O CAVALINHO CORCUNDA

O CAVALINHO CORCUNDA I

Havia na Rússia um honesto camponês,

um muzhik, como por lá se chama,

que cultivava vastos campos de trigo.

Tinha uma grande izbá por seu abrigo

e três filhos nascidos de sua flama:

Bled, Oleg e Vanka eram os três.

O camponês os amava ternamente

e com seus bens sentia-se contente.

E como ocorre comumente nas histórias,

os dois mais velhos a Vanka desprezavam.

Seu nome mesmo era Ivan, mas era chamado

de Vanka, ou Ivãzinho, o Abobado.

Por não ter ambição o maltratavam

e lhe pregavam as peças mais simplórias;

porém Vanka tinha um puro coração

e os respeitava, como o deve um bom irmão.

Um dia, o pai foi cuidar de sua colheita

e percebeu que estava pisoteada;

acreditou que qualquer homem inimigo

viera maltratar o seu bom trigo,

mas pista alguma dele foi achada

e como sucedesse de outra feita,

determinou aos filhos que o cuidassem

e que qualquer invasor afugentassem.

E nessa noite, ficou Bled de vigia,

para ver se o invasor se apresentava,

mas o tempo foi passando e se cansou;

numa vizinha o seu olhar pousou,

e para ver se nessa noite a namorava,

deixou o campo e, naturalmente, não sabia

quem poderia ter causado o novo estrago:

mentiu em casa que era obra de algum mago...

O CAVALINHO CORCUNDA II

“Meu pai, eu vigiei a noite inteira

e nem por um instante preguei olho!”

E era verdade, não mentia em nada:

passara a noite junto à namorada...

Mas para o seu trigal fora caolho,

pois não vigiara sequer uma jeira.

Ficou o velho meio a desconfiar

e enviou Oleg então em seu lugar.

Bled passou dormindo todo o dia,

por ter ficado acordado a noite inteira...

Chegou a noite e Oleg foi cuidar

do seu trigal e, para se acalmar,

carregou vodki como sua companheira;

só se acordou quando o sol já surgia,

o campo novamente pisoteado

e quantidade de trigo devorado...

Igual que o irmão, protestou não ter dormido,

com os dois olhos cheios de ramelas

e o nariz inteiramente avermelhado.

“A noite inteira permaneci acordado,

algum fantasma roeu nossas gavelas...”

Porque ele mesmo nada havia assistido...

O velho pai ficou de novo desconfiado

e na outra noite foi Vanka o designado.

Os dois mais velhos a maior troça fizeram:

“Como pode obter um resultado

esse pateta do Vanka, enquanto nós,

quando ficamos do ladrão empós,

apesar da noite inteira ter cuidado,

não enxergamos nada!” eles disseram.

Mas quando o pai indagou: “Querem voltar?”

os dois ficaram desculpas a inventar...

O CAVALINHO CORCUNDA III

E nessa noite, lá se pôs Vanka a vigiar

e se deitou bem escondido no trigal;

com medo de dormir, prendeu varinhas

junto à cabeça, no chão espetadinhas.

Se acaso o sono lhe viesse, é natural,

picava o rosto e logo iria se acordar...

Mesmo assim, por um momento, cochilou

e só com o som de pisadas se acordou.

Vanka espiou por cima das espigas

e viu pastando uma bela égua dourada.

Foi-se arrastando para ela, calmamente,

e lhe pulou no lombo, de repente!...

Só que, na pressa, caiu mal sobre a montada,

virado para o rabo!... Mas fez figas

e se agarrou na cauda do animal,

igual que esse fosse o jeito natural!...

Assim que a égua sentiu o peso no lombo

se pôs a corcovear e a se empinar,

procurando se livrar do cavaleiro!

Mas Vanka se firmara, bem ligeiro,

ela não o pôde das costas deslocar

e muito menos lhe provocar um tombo!

Vanka prendeu seus dedos firmemente,

com as pernas presas ao costado, rente!...

Ela tentou de tudo, mas não pôde

derrubar seu invertido cavaleiro!...

Correu por sobre rios e sobre os montes,

empinou sobre os valados e nas pontes,

mas Vanka se prendera, bem certeiro,

sem se soltar, por mais que se sacode

a montaria, já a bufar, furiosa,

com a corda presa de forma vigorosa!

O CAVALINHO CORCUNDA IV

Até que, finalmente, se cansou,

sem perceber como Vanka se aguentara;

não se prendera por habilidade:

fora o medo a lhe emprestar tenacidade!

Mas, mesmo assim, a égua derrotara,

até que enfim o animal resfolegou:

“Afinal encontrei a quem me vença!...

É muito justo que lhe dê a recompensa!...”

“Não vai me dar um coice, se a soltar?”

“Dou minha palavra de égua da nobreza!...

Eu lhe prometo o seu trigal deixar

e só irei pastar em outro lugar!...

“Mas como vai pagar a minha despesa?”

“Está certo, se você me libertar,

eu lhe darei três cavalos de presente,

como penhor que de suas terras eu me ausente.”

“Repare bem, dois cavalos são dourados,

mas são cavalos comuns, apenas belos;

porém nunca te separes do terceiro.

Ele é corcunda, mas excelente parelheiro,

não o barganhes nem com donos de castelos,

não o vendas nem por dez cintos bordados,

nem o troques pelo mais belo dos chapéus

e nem sequer por três moças com seus véus!”

Vanka assentiu, porém, por precaução,

no momento em que soltou-se do animal,

deu um pulo, bem depressa, para o lado,

pois tinha medo de ser por ela escoiceado!

Mas a égua soltou um relincho natural:

“Não precisas de ter medo sem razão...

Eu te fiz uma promessa e a cumprirei:

cavalos nunca mentem, é a nossa lei!...

O CAVALINHO CORCUNDA V

“Mas recorda muito bem o que eu falei:

com os dois dourados poderás fazer

o que quiseres, porém nunca te desfaças

do cavalinho corcunda, cujas graças

no futuro te pouparão muito sofrer.

Vai ao bosques das faias. Lá deixei

os três cavalos que te prometi.

Faz bom proveito, que não volto mais aqui!”

A égua dourada encetou o galope

e então desapareceu!... Vanka pensou

que tivesse alçado voo e sacudiu a cabeça,

pensou que o lusco-fusco lhe pregara peça;

então até o bosque das faias caminhou

e um cavalinho o recebeu, dando pinote!

E o saudou no russo mais perfeito:

“Meu senhor, sou seu servo por direito!...”

“E obedecerei no que me comandar!...”

Vanka alisou-lhe a crina, complacente,

passando os dedos depois pela corcunda...

Mas seu olhar se fixou nos dois dourados,

além de lindos, totalmente ajaezados.

“Esses não falam,” disse o outro, em voz profunda.

“Você pode me chamar de Gorbakon:

na minha corcunda da fala está o dom...”

Quando chegou a casa, de manhã,

Vanka, bastante honestamente, declarou

“Não veio qualquer homem à plantação,

mas estou certo que não mais pisotearão.”

Mas quando o pai insistiu e o interrogou,

ele inventou a história de uma rã,

que prometera que qualquer um espantaria

para pagar os gafanhotos que comia...

O CAVALINHO CORCUNDA VI

Seu pai, que também dele acreditava

ser meio tolo, só abanou a cabeça,

mas os irmãos fizeram grande troça:

“Desde quando uma rã protege a roça?”

Mas dali em diante, seu trigal não cessa

de prosperar e ninguém mais o pisoteava.

Os dois irmãos ficaram surpreendidos,

Mas nem por isso se deram por vencidos.

“Nessa história da rã não acredito,

alguma coisa o Vanka preparou;

vamos cuidar para ver o que ele faz.”

E os dois passaram a vigiar o outro rapaz,

até que, numa manhã, Bled encontrou

os três cavalos que Vanka, sem agito,

colocara numa velha estrebaria

e logo sua cobiça o seduzia...

“Eram esses que pisoteavam o trigal!

Vamos levar para vender na feira!...”

Já Oleg queria ficar com os animais,

mas Bled disse que seu pai jamais

permitiria o que achasse roubalheira...

“Mas o que ele não souber, não fará mal!

Se por acaso o Vanka se queixar,

a culpa inteira ele é que vai levar!...”

E desse modo, pegaram os dois dourados,

o baio e sua corcunda desprezando,

e os esconderam no meio de um choupal,

para levá-los depois à capital,

um preço bom pelos dois alcançando,

sem repartir com Vanka, os dois malvados!

Mas quando o irmão voltou para os tratar,

Só encontrou Gorbakon a relinchar!

O CAVALINHO CORCUNDA VII

Ao ver o roubo, desatou a chorar!...

Mas o cavalo corcunda lhe falou:

“Monta em meu lombo e me agarra na ‘cacunda’,

que encontraremos essa gente imunda!...”

Em meia hora, seus irmãos achou

que foram obrigados a confessar...

Achavam Vanka um tolo de má sorte,

mas tinham medo dele, que era forte...

Assim Oleg começou a acusar:

“Você roubou de quem esses cavalos?”

“Ganhei os três!” respondeu-lhe Vanka,

“quando espantei a sua mãe, Jovanka,

que voa sobre os rios e sobre os valos

e que andava nosso campo a pisotear!...”

“Essa conversa é mais sensata que a da rã;

Mas convencer o nosso pai é coisa vã...”

“De fato, ele vai é nos mandar

a procurar o dono em toda parte!

Não têm marca e não falta espertalhão

para afirmar por aí sua pretensão

de que esses animais, por qualquer arte,

conseguiram de suas terras se escapar.

Que foi presente, nunca vai se convencer!

Melhor levarmos à feira e lá os vender!...”

“Repartimos entre os três o resultado;

não banque o egoísta, afinal, somos irmãos...

Está bem? Ou então levamos para o pai,

que na sua história acreditar não vai

e achará que tem roubo nas suas mãos...

Concorda? Pois o negócio está fechado,

vamos sair amanhã de madrugada,

que é quando a feira será inaugurada...”

O CAVALINHO CORCUNDA VIII

Assim Vanka terminou por concordar.

Levou os cavalos de volta para o abrigo.

Passou a noite inteira ali dormindo,

pensou que Oleg estivesse lhe mentindo

e que apesar de irmão, não era amigo

e, se pudesse, o haveria de enganar...

E no outro dia, de manhã bem cedo,

os três partiram juntos, em segredo...

Iam os irmãos nos cavalos bem arreados

e Vanka no cavalinho sem arreio,

Oleg e Bled sempre a cochichar,

fazendo planos para de Vanka se livrar...

Mas de repente, para seu receio,

viram uma luz a brilhar nos descampados.

Disseram a Vanka que fosse ver o que era,

que ficariam ali parados, à sua espera...

Vanka encontrou-se com o Pássaro de Fogo,

o Zhar-Ptitza, de plumagem reluzente!...

Quis agarrá-lo, mas o pássaro voou:

só uma pena na sua mão deixou...

Gorbakon lhe falou, incontinenti,

“Jogue fora essa pena, amo, eu lhe rogo!

É do Pássaro de Fogo e traz azar!...”

Porém Vanka achou-a linda e a quis levar...

Foram depressa ao encontro dos irmãos,

que já se achavam pela estrada galopando...

Mas o cavalo corcunda era veloz

e bem depressa lhes chegou empós.

“Não me disseram que estariam esperando?”

“Foi só um susto deste cavalos redomãos...

Mas na feira esperaríamos, já se vê!

Jamais faríamos a venda sem você!...”

O CAVALINHO CORCUNDA IX

Os dois cavalos chamaram a atenção

quando na feira os irmãos os exibiram;

Oleg e Bled aceitariam qualquer oferta,

mas Vanka fincou o pé, até que a certa

clientela aparecesse; e então viram

o próprio Tzar a propor sua aquisição.

E como Vanka era o maior dos três

foi com ele que o rei negócio fez.

E Vanka disse: “Meus cavalos eu só vendo,

se Vossa Majestade me aceitar

como o seu tratador no seu castelo.

Eu os cuidarei com o maior desvelo,

se me permitir também levar

o meu cavalo corcunda, que eu compreendo

como se fosse um verdadeiro irmão!”

Riu-se o Tzar e aceitou sua condição.

“Pois muito bem. Trinta rublos eu lhe dou

e o alugo para ser meu estribeiro;

se demonstrar que os sabe tratar bem,

será bem recompensado; mas há um porém:

se revelar-se como mau palafreneiro,

leva uma sova por pensar que me enganou!”

Vanka ao Tzar mil cuidados prometeu

e a cada um de seus irmãos dez rublos deu...

Assim Vanka se mudou para o castelo

e os dois irmãos voltaram ao trigal,

contando que o Tzar o contratara.

O velho pai não ficou de boa cara,

por temer que seu rapaz se desse mal;

a mãe chorava que nunca mais ia vê-lo,

porém no fim acabou por se acalmar:

quem ao Tzar poderia contrariar?

O CAVALINHO CORCUNDA X

Pois Vanka tratou dos cavalos muito bem

e de noite, para melhor se iluminar,

prendia a pena na parede com um prego;

e o Palafreneiro-chefe, temendo pelo emprego,

durante a noite seu trabalho foi espiar

e logo um enredo imaginou também...

Roubou a pena, enquanto Vanka dormia

e logo aos ouvidos do Tzar ele mentia.

“Majestade, esse seu novo estribeiro

trouxe esta pena do Pássaro de Fogo...”

“Do Zhar-Ptitza...?” quis saber o rei.

“Sim, Majestade!... E dele hoje escutei

que lhe trará o pássaro, tão logo

nosso Tzar o comando dê primeiro!...”

E então o Tzar mandou o rapaz chamar

e lhe ordenou que fosse o pássaro buscar.

“Majestade,” disse Vanka, “eu não falei

que o Pássaro de Fogo lhe traria!...

É verdade que esta pena lhe arranquei,

mas o lugar em que está agora já não sei!”

“Pois se não pode, se gabar não deveria!

Dou-lhe três dias, não mais!” falou o rei.

“Se não voltar nesse prazo, o meu carrasco

dar-lhe-á uma surra de arrebentar o casco!”

Vanka voltou chorando à estrebaria

e Gorbakon logo indagou qual o motivo.

Assim que o soube, pôs-se a relinchar:

“Eu não lhe disse que essa pena traria azar?

Mas há esperança enquanto se está vivo:

diga ao seu Tzar que pensou no que faria;

que ele lhe dê uma medida de cevada,

uma tigela azul e outra encarnada.”

O CAVALINHO CORCUNDA XI

“E uma garrafa do licor mais fino;

que no fim dos três dias, voltará,

trazendo junto o Pássaro de Fogo.

Não perca tempo, vá fazer-lhe o rogo!

Logo a seguir, em meu lombo montará

e eu acharei para o pássaro o destino.”

O Tzar acedeu de boa vontade;

Vanka e o cavalo saíram da cidade.

Mas assim que das vistas se afastaram,

Gorbakon começou a galopar

com tanta fúria, que subiu nos ares!

Voaram sobre a terra e sobre os mares,

até o cavalo decidir pousar

em uma ilha afastada, onde encontraram

o Pássaro de Fogo... Mas era arisco:

de chegar perto não corria o risco!...

Vanka derramou o licor numa tigela

e a cevada na outra colocou;

veio o pássaro comer, mas assustado:

no terceiro dia, já ficou acostumado

e Vanka deu um salto e o agarrou,

para enfiá-lo num saco de nigela.

Gorbakon bem depressa alçou aos ares,

Sobrevoando a Terra e os sete mares!

E nessa noite, Vanka se apresentou

para entregar o pássaro ao Tzar,

cuja beleza o deixou maravilhado

e disse a Vanka que seria recompensado,

mas ele disse que nada queria ganhar,

se contentava com o prazer que demonstrou

o bom Tzar ao receber seu presente:

que só com isso já se sentia contente!...

O CAVALINHO CORCUNDA XII

Mas o Tzar mandou dar-lhe uma libré

com três mudas de roupa e ainda mais:

um saquitel de copeques bem pesado.

Ele deixou Gorbakon muito bem arreado,

mas não comprou um freio, que jamais

lhe apertaria a boca; adquiriu até

um par de estribos, para não mais precisar

um pulo dar-lhe para ao lombo lhe montar.

Mas a alegria de Vanka não durou.

Daí a uma semana, o cozinheiro

contou a história da Irmã do Sol,

filha da Lua, a Princesa Girassol,

Podsolnetchinka... e o palafreneiro,

que mais cheio de inveja ainda ficou,

foi depressa mentir para o Tzar,

que Vanka se gabara de a encontrar!

E o Tzar, que ainda era solteiro,

embora velho, ao ouvir de sua beleza,

decidiu que a queria desposar

e prontamente mandou a Vanka chamar.

“Nova tarefa lhe darei de igual nobreza.

Você me serviu bem, bravo estribeiro...

Quero que vá até a Terra do Arrebol

e me traga Podsolnetchinka, a Irmã do Sol!”

Vanka falou que não conhecia essa terra,

mas o Tzar não quis ouvir desculpa.

“Quando a trouxer, será bem recompensado;

caso contrário, cruelmente torturado!

Ivan Grozny eu sou! Senhor do prado e serra!

Ivan, o Terrível! E castigo toda a culpa

de quem minhas ordens ousar desatender!

Três dias lhe darei para me obedecer!...

O CAVALINHO CORCUNDA XIII

O pobre Vanka ficou desesperado

e foi falar com seu cavalo Gorbakon.

“Eu lhe falei que aquela pena traria azar!

Volte e explique que três dias não vão bastar

E que precisa dele um grande dom:

uma baixela de ouro bem tauxiado,

com copos e talheres sem desdouro

e um pavilhão, trabalhado em seda e ouro!”

“E todo tipo de doce e vitualha,

os melhores acepipes que tiver

e uma semana inteira para o prazo.

Caso o Tzar não quiser fazer-lhe caso,

diga que está então pronto a morrer,

mas que precisa ainda mais de rica toalha,

de uma mesa de madeira marchetada

e uma cadeira, também toda enfeitada.”

Com o pedido, o Tzar quase se engasgou;

ficaram os boiardos cheios de surpresa.

“Meu rapaz, grande é o seu atrevimento!”

“Majestade, ordenastes-me um portento!

Como quereis que atraia essa princesa,

senão com os belos presentes que mandou?”

Então o Tzar soltou forte gargalhada

e ordenou que lhe não negassem nada!

E Vanka ainda pediu uma carroça,

para lá dentro pôr todo o equipamento

e atrelou a ela Gorbakon,

que já partiu trotando, em belo som;

mas assim que se escapou do ajuntamento,

subiu aos ares, sem lhe fazer o peso mossa

e voou sem parar um dia inteiro,

até chegar da princesa ao paradeiro.

O CAVALINHO CORCUNDA XIV

Vanka montou a tenda numa praia;

colocou nela a cadeira e mais a mesa,

cobriu-a inteira com a formosa toalha

e sobre ela dispôs cada vitualha.

Eram bolos e licores, com certeza,

acepipes e iguarias de toda a laia!...

E ali aguardou, vestido de libré,

para do Tzar, seu senhor, mostrar a fé.

E no terceiro dia, viu chegar

a mais linda das barcas, tripulada

só por donzelas de grande formosura;

e dentre elas, em beleza pura,

desceu à praia Girassol, a encantada;

e diante dela Vanka se curvou:

“Linda princesa, aceite este presente,

que deixará o meu Tzar muito contente!”

A Princesa Girassol o avaliou:

“Você não me preparou uma armadilha?”

“Princesa, podeis ver, aqui estou eu,

só acompanhado pelo cavalo meu...”

Podsolnetchinka, que era a dona dessa ilha,

pelo belo pavilhão já se encantou.

Sentou-se à mesa, mas fez Vanka provar

cada alimento, antes de se deliciar.

Mais adiante, depois que estava satisfeita,

perguntou qual a razão desse jantar

e Vanka a informou, nesse momento,

que estava ali para propor-se casamento,

com seu senhor, o poderoso Tzar

a quem toda a sua terra era sujeita,

Rei de Todas as Rússias, generoso,

sábio, forte e de corpo bem formoso...

O CAVALINHO CORCUNDA XV

“E por que não veio ele mesmo me pedir...?”

“Senhora, ele não pode se ausentar:

o reino é imenso sob o seu cuidado

e dia e noite o mantém atarefado...”

“Se sua aparência sequer se assemelhar

à desse servo que veio me inquirir,

tal pedido posso até considerar...

Mas dê-me até amanhã para pensar...

A princesa então se retirou

e sua barca retornou ao alto-mar...

Vanka já se sentia bem cansado:

não dormia há três dias e, extenuado,

se deitou atrás da tenda e foi dormir.

Que o acordasse ao cavalo foi pedir,

mas o animal também adormeceu

voltou a princesa e nenhum deles percebeu...

Podsolnetchinka veio comer à vontade

e encontrou o belo moço adormecido;

até o cavalo estava ali deitado:

ficara com a viagem extenuado...

Ela sorriu, seu coração vencido:

Era este noivo que eu queria, na verdade!

Mas amanhã de manhã eu voltarei

e o restante do banquete comerei...

E quando Vanka acordou, sobressaltado,

a linda barca já se achava no horizonte...

Adormecido o seu cavalo achou.

“Gorbakon, por que você não me acordou?”

“É que eu fui beber água dessa fonte,

você também, não bebeu dela um bocado?

Foi essa água que nos fez dormir,

mas a tenda ainda está aí, a reluzir...”

O CAVALINHO CORCUNDA XVI

“Como o amo vê, sobram licores e alimento;

hoje é o terceiro dia e a princesa

certamente para aqui irá voltar

para a tenda e a mesa na sua barca colocar;

a sua resposta dará então, tenho certeza,

se está disposta ou não ao casamento...

Mas fique atento e não perca sua ocasião:

talvez precise aproveitar sua distração...”

E dito e feito! A princesa retornou

e de novo foi comer os alimentos.

“A minha resposta eu logo lhe darei,

mas vou guardar os presentes do seu rei.”

Vieram as servas, sem perder momentos

e até a carroça na sua barca se enfiou!

“Não perca tempo! Se arrepende quem descansa!”

Vanka pegou a princesa pela trança!...

E a fez montar em seu cavalo, bem depressa,

que alçou voo, sem perder mais tempo.

Vanka agarrou bem firme a sua princesa,

deixaram as servas na maior tristeza!

Voaram um dia sem mais contratempo.

Disse a princesa: “Não lhe fiz qualquer promessa,

você se aproveitou de mim e me enganou!”

Mas disse Vanka: “Eu só fiz o que o rei mandou!”

Contudo, conversaram muitas horas

e a princesa no seu ombro se encostou...

No último dia da semana, assim,

entrou o cavalo, galopando, no jardim...

Dela o Tzar logo se aproximou,

extasiado com a princesa e, sem demoras,

beijou-lhe a mão e a pediu em casamento,

mas ela disse: “Vá pedir o consentimento.”

O CAVALINHO CORCUNDA XVII

“De minha mãe, a Lua; de meu irmão, o Sol...

E depois, perdi um anel em alto-mar...

Só casarei quando o tiver no dedo...”

Mantinha assim acobertado seu segredo

de não querer mesmo com ele se casar.

O rei era velho e com nariz de anzol;

e percebeu que pelo povo era temido

e certamente não daria um bom marido.

E o Tzar chamou Vanka, novamente

E lhe falou: ”Vou adiar sua recompensa,

porque preciso outra vez do seu valor.

Se me atender, terá todo o meu favor,

eu o farei boiardo, com fortuna imensa,

sentar-se-á em meu conselho, igual regente,

mas quero que me traga a permissão

da Lua, sua mãe e do Sol, seu irmão.”

“Para que Netchinka se case comigo!...

Depois procure da princesa o anel

que ela deixou do dedo escorregar

em qualquer ponto, no fundo do alto-mar!”

“Mas como posso apresentar-me sem farnel?”

“Ricos presentes você vai levar consigo

e lhe darei de uma semana a duração:

é quanto basta para cumprir a sua missão.”

Mas a princesa logo intercedeu:

“Não, Majestade, não é suficiente,

É muito longe, levará mais do que um mês,

Não é só uma tarefa, deu-lhe três!

Minha mãe mora em lugar bem diferente

desse lugar que meu irmão escolheu

para erguer sua imponente moradia,

só se encontra uma de noite e o outro de dia!”

O CAVALINHO CORCUNDA XVIII

“O meu anel rebrilha como estrela,

igual a esta que trago na minha testa

e à segunda, que a reluzir balança,

presa na fita que me segura a trança...

Mas lá no fundo, seu brilho não se atesta

salvo a quem chega bem pertinho dela...

Não, Majestade, ele precisa ter um mês

para cada uma das três tarefas que lhe dês!”

“Dou-lhe os três meses e nem um dia mais!

E caso sua tarefa não cumprir,

eu mandarei prender os seus irmãos,

o pai e a mãe e queimar suas plantações!

Minha determinação deve seguir,

Sem que me faça esperar por demais!...

Quero casar-me com você, princesa,

e não se atreva a enfrentar-me a realeza!”

“E se você me maltratar, eu chamo o Sol,

a Lua, minha mãe, e o exército do céu!

Você será completamente derrotado

e o reino inteiro ficará assolado!..

As nuvens todas afastarão seu véu

e o Sol o queimará como um crisol!...”

O Tzar, meio assustado, desculpou-se

e mil presentes de seu tesouro trouxe.

E lá se foi, outra vez, o cavalinho,

atrelado a um carroção e, na boleia,

sentava Vanka, um pouco acabrunhado,

achando que no Sol seria queimado

ou então que sofreria morte feia

no frio da Lua ou na busca do anelzinho.

O seu cavalo sabia bem voar,

mas como iria lá no fundo mergulhar?

O CAVALINHO CORCUNDA XIX

“Foi no Mar Negro que perdi meu anel,”

disse a princesa, antes que partisse.

E o cavalinho voou para o horizonte,

até encontrar a mais bizarra ponte

que o continente europeu e a Ásia unisse.

“Esse é o Leviathan,” disse o corcel.

“É o rei dos peixes, mas encalhou há muito tempo,

por ter troçado do Rei-Sol por um momento...”

Aterrissaram no meio dessa ponte:

havia casas construídas e pomares,

até mesmo aldeias e trigais!...

Disse o Leviathan: “Não aguento mais!

Pastam rebanhos por muitos lugares,

usam meu sangue qual se fosse fonte!

Peçam ao Sol, por favor, me libertar!

Eu farei tudo para os recompensar!...”

“Sabe onde foi que a Princesa Girassol

perdeu o anel parecido com estrela?”

“De fato, não, mas posso descobrir,

um de meus peixes o terá visto reluzir...”

Para seus súditos o Leviathan apela,

porém há um século o aprisionara o Sol

e muitos deles nem sequer o conheciam,

enquanto os outros já de há muito não o viam.

Passou-se o tempo, porém ao fim de um mês,

apareceu um peixinho com o anel;

agradeceu-lhe Vanka e prometeu que pediria

que o Sol o livrasse do castigo que sofria;

daí a semana chegaram ao quartel

do exército do Sol, que em altivez,

mandou falassem primeiro com a Lua,

sua mãe prateada, que no céu flutua...

O CAVALINHO CORCUNDA XX

“Esses presentes,” disse a Lua, “são bonitos,

mas só darei o meu consentimento

depois de ver como se acha minha filha.”

E disse o Sol: “O Leviathan tornou-se em ilha,

só lhe darei o meu perdão nesse momento

em que partam de lá os meus aflitos

filhos, porque eu sou pai dos vegetais,

dos humanos e todos os outros animais...”

Volta, portanto, e diz ao Leviathan

que primeiro liberte os ocupantes

e só depois lhe darei o meu perdão;

que retirem essas árvores que lá estão,

pois sobre eles vigiarei todos os instantes

e meus trovões enviarei em rataplan,

para que não se demorem na tarefa,

a tempestade dia a dia mais espessa!

E diz depois também, ao teu Tzar,

que não me basta mostrar o anel de estrela

e me enviar os seus presentes mais valiosos,

pois desconfio dos homens poderosos;

primeiro quero ver minha irmã bela

e descobrir se quer mesmo se casar...

E o seu Tzar... Será um moço tão garboso

como você? Alto, esperto e vigoroso?

Vanka sabia não adiantar mentir,

já que eles iriam mesmo ao casamento;

e foi forçado assim a confessar

que já era velho e feio o seu Tzar...

“Pois muito bem... Será nosso o julgamento.

Até a sua capital sabemos ir...

Assim que o Leviathan me obedecer,

a seu castelo iremos, com prazer...”

O CAVALINHO CORCUNDA XXI

Assim Vanka se encontrou noutra enrascada:

primeiro, teria de convencer os habitantes

a se mudarem do dorso do Leviathan,

pois mesmo ouvindo do trovão o rataplan,

só transportar aquelas árvores gigantes

seria tarefa de uma inteira temporada...

E quando o Sol e a Lua o Tzar vissem,

bem difícil seria fazer que consentissem!

Mas quando a Gorbakon foi-se queixar,

o cavalo deu de ombros e relinchou:

“Bem que eu lhe disse que essa pena dava azar!”

Agora vamos, outra vez vou-lhe ajudar...”

E sobre o dorso do Leviathan assim voou,

lá no alto a tempestade a trovejar...

E ele avisava que, até o final do mês,

tinham de levar cada árvore e cada rez!...

Mas eles convencer-se não queriam

e então a Lua incrementou a maré

e o Leviathan começou a se mover...

Só então a gente iniciou a se mexer.

Colheram o trigo que já estava em pé

e os rebanhos ao continente transferiam.

Tinham medo do cavalo voador

e da estrela no anel de seu senhor!...

Já as árvores não queriam transportar,

porém a Lua lhes cortou a passagem

e a voz do Sol soou como um trovão!...

Finalmente, se organizou a multidão,

desenterraram o bosque, com coragem,

para depois à terra firme o transplantar;

as árvores puxaram com seus bois

e o Leviathan se sacudiu, logo depois!...

O CAVALINHO CORCUNDA XXII

Só então Vanka conseguiu voltar,

no dia trinta e um do último mês,

trazendo o anel de estrela da princesa

e o recado transmitindo, sem vileza:

“O Sol e a Lua virão, em sua altivez,

para assistir ao vosso desposar...

Prepare, então, o seu melhor festim,

eles trarão sua própria corte, enfim!...”

Ora, a princesa muito se alegrou,

mas o Tzar não ficou nada contente

em hospedar a corte do Rei-Sol

e da Rainha-Lua, a prata em seu farol:

sairia caro dar comida a tanta gente

e por se haver apaixonado lamentou...

Mas atentando de novo em sua beleza

achou que o preço bem valia essa princesa!

E desse modo, um banquete preparou,

como nunca na Rússia antes se vira!

Chegou o Sol com seu exército de raios,

soldados, generais, pajens e aios!...

Chegou a Lua que pelas nuvens gira,

das estrelas a coorte a acompanhou

e no castelo já quase não cabia

a multidão que consigo ela trazia!

E os cortesãos e os servos do Tzar

já não sabiam mais o que fazer!

Do lado do Sol, era quente por demais

e do da Lua só de frio havia sinais!...

Até o Tzar já pensava em adoecer,

entre o frio e o calor a se assentar!...

Mas o banquete, finalmente, acabou bem

e o Sol e a Lua foram dormir também...

O CAVALINHO CORCUNDA XXIII

Porém com a princesa conversaram

e perceberam que era contra o casamento

e que por Vanka se havia apaixonado:

esse era o noivo que queria do seu lado!

E a Mãe e o Irmão combinaram um portento

e no outro dia, ao Tzar interrogaram:

“Você é velho e feio, Girassol é bela,

como deseja casar-se com uma estrela?”

Depois de tudo, o Tzar se achou logrado.

Todo mundo obedecia à sua vontade!

Mas como combater o Sol e a Lua?

Com grande esforço, em humildade atua:

“Farei o necessário, na verdade,

por merecer um bem tão desejado!”

Já estava arrependido em ter nomeado

como boiardo Vanka, aquele desgraçado!

“Mas para tudo existe solução,”

explicou-lhe calmamente a meiga Lua.

“Você deve se banhar em Água do Sol,

em Água da Lua e, a seguir, como crisol,

em Água de Estrela, que fervendo estua...

Só deste modo cumprirá a condição.

E do terceiro dos banhos, sai formoso,

jovem e belo, forte e vigoroso!...”

O Tzar concordou, sem entender

o que estava, realmente, prometendo,

pois o Sol mandou ferver um caldeirão:

era a Água do Sol, em plena ebulição!

A Lua outro caldeirão já foi trazendo,

que com Água da Lua fez encher,

gelada a ponto de parar um coração

e quebrar dedos de cada pé e mão!

O CAVALINHO CORCUNDA XXIV

E a princesa fez encher com Água de Estrela

um terceiro caldeirão: leite fervente!...

E então disseram ao Tzar que se banhasse

em cada um dos três e assim ficasse

jovem formoso e de coração ardente,

merecedor de uma princesa assim tão bela!

Mas o Tzar, sentindo um medo verdadeiro,

disse que Vanka fosse pular primeiro!...

Pobre rapaz!... Ficou apavorado,

foi ao cavalo, que lhe disse: “É o seu azar!

Mas desta vez, não posso fazer nada!...”

Falou a princesa, com voz bem delicada:

“Vanka, querido, não tema se banhar,

eu lhe garanto que não será magoado!...”

Então Vanka reforçou seu coração

e se jogou no primeiro caldeirão!...

Todos prenderam a respiração,

porém Vanka saiu da Água do Sol

e se jogou no caldeirão de Água da Lua,

sem que o frio fizesse mal à pele nua;

e então pulou para dentro do crisol

da Água de Estrela, o leite em ebulição!

Dali saiu ileso e transformado,

mais alto e forte, só um pouco mais corado!

E o Tzar, ao ver o acontecido,

perdeu o medo e as roupas retirou...

Ao sentir o calor, ainda hesitou,

mas no primeiro caldeirão pulou!

Naturalmente, nem sobrenadou,

seu corpo inteiro transformado num cozido!

Os voiêvodos e boiardos se assanharam,

porém o exército do Sol não enfrentaram...

O CAVALINHO CORCUNDA XXV

Mas quando a princesa lhes propôs

que Vanka se tornasse o seu Tzar,

já começou a resmungar a maioria,

pois era um camponês, sem ter valia.

Porém o Sol os pôde dominar

e a Lua, com carinho, os predispôs...

E assim se realizou o casamento,

prestando os jovens o mais sincero juramento!

E Vanka demonstrou-se um bom Tzar,

procurando de seu povo o bem-estar;

chamou o pai e a mãe para sua corte,

mas aos irmãos não concedeu a mesma sorte,

pois da fazenda os obrigou a cuidar,

que nem castigo seria, a bem julgar,

pois camponeses eram de condição,

embora Vanka dominasse a sua nação!

E assim viveram Vanka e Girassol,

Governando o país por longos anos.

Gorbakon ganhou a melhor estrebaria

e até uma égua, que botou em cria!...

Mas como ocorre com todos os humanos

e quantos vivem sob a luz do Sol,

Vanka envelheceu e já esperava a morte,

porém a princesa lhe deu formosa sorte.

Era uma estrela e transformou-o num cometa,

que a visitava, sempre que quisesse;

e o seu filho mais velho foi Tzar,

seu neto e seu bisneto em seu lugar!...

Por gerações o povo russo não padece

e assim se cumpre sua ambição secreta

de servir a um generoso governante

que às leis do reino demonstrasse ser constante!

William Lagos
Enviado por William Lagos em 10/07/2012
Reeditado em 30/07/2012
Código do texto: T3770573
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