A ARCA DE CEDRO COM DE SANGUE

A ARCA DE CEDRO COR DE SANGUE

(Folclore norte-americano, apud Richard and Judy Dockrey Young, tradução e versão poética de William Lagos, 22 junho 2017)

A ARCA DE CEDRO COR DE SANGUE I

A madeira do cedro é avermelhada

e, de fato, muito forte e resistente;

muito apreciada ela é por toda a gente,

que a utiliza para a mobília mais cuidada;

nos Estados Unidos, uma jovem desposada

costuma ganhar uma arca, em que é frequente

colocar o enxoval que se apresente

para o futuro de sua vida de casada.

Ora, entre eles o costume é bem comum

de referir-se como o “cofre de esperança”

a essa arca que contém seu enxoval,

na intenção de proteger a cada um

desses sonhos que sua memória alcança,

bênção futura para sua vida conjugal!...

A ARCA DE CEDRO COR DE SANGUE II

Quando uma certa jovem se casou,

levou consigo um cofre de esperança

feito de cedro para a sua mudança

ao novo lar que o marido lhe mostrou.

O perfume do cedro, assim julgou,

afastaria as traças sem tardança,

pois até mesmo o mofo não alcança

desenvolver-se no enxoval que se guardou.

É bem provável que você tenha escutado

a expressão “estar enxovalhado”

para indicar um tecido malcheiroso,

após ter sido longo tempo conservado

em prateleira ou gaveta, assim tendo ficado

nele a lembrança de um tempo mais formoso.

A ARCA DE CEDRO COR DE SANGUE III

Assim a noiva, de esperança cheia,

com o marido iniciou sua nova vida

e em breve tempo foi criança concebida,

já tricotando casaquinho e cada meia,

para a criança proteger em noite feia,

até tornar-se bem saudável e crescida.

Em seu devido tempo à luz trazida,

na alegria e na emoção que amor rodeia

nasceu um menino, batizado como Will,

do nome William um normal diminutivo,

sua pele sendo branca como o linho,

os seus olhos tão claros como o anil

e sua boca de um vermelho redivivo,

igual que o cedro guardado com carinho.

A ARCA DE CEDRO COR DE SANGUE IV

Contudo, mau destino quis a sorte:

sua mãe nunca teve outra criança,

sua saúde oposta à sua esperança

e finalmente, foi levada pela morte...

Seu pai, contudo, era um granjeiro forte,

mas que cuidá-lo sozinho não alcança,

necessitando de certa ajuda mansa

que outra esposa em seu lar aporte...

E desta forma, casou-se novamente,

com uma viúva, que tinha a própria filha,

chamada Marjorie, então com sete anos; (*)

(*) Leia Márjori.

fizera nove Will, recentemente,

e como ocorre muitas vezes nessa trilha,

os dois se amaram, quais verdadeiros manos...

A ARCA DE CEDRO COR DE SANGUE V

Mas a madrasta jamais gostou dele,

em seu peito um malvado coração;

ante o marido, até fingia devoção,

mas em sua ausência, lhe esfolava a pele!

Por toda a granja às tarefas o compele,

sem lhe dar de descanso uma ocasião,

a recusar-lhe até a alimentação,

sempre que o pai o seu cavalo sele,

para qualquer viagem que empreendia,

quando negócios assim o exigiam,

tratando Will então igual que escravo!

Logo Marjorie seus maus-tratos percebia,

mas os caprichos da mãe não permitiam

que lhe desse sequer de mel um favo!...

A ARCA DE CEDRO COR DE SANGUE VI

Certo dia, as maçãs foram colhidas

e Will chegou, do trabalho bem cansado;

em cada galho ele sozinho havia trepado,

tirando as frutas das macieiras produzidas...

Mas as maçãs deveriam ser vendidas,

em breve o pai as levaria até o mercado,

um cesto ou dois em geleia transformado,

não o deixando sequer dar duas mordidas!...

Marjorie tinha ido para a escola

e a madrasta remoia a sua maldade:

“Podes pegar uma delas, bom menino,

“porém comê-las com casca é coisa tola,

de uma faquinha terás necessidade,

vai no cofre uma buscar de gume fino...”

A ARCA DE CEDRO COR DE SANGUE VII

Will, sem nada desconfiar, obedeceu,

mas quando a tampa da arca levantou,

a madrasta, num repente, a abaixou

e a cabeça de Will se desprendeu!...

Alegremente, a madrasta a recolheu,

mas vendo o sangue que no cofre derramou,

de sua loucura num instante despertou:

logo o temor do castigo a surpreendeu!...

Para ocultar seu crime, o transportou

e o corpo ajeitou bem numa cadeira;

a cabeça ela atou com guardanapo!...

Numa das mãos, a faquinha colocou

e a maçã que provocara a sua doideira,

à sua frente colocou dentro de um prato!...

A ARCA DE CEDRO COR DE SANGUE VIII

Dessa maneira, o menino parecia

estar a ponto de a fruta descascar!...

Quando Marjorie fosse da escola retornar,

o perfume das maçãs a tentaria!...

De fato, quando chegou, já lhe pedia:

“Mamãe, uma maçã pode me dar...?”

“Peça a Will depressa lhe cortar

dessa mesma maçã uma fatia!...”

Mas ao pedir um pedaço para o irmão,

parado ele ficou e nada respondeu.

“De olhos abertos seu irmão adormeceu!...”

“Dê-lhe um tapa, para chamar sua atenção!”

Marjorie deu-lhe um tapinha, com amor,

mas viu a cabeça se soltar, em vasto horror!

A ARCA DE CEDRO COR DE SANGUE IX

Pobre Marjorie! Ela pensou haver matado

esse menino a quem amava como irmão!...

Sua mãe olhou-a, a fingir consternação:

“Vou ajudá-la a esconder o seu pecado!...”

“O seu filho fugiu daqui, meu bem-amado,”

disse ao marido – “sem a menor razão,

morar com a tia me afirmou nessa ocasião,

sem lhe pedir permissão nem dar recado!...”

O pai ficou surpreso, pois de fato não queria,

acreditar na descrição de tal ensejo

irmã não tinha e nem a morta irmã possuía!

Mas a seguir, logo na cama adormecia,

a madrasta a distraí-lo com um beijo:

Quem sabe o filho sem demora voltaria...

A ARCA DE CEDRO COR DE SANGUE X

O pobre Will fora de fato cozinhado

e a madrasta o serviu, sem compaixão;

sem saber disso, o pai louvou a refeição,

ele e a madrasta tendo tudo saboreado!

Um tal jantar Marjorie havia recusado:

“Não tenho fome...” – e foi deitar-se então,

bem quietinha e sem mudar de posição,

até que os dois adormecidos ter notado!...

E assim que em segurança se julgou

reuniu os ossos do irmão e os transportou

do cedro grande nas raízes a enterrar...

Um forte vento começou logo a soprar

e a árvore inteira pólen rubro projetou,

tal qual estando aquele crime a lastimar!...

A ARCA DE CEDRO COR DE SANGUE XI

Foi envolvida em nuvem bem vermelha,

igual que estando por incêndio consumida,

a noite inteira nesse encarnado tida,

de cada ramo a projetar nova centelha!...

No amanhecer, quando a luz solar espelha,

sobre seu tronco se abriu uma ferida,

uma avezinha dessa fenda ali surgida,

de ouro e negro rajada igual que abelha!...

Mas após as suas asinha sacudir,

à luz do sol a deixou toda encarnada,

logo a seguir alçando um breve voo!...

Da acácia ao lado seu canto a desferir,

sua canção à voz humana assemelhada:

“É o meu canto de morte que hoje entoo!...”

“Mamãe morreu e me deixou sozinho

e ontem minha madrasta me matou;

sem o saber, meu pai me devorou!...

Porém Marjorie, minha única irmãzinha,

meus ossos nas raízes enterrou

e retornei, igual que uma avezinha

para contar o que me aconteceu,

depois que o cedro inteiro me acolheu!”

A ARCA DE CEDRO COR DE SANGUE XII

Marjorie o canto escutou de sua janela

e ficou batendo palmas de alegria:

que era a alma do irmão ela sabia,

límpido o canto como luz de estrela!...

Já o coração da madrasta se congela:

essa avezinha de bom grado mataria!

Se não pudesse, então a espantaria:

que seu marido não ouvisse essa novela!

Assim tentou matá-la com a vassoura,

porém o pássaro agilmente revoou,

contra o azul do céu um rubro ponto

e o cedro inteiro sacudiu-se nessa hora,

seu pólen todo em sua cabeça derramou,

a madrasta quase cega no confronto!...

A ARCA DE CEDRO COR DE SANGUE XIII

Já o passarinho voou sobre a floresta

e sobre os campos até chegar à aldeia;

numa oficina, muito negra e feia,

ele pousou, a cantar com ar de festa:

“Mamãe morreu e me deixou sozinho

e ontem minha madrasta me matou;

sem o saber, meu pai me devorou!...

Porém Marjorie, minha única irmãzinha,

meus ossos nas raízes enterrou

e retornei, igual que uma avezinha

para contar o que me aconteceu,

depois que o cedro inteiro me acolheu!”

O ferreiro apareceu, com a mão na testa:

o vermelho contra o negro se incendeia;

o seu semblante de um sorriso se permeia:

“Nunca ouvi música mais bela do que esta!”

“Cante de novo para a minha esposa

e que meus filhos o escutem novamente!”

“Mas o que eu ganho, se cantar de novo?”

“Uma corrente de prata, bem formosa!...”

E após o canto, disse o ferreiro, bem contente:

“Dou-lhe a corrente, como prova de que o louvo!”

A ARCA DE CEDRO COR DE SANGUE XIV

Voou o pássaro, com a corrente no pescoço

e saiu a percorrer cada telhado,

a alegria a espalhar por todo lado,

até chegar ao sapateiro, em seu retoço...

“Mamãe morreu e me deixou sozinho

e ontem minha madrasta me matou;

sem o saber, meu pai me devorou!...

Porém Marjorie, minha única irmãzinha,

meus ossos nas raízes enterrou

e retornei, igual que uma avezinha

para contar o que me aconteceu,

depois que o cedro inteiro me acolheu!”

O sapateiro já deixara de ser moço

e um par de botas recém havia acabado;

com a canção se demonstrou muito encantado:

“Não quer cantar durante o meu almoço...?”

“Mas o que eu ganho, cantando novamente?”

“As lindas botas que acabo de fazer!...”

Chamou a mulher e os filhos para ouvir

e o passarinho pipilou alegremente

e no final, foi as botas receber,

que em suas patinhas deu um jeito de servir!...

A ARCA DE CEDRO COR DE SANGUE XV

Usando as botas e a corrente ainda voou,

cruzando o rio e chegando até o moinho,

cantando alegre por todo o seu caminho

e sobre as pás do moinho então pousou:

“Mamãe morreu e me deixou sozinho

e ontem minha madrasta me matou;

sem o saber, meu pai me devorou!...

Porém Marjorie, minha única irmãzinha,

meus ossos nas raízes enterrou

e retornei, igual que uma avezinha

para contar o que me aconteceu,

depois que o cedro inteiro me acolheu!”

O moleiro com tais notas se encantou;

seu ariel recém trocara com carinho,

a velha pedra, que tinha um buraquinho

e sobre a qual a mó sempre girou...

“Cante de novo, meu belo passarinho,

Para que escutem meus dez empregados!”

“Mas o que eu ganho, se cantar mais uma vez?”

“A pedra velha, em que pode fazer ninho!

Muita farinha e pó de trigo ainda colados:

terá comida suficiente para um mês!...”

A ARCA DE CEDRO COR DE SANGUE XVI

O passarinho cantou de novo, então:

Bateram palmas o moleiro e os empregados

E com trabalho, os dez homens esforçados

A pedra alçaram, meio em troça na ocasião!...

E então notaram, com estupefação,

que seus cento e oitenta quilos bem pesados

pela avezinha foram fácil apanhados,

sem a menor dificuldade – e em confusão

viram sua cabeça penetrar no buraquinho,

a pedra encaixada por cima da corrente

e a seguir revoar bem facilmente!...

A ave mágica retomou o seu caminho

e sobre a granja em que vivera, bem contente,

recomeçou a cantar o seu versinho:

“Mamãe morreu e me deixou sozinho

e ontem minha madrasta me matou;

sem o saber, meu pai me devorou!...

Porém Marjorie, minha única irmãzinha,

meus ossos nas raízes enterrou

e retornei, igual que uma avezinha

para contar o que me aconteceu,

depois que o cedro inteiro me acolheu!”

A ARCA DE CEDRO COR DE SANGUE XVII

Sabia Marjorie que era o seu irmão

e correu a recebê-lo, alegremente;

do pescocinho tombou logo a corrente

e a pendurou sobre seu coração!...

Chegou o pai, em grande confusão:

cada patinha se sacudiu, rapidamente,

e o par de botas lhe serviu perfeitamente,

crescendo logo que caíram pelo chão!

Mas a madrasta chegou lá do celeiro,

para ver o que estava acontecendo:

viu o marido com suas botas novas,

o passarinho cantando, bem faceiro,

a correntinha em Marjorie já pendendo

e foi falando, sem se importar com as trovas:

“Mamãe morreu e me deixou sozinho

e ontem minha madrasta me matou;

sem o saber, meu pai me devorou!...

Porém Marjorie, minha única irmãzinha,

meus ossos nas raízes enterrou

e retornei, igual que uma avezinha

para contar o que me aconteceu,

depois que o cedro inteiro me acolheu!”

A ARCA DE CEDRO COR DE SANGUE XVIII

“Mas o que está acontecendo por aqui?”

“O passarinho me deu esta corrente!”

“E as botas novas!” – disse, bem contente

o seu marido: “São as melhores que já vi!”

“Mas e que música é esta que eu ouvi?”

“É o passarinho, a gorjear alegremente!

Para cada um de nós trouxe um presente,

decerto algo também trouxe para ti!...”

“Mamãe morreu e me deixou sozinho

e ontem minha madrasta me matou;

sem o saber, meu pai me devorou!...

Porém Marjorie, minha única irmãzinha,

meus ossos nas raízes enterrou

e retornei, igual que uma avezinha

para contar o que me aconteceu,

depois que o cedro inteiro me acolheu!”

E a madrasta, na maior desfaçatez,

ignorando as palavras que escutava,

indagou: “O que trouxeste para mim?”

E o passarinho da pedra se desfez,

que a madrasta, a seguir, logo aparava,

numa explosão de sangue carmesim!...

A ARCA DE CEDRO COR DE SANGUE XIX

E no momento em que a malvada pereceu,

o cedro inteiro novamente sacudiu,

seiva vermelha em jorro então caiu

e em manto rubro o passarinho se envolveu!

E pouco a pouco, sem demorar, cresceu;

perdeu as penas e seu bico sumiu,

até que um rosto de menino ali surgiu,

o próprio Will que de novo apareceu!...

Como antes, incólume e saudável,

sem qualquer marca a lhe manchar a pele,

os três reunidos num abraço formidável!...

Mais uma vez o granjeiro se casou,

em fim feliz, que a nossa história sele

e a outra madrasta em gentil mãe se revelou!

Esta história traz elementos reminiscentes de uma tragédia grega, em que os filhos, por vingança, são servidos como refeição ao pai e também de um conto do folclore português, recolhido no Nordeste do Brasil por Sylvio Romero, em que a menina é morta e enterrada, seus cabelos a crescer como capim.