Inflação na minha versão - As Pedrinhas Azuis

Cansada de ver meu nome impresso em letras garrafais nas manchetes dos jornais e de diariamente, ouvir os maiores absurdos para explicar meu tamanho, ofendida por imputarem a mim crimes que não cometi, hoje resolvi dirigir-me a vocês para de vez por toda desmistificar minha existência e ao mesmo tempo tornar menos incômoda minha presença ao seu lado no dia a dia.

Em primeiro lugar gostaria de deixar claro que sou mulher e como tal, não gosto de ser chamada de; monstro, dragão, e outros nomes que tenho ódio de repetir. Meu nome? Bem, meu nome é Inflação Brasileira!, isso mesmo; Inflação Brasileira.

Apesar da minha idade, sou bem ativa, pois me renovo a cada dia. Minha família é bem grande, tenho parentes espalhados pelo mundo inteiro, tanto faz país rico ou pobre, o que muda é a estatura de meus parentes; quanto mais pobre o país, maior o tamanho dos meus familiares.

Vou falar um pouco de minhas origens para vocês me entenderem melhor;

Há muitos séculos atrás, talvez milênios, em uma pequena aldeia, vivia um povo feliz. Eles se alimentavam de pão, porém quase ninguém sabia fabricá-lo, ou melhor; só o Sr.Bread é que tinha o completo domínio da arte. Por isso, o bom homem tomou para si a incumbência de produzir diariamente 100 pães, esto é, um pão para cada habitante do povoado. Em troca por seu árduo trabalho ele recebia, a cada pão entregue, uma Pedrinha Azul, coisa muito rara e apreciada no povoado. Em síntese: o Sr.Bread produzia diariamente 100 pães e recebia 100 pedrinhas. E foi assim então que nasceu minha mãe; a “Dona Economia”.

Tudo corria bem, até que certo dia Dona Glutona encontrou, no fundo do seu quintal, um buraco com enorme quantidade de “pedrinhas azuis”. Como gostasse muito de pães, a mulher naquele dia se aproveitou da “fortuna” e comprou dois pães ao invés de um. E assim, em consequência do pequeno ato, ocorreram dois fatos históricos; Quais? Bem, o mais importante de todos foi o meu nascimento e, pela primeira vez, uma pessoa ficou sem comer.

Na manhã seguinte, Dona Glutona correu para comprar novamente dois pães, mas o Sr.Bread, lembrando-se da discussão que tivera com seu freguês não atendido no dia anterior, foi logo dizendo:

- Eu entrego os dois pães, mas quero três pedrinhas!

Dona Glutona, muito “fominha” e gastona, não pensou duas vezes, pagou três pedrinhas por apenas dois pães; por isso, houveram novos acontecimentos na aldeia: O Sr.Bread terminou o dia entregando os mesmos 100 pães e recebeu 101 pedrinhas. Nessas alturas, meu tamanho era de 1% e acabava de nascer meu primo “Ágio”.

Tempos depois, irritado com tanto xingamento todos os dias, o Sr.Bread aceitou a oferta do Sr.Vivaldino; entregaria diariamente os 100 pães para ele e em troca receberia 110 pedrinhas. O Sr.Vivaldino não teve dó, alegando custos de “distribuição”, fez um reajuste no preço; quem quisesse um pão teria de pagar 2 pedrinhas. Foi assim que cresci para 100% e nasceu minha prima, a “Especulação”.

Uma semana se passou, diante da aceitação do reajuste sem maiores problemas, o Sr.Vivaldino fez um “realinhamento de preços” e passou a cobrar três pedrinhas por pão. Revolta geral! Depois de muita briga, fizeram uma “intervenção branca” e designaram o Sr.Corrupto como responsável pela distribuição. Como primeiro ato, o “competente Senhor” baixou o preço para duas pedrinhas e, sob aplauso geral, tudo voltou ao normal, isto é; eu continuei com 100%.

Mas, como tudo que é bom dura pouco, tempos depois Dona Glutona voltou a carga, queria dois pães. O Sr.Corrupto a princípio não quis papo, porém diante da oferta de uma pedrinha “extra” por pão sem que ninguém soubesse, não teve dúvidas, entregou a mercadoria. Novos fatos históricos, meu tamanho aumentou para 102%; alguém ficou sem comer novamente e nasceu minha tia, a “Dona Corrupção”.

Alegando cansaço, o Sr.Bread resolveu que a partir daquele dia só trabalharia meio período, isto é, só produziria 50 pães. Correria geral! O pão foi cotado a quatro pedrinhas por unidade. Meu tamanho foi para 300% e comemorávamos o nascimento das minhas primas gêmeas; a “Oferta” e a “Procura”.

O Sr.Governo, vendo o sofrimento do povo, julgou que o melhor a fazer naquela situação era aumentar a produção, mas, para isso, era necessário Ter “capital”. A solução foi encontrada com a invenção do “imposto”, ou seja, ao comprar um pão o freguês teria que entregar uma pedrinha extra para formar o capital. Cresci mais ainda, já tinha 400%, mas o que importava isso? Afinal, estavam formando um capital para aumento de produção. Ah! Ia me esquecendo, nesse dia nasceu minha tia, a “Tributação”.

Certa manhã encontrei mamãe chorando, preocupada, fui perguntar o que estava acontecendo:

- Que foi mamãe Economia, o que está acontecendo?

- Nada filha, nada!

- Por que você está chorando?

- É que está tudo tão confuso filha.

- Como assim mamãe?

- Estou preocupada com você, veja seu tamanho, não é normal minha filha.

- Que nada mamãe, eu estou bem! Esse é o tamanho normal das pessoas de nossa família, veja as nossas primas e tias, todas tão grandes! A única exceção é a prima Oferta, cada vez mais raquítica....

Mamãe, fingindo aceitar minha argumentação, voltou aos seus afazeres e eu fui para a rua “brincar”. Senti que algo de errado estava acontecendo, todos me olhavam de um jeito muito estranho e pela primeira vez fui chamada de “monstro”. A partir desse dia, era só eu aparecer e ouvia: monstro, dragão, mata ela. Confesso que eu também não gostava do meu tamanho, mas o que fazer? Todos os dias ouvia dizer pelos jornais e pela televisão que o Sr.Governo estava fazendo planos para acabar comigo. A princípio acreditei, mas no fundo eu sabia que era só boato. Eu só não entendia porque tanta implicância pelo meu tamanho. Meus parentes circulavam à vontade e ninguém falava nada. Eu via pela janela de meu quarto minhas tias Corrupção e Tributação desfilarem de carro com meus primos; o Ágio, a Especulação, e todos achavam normal. O único parente que me telefonava, de vez em quando, era a Oferta, coitada, tão magrinha, bem diferente da obesa irmã, a Procura.

Certa noite, assistindo TV, quase morri de susto, apareceu um poeta de bigodes dando notícias incríveis; disse que finalmente eu tinha morrido, as pedrinhas azuis deixariam de existir, seriam substituídas por “pedrinhas verdes cruzadas”, o preço do pão estava “congelado”. (Brrrrr...... que fria!). Resolvi me esconder por uns tempos, a coisa estava preta, mas eu estava bem viva, ao contrário do que diziam.

Eu lia nos jornais coisas incríveis, no primeiro mês chegaram a falar que além de morta, quando me enterraram, meu tamanho era menor do que quando eu tinha nascido. Que absurdo! Quanta mentira junta! A primeira vez que vi uma “pedrinha verde cruzada”, morri de rir, ela era “azul”! Todo mundo via que era azul, mas a chamavam de “verde”; acho que o povo da aldeia ficou daltônico!

O preço do pão ficou mesmo “congelado” e isto fez crescer muito meu primo Ágio. Finalmente chegou a vez dele ser caçado. Esquecera-se de mim por uns tempos, todo mundo agora queria matar o Ágio. Certa manhã, quando eu me aprontava para visitar minha prima Oferta, que estava hospitalizada, notei que eu estava novamente engordando. Todos sabiam que eu estava mais gorda, porém continuavam a dizer que eu estava morta.

Ao fim de seis meses, lá estava eu; gordinha, gordinha! Voltei à boca do povo, o Sr.Governo disse que resolveria a situação, aumentou o tamanho da minha tia Tributação, instituindo o “empréstimo compulsório”, eu explico:

A cada pão comprado, o freguês era obrigado a emprestar para o Sr.Governo uma pedrinha, que seria devolvida algum tempo depois. Nunca entendi isso, pois meu tamanho cresceu mais ainda! Um ano e pouco depois, o poeta voltou à TV e disse que a solução era mudar o nome da pedrinha para “pedrinha verde cruzada nova”. Gozado, para mim continua azul. Eta povo daltônico!

A coisa continuou do mesmo jeito, isto é, meu tamanho e o de minha família, cada vez maior. A cada “congelamento” anunciado, o pão desaparecia, minha prima Oferta ficava doente e meu primo Ágio mais forte.

Depois de algum tempo o Sr.Governo foi substituído por um homem apelidado de “Caçador de Marajás”, confesso que tive medo, pois o tal homem prometia acabar comigo de vez. Logo no primeiro dia tomou todas as pedrinhas do povo e voltou a chamá-las de “pedrinhas azuis”. Apesar do meu medo inicial, achei sensata a decisão de voltar a chamar as pedrinhas de azuis. Diziam que o tal caçador tinha a “coisa roxa”. Diminuiu muito o meu tamanho, pensei que realmente eu tinha sido ferida pelo “último cartucho” como o homem havia dito.

Que nada! Eu continuo aqui, bem gordinha! E ele? Ora, já provou que sabe pilotar, andar de jet-sky, correr aos domingos, lutar karatê, enfim é bom em todos os esportes (menos em tiro ao alvo, graças a Deus!).

Antes de minhas palavras finais, gostaria de expor os conselhos de minha velha mãe, a Dona Economia. Ninguém melhor do que uma mãe para saber como conduzir sua filha, dizia ela. “Nunca conseguirão matar você filha, e nem é preciso, pois se acabarem com seu primo Ágio e sua tia Corrupção, prenderem sua prima Especulação, controlarem a sede da sua tia Tributação e equilibrarem o peso de suas primas Oferta e Procura, com certeza você voltará a Ter seu tamanho natural de 1 ou 2%.

Puxa, que felicidade! Já pensou eu Ter apenas 2%? Sabe, como disse no início, sou uma mulher, portanto, vaidosa por natureza. Gostaria realmente de Ter o tamanho de minhas irmãs que vivem na Suíssa e no Japão. O dia em que eu tiver esse tamanho, quero arranjar um namorado bonito e me casar. Se Deus quiser, eu gostaria de ser mãe de dois filhos, tenho até os nomes: um menino chamado “Progresso” e uma menina chamada “Fartura”.

Acho que deu para explicar minha vida, não é? Por isso, daqui para frente, não me queiram mal, controlem meus parentes; mamãe Economia ficará feliz e poderemos conviver lado a lado em paz.

F I M

Laerte Russini
Enviado por Laerte Russini em 29/10/2007
Reeditado em 15/02/2009
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