir o vento com sua cor. Lagos isolados refletiam as cores brancas e azuis em seus infinitos tons em sua água gélida.

Toda a natureza dali parecia congelada pelo tempo e acariciada pela brisa gélida.

Calafrios percorriam meu corpo de forma cortante. Trajando roupas de pele e equipamento de camping, eu com certeza não era uma turista comum.

Era como se tudo que eu conhecesse de presente, passado e futuro tivesse se apagado da minha mente ao me deparar com imagens naturais esculpidas pelo frio. Era como se ali só restasse o branco daquela neve e o azul daquele céu.

Foi hipnotizada pela neve que notei uma escultura feita no gelo. A imagem me seguia com o olhar, me chamava para perto para tocá-la. Me aproximei afundando os pés na neve fresca ao seu redor.

Permaneci alguns minutos bem próxima e procurei memorizar cada detalhe dos cabelos esvoaçantes, olhos profundos fitando o extremo norte, lábios sérios, braços delicados, mãos finas, pernas torneadas e pés bem apoiados ao chão. Era a figura esculpida em gelo de um homem trajando uma roupa fascinante que não parecia se deteriorar com o tempo. Seu semblante frio e calculista, sem um traço de sorriso sequer, mas de uma beleza de “congelar quarteirão”, estava me hipnotizando.

Ao tocar a obra de arte senti novamente um gelo na espinha seguido de um calor no estômago. Era uma mistura de opostos quase impossível de acontecer.

Talvez tenha desfalecido por horas, até ser encontrada por aldeões que caçavam nas redondezas. Enquanto eu bebia algo quente, eles me contaram inúmeras histórias daquele homem esculpido no gelo. Ele possuía um nome filosófico, ao qual nunca esqueci: Kamus.

Enquanto eu ouvia lendas locais, minha mente construía a imagem de uma pessoa com altruísmo inalcançável para um humano normal.

Lembrei de um livro que havia lido há algum tempo escrito por um autor chamado Albert Camus, “O Estrangeiro”. As palavras lidas não me saíam da mente ao longo das narrativas.

A obra de Albert Camus surge para tentar contrariar o conceito de que a arte é a manifestação dos sentimentos do ser humano. A inexistência de emoções leva o personagem principal a um vazio interior, causando uma profunda resignação em que lê a historia. É impossível não sentir nada diante da frieza do livro, nem diante daquele ser esculpido.

Criei um mito, uma lenda para um homem que ainda se encontrava vivo, e que eu sequer conhecia.

Tudo que me fazia lembrar gelo, frio e neve me fazia tremer dos pés à cabeça depois das conversas com os moradores daquele local abastado em meio as tundras russas.

Alguns contavam que o homem esculpido no gelo era um guerreiro, outros o comparavam com o Deus do frio absoluto, outros simplesmente o adoravam como mestre.

Eu tinha que concordar que, de fato, ele possuía a pose de um guerreiro iluminado. Mesmo olhando apenas para uma imagem em gelo.

Como era de se esperar, fiquei aficcionada pelas lendas que encobriam aquele homem e seu rosto não abandonou mais minha cabeça.

Eu visitava a escultura todos os dias em que permaneci na Siberia, e em uma das minhas visitas, conheci uma pessoa em especial.

O criador da imagem era chamado de cavaleiro de Cristal. Um homem pacifico, de voz baixa, olhos cortantes e delicadeza quase incomparável.

Ele fez questão de me acompanhar em grande parte das caminhadas pelas tundras e vilas que estavam nas cercanias. Me forneceu muitas informações sobre as pessoas que possuíam o domínio do gelo para defesa, lutas e criações. Cristal era um deles.

Ao sabor do chocolate, do mel que havia bebido e das histórias que tinha ouvido na casa do cavaleiro de Cristal por dias eu me despedi daquela maravilhosa fantasia gélida e parti em busca de outras figurinhas para meu álbum de idéias sobre os cavaleiros.

As lembranças daquele lugar frio, mas extremamente amigo, ficaram em meu coração.

Acordei do meu devaneio quando senti o roçar leve de tecido nas minhas costas.

Virei calmamente o rosto para cima, mas a brisa fria brincava com os nossos cabelos, hora escondendo meu rosto hora escondendo os olhos dele entre os fios que esvoaçavam.

Levantei-me e abri a boca para falar algo, mas ao encontrar seu olhar frio e de um azul profundo nada consegui dizer por alguns segundos.

Pisquei devagar tentando diferenciar realidade e imaginação. Analisei cada centímetro de seu cabelo, corpo e detalhes da armadura que trajava.

Pronunciei vagarosamente enquanto sorri embaraçada:

- Kamus, o cavaleiro de ouro de Aquário.

Que olhar profundo ele ostentava, aquela escultura de fato foi fiel ao molde!

Abaixei a cabeça e permaneci apertando os lábios, enroscada nas palavras que queria dizer. Nisa Benthon estava muda diante de alguém! O fato era inédito.

Ele se abaixou, encostando um dos joelhos ao chão a minha frente, com o vento sua capa branca passou por cima de minha cabeça, como se fosse um estandarte.

-Talvez você goste disso – me falou estendendo a mão, na qual segurava uma fina e delicada escultura cristalizada de um cisne.

Comecei a rir por dentro e o encarei tocando a escultura com a ponta do indicador.

- Depois do que fiz na casa de seu vizinho você vai me presentear com esse bibelô delicado? – falei pegando cuidadosamente a escultura.

Ele sorriu mostrando um semblante calmo e confiante.

- O cavaleiro de Áries não iria fazer amizade com uma humana qualquer.... disso tenho certeza. – em um gesto quase mágico, pegou a capa esvoaçante e a dobrou. - Nem os demais cavaleiros a deixariam chegar até aqui se você não fosse especial de alguma forma.

Subimos até a 11ª casa. Ele foi contando historias de seus pupilos, dentre eles citou Cristal. Durante sua narrativa percebi o carinho que despendia ao falar dele.

Para um cavaleiro do gelo, Kamus tinha muito calor humano. A sensatez e a sensibilidade vindas de suas palavras me comoviam a cada segundo que passava.

“Fato: de gelo mesmo, apenas a estátua na Sibéria” sorri comigo mesma pensando enquanto estávamos sentados na balaustrada externa da casa de aquário. Fiquei balançando os pés ao vento enquanto conversávamos sobre Sibéria e seu povo.

- Soube de sua visita ao meu discípulo. - ele disse em um intervalo de silêncio - Cristal me falou do seu encanto por esculturas no gelo. – e olhou para a peça que estava em minhas mãos.

Parei com os olhos no pequeno cisne em minha mão um tanto incrédula:

- Gelo? Isso é gelo? – coloquei a escultura em minhas mãos próxima aos olhos e a observei atentamente apertando os olhos.

- Sim. – ele sorriu se divertindo com minha reação infantil.

- Há algo em especial na água?? – levantei as sobrancelhas.

- Ele não derreterá até que você deseje. Isso tem a ver com seu cosmo, ou aura, como queira chamar a energia que rege seu corpo.

Pensei: ele era o cavaleiro do Gelo. De fato merecia o título.

-Aura? Eu?? - apertei o pequeno cisne próximo ao coração.

- Sim... sua aura brilha muito e pode manter o gelo da pequena escultura intacto.

- Interessante... Confesso mesmo que fiquei boquiaberta com a qualidade da escultura, que vi na Sibéria

- Isso ficou bem óbvio – e cruzou os braços olhando firmemente para mim.

Aquilo era uma análise? Questionei-me desviando o olhar novamente para o pequeno cisne.

Além de ponderado, de uma retórica impecável, Kamus era um homem atraente. Talvez o mais maduro de todos que havia conhecido até hoje. Nunca pensei em dialogar tanto sobre filosofia com um cavaleiro como o fiz com Kamus.

Era como se o conhecesse de muitas vidas passadas.

Naquele instante senti uma pequena alteração no ambiente. Um vento carregado de algo que não soube identificar passou por mim e me dirigi para dentro da casa.

“Aquilo era um mau pressentimento?” cruzei meus braços e os afaguei como se os aquecesse.

Olhei para trás, e lá estava o cavaleiro de gelo há poucos passos de mim me observando. Fechei meus olhos e uma vertigem absurda tomou conta de meu corpo.

De súbito abri meus olhos, na parede a minha frente em meio a uma névoa densa

havia um esquife de gelo onde jazia uma pessoa congelada, a qual eu não conseguia ver o rosto.

Dei um passo para trás, como se sentisse o poder do gelo que a resfriava. Tropecei em meus próprios pés. Ao ver aquela cena que não pertencia a aquele momento, senti o coração apertar.

Talvez essa sensação e a visão tenham durado um segundo, mas foi o suficiente para me trazer lágrimas aos olhos. Seja quem for que tenha feito, ou fará aquilo, sentia muito pesar e tristeza.

Talvez aquilo fosse uma premonição ou lembrança guardada nas paredes daquela construção.

Despertei de verdade do pequeno sonho quando senti os olhos de meu anfitrião se fixarem em mim enquanto suas mãos apertavam meus pulsos fortemente.

- Você tem esse nível de sensibilidade sensorial? – falou me encarando e oferecendo uma taça com água fresca.

- Ah não... de novo não..... – murmurei passando as mãos nos cabelos banhados em suor.

Senti seu semblante ficar gravado com uma ruga de preocupação.

- Jamais lute contra isso. – fez um gesto com os dedos e tocou em minha cabeça.

Permaneci olhando profundamente nos olhos de Kamus procurando entender a frase.

Um sentimento fraterno aqueceu meu corpo naquele instante. Mas não apagou por completo a sensação ruim que eu havia sentido, nem a certeza de que algo muito tenebroso fosse acontecer ali.

Fechei meus olhos e abri meus braços ao sentir que ele havia me abraçado. Foi quando ouvi o barulho inconfundível de metal caindo no chão.

Abri um dos olhos com medo da cena, pois a última vez que ouvira aquele ruído não foi um momento muito agradável...

As partes da armadura estavam espalhadas ao redor dele.

Dei um passo para trás fugindo do afago, mas um leve puxão me deixou quase enterrada em seu peito.

- Você é boa nisso.... - Senti seu sorriso mesmo estando com o rosto envolvido em seus braços.

Ouvi por instantes as batidas de seu coração. Calmas, espaçadas, controladas.

Sai da casa de aquário levando entre os dedos o delicado cisne e no coração a sensação de paz.