O rosto é o lado externo do coração; os olhos, ambos os lados;
 mas são os lábios que escondem ou revelam a verdade.
 Tinha medo do homem que cada menino constrói dentro de si, a partir da interação com brinquedos monstruosos, personificados em “inofensivos” heróis. Ela jamais gostara dos filmes de terror, e recordava-se com tristeza de seus sonhos, habitados por pesadelos com criaturas diabólicas.
Monstro é criação de mente doentia: diabinhos que o autor transfere em forma de imagem para livros e filmes— pensou. Se é verdadeiro dizer que os sinais sonoros e visuais abrem as cortinas  do terror e do medo; é também verdadeiro afirmar que este  mesmo conjunto de imagem e som leva a atitudes e condutas de acordo com a percepção de mundo, em torno do qual orbitam os cinco sentidos do corpo humano. E pela primeira vez, a boneca de pano teve sentimentos humanos: desejou ser a rainha das  bonecas, ter muitos súditos e grande exército para afugentar o inimigo que lhe perturba o sono.
— Quero ser como Bobbynho que não tem medo de nada.
—  Os homens escondem seus medos, quando estão diante das mulheres — disse Ravenala — faça o teste: quando Bobby disser que não ter medo, olhe os lábios dele. Se tremerem em leve contração Bobby está mentindo.
— Não são mais os olhos a janela do coração? — Quis saber Emília.
— O rosto é  o lado externo do coração; os olhos, ambos os lados; mas são os lábios que escondem ou revelam a verdade.
Teve vontade de dizer que o coração do homem modifica seu rosto, para o bem ou para o mal. Mas de que valeriam essas coisas? afinal, Emília é apenas uma boneca de pano. Insistiu, assim mesmo.
— Se estiveres alegre, desfrutarei do teu regalo, mas, quando te vejo triste, meu coração também se entristece. E assim, no decurso do meu dia, transmitirei alegria se meu coração estiver em paz ou disseminarei sofrimento, se o coração estiver mergulhado na dor.
Como evangelizar uma boneca de pano, Ravenala não sabia. Então pensou em construir uma boneca com duas faces: um rosto feliz  e outro triste. E reprovou seu projeto: “Melhor fazer duas bonecas: uma triste e a outra feliz. Quando estivesse triste, brincaria  com a boneca triste... Mas isso não a levaria a entristecer-se mais ainda?” E ficou triste só de pensar que os meninos brincam com criaturas monstruosas, e têm suas noites perturbadas por pesadelos. Porque não produzir bonecos à imagem e semelhança de santos? Assim, os meninos sonhariam com anjos, e não com demônios fazendo diabruras em suas mentes.”
— Acordada ainda, Emília?
—  Quero dormir e não consigo...
— Conte carneirinhos — disse Ravenala — e  desenhou uma ovelha numa folha de papel, depois mais outra ovelha, e  outras tantas, enfileiradas passando pela porteira. Todas branquinhas, bem branquinhas... Vá contando as ovelhinhas. Vá contando...
— Já  contei 99 e ainda não consegui dormir.
— É porque falta uma! Não descansarás, enquanto não encontrares a ovelha perdida. Vá buscá-la, sem alarde, pisando macio... A pastagem esconde espinhos e oferece muitos perigos. É   suave, se banhada de orvalho, e áspera, se não se deixa lavar pela água que desce do céu.
— Falas com se também fosses uma boneca.
—  Vá! Sinta a maciez da grama orvalhada em teus pés descalços, mas cuidado com os espinhos da rosa. Ande devagar...devagar, devagar... Saltitando, volitando como se tivesse asas teu coração.
Emília imaginou um coração com duas asas, uma delas ferida pelo caçador de prêmios. Depois, lembrou-se de que precisava contar carneirinhos para dormir, mas faltava uma ovelha. Talvez estivesse ferida ou se afastara do caminho apontado pelo pastor.
— Coração voa?
— Voa! Vou muito. Sonha voando e voa. Viaja por mundos desconhecidos: paisagens espiritualizada, musgo aveludado  na base da colina,  e orquídeas floridas nos troncos das árvores, como no mundo em que Manuel fincou sua bandeira.
— Não consigo dormir...
— É porque não encontraste ainda a ovelha desgarrada. Se há uma ovelha perdida,  o pastor não dorme.
— Desenha um cajado. Quero um cajado com uma curva enorme...
— Zzzzzzzzzz...
 — Emília, Emília...
 
Sonhou.
Viu o paraíso perdido. E chorou.  O mundo encantado estava à beira da destruição. Muitas bonecas eram  jogadas no lixo, porque lhes faltava um braço ou uma perna; outras arrastadas por  águas turbulentas do niilismo.
Emília acorda em sobressalto.
— Por onde andaste em teus sonhos? Teus olhos relevam terror e medo!
— Nunca  viste uma boneca ser descartada porque tem algum defeito? Vi uma boneca gorda demais  e tinha muitas feridas. Muitas  chagas ainda abertas,  provocadas por mordidas do lobo. Devia sentir muita dor, tristeza e solidão. Disse ter ser uma ovelha abandonada pelo rebanho, mas foi ela que se desgarrou. E já não sabia mais como encontrar o caminho de volta. 
— Ovelha nunca deve abandonar o  rebanho! Se abandonar, torna-se  presa fácil... Há muitas ovelhas doentes. Incautas, elas mergulham na escuridão e caem em profundo abismo. Gritam e seus gritos não ultrapassam a barreira dos muros abissais.
Emília também estava gravemente ferida.
— Vovó, vovó!...
— Que houve, minha filha?
— Emília morreu!
— Bonecas não morrem. As pessoas crescem, e guardam suas bonecas no armário.
— Emília morreu. Quero fazer o velório com todas as honrarias que ela merece.
Corina compreendeu que era hora de guardar a boneca de Ravenala. Como ela, Corina,  guardara a sua quando ficou mocinha.
— Emília era apenas uma boneca de pano, minha filha.
— Sim, mas em cada retalho dela, tinha um pedaço de mim.
 ***

Adalberto Lima, fragmento de Estrela que o vento soprou.
Imagem: Internet