DEIXEM A VELHA VOTAR !

Domingo é dia de votar.

Votar já foi coisa melhor, as pessoas tinham esperança.

Mas ainda vale participar da democracia.

Nem que seja por obrigação.

Obrigação tinha eu no tempo em que era presidente de mesa.

É meu jovem, acredite, naquele tempo o voto era num papel impresso.

O eleitor colocava um "X" no nome escolhido.

Saia todo pimpão e só ia ter decepção depois de algum tempo.

Então inventaram a maquina eletrônica.

Pedi para sair; tinha muito tempo de serviço e achei que no dia da eleição eu passaria melhor meu tempo pescando.

Mas o costume vira vício e no dia da eleição fui até minha secção ver como as coisas estavam se saindo.

Não demorou muito a velha apareceu acompanhada do filho.

Pois é, tinha me esquecido de falar da velha.

Pessoa conhecida na cidade, de origem árabe, simpática, extrovertida e com hábito de falar alto.

Era amiga de todos...

Menos do novo presidente da secção de voto.

Nós, da velha turma do voto de papel, já estávamos acostumados aos seus hábitos nem sempre rigorosamente dentro da lei eleitoral.

Agíamos pelo "bom senso".

Com mais de noventa anos, enxergando pouco, ela levava o filho mais velho para dentro do espaço reservado e secreto da urna de votação.

O filho a auxiliava a colocar o "X" no lugar certo.

Mas o novo presidente da agora urna eletrônica, cheio de modernidade, de rigor com as normas eleitorais, senhor da sua autoridade, que lhe fora conferido pelo juiz eleitoral, disse "não!".

Não, o filho mais velho, (que devia ter por volta de setenta anos), não acompanharia a mãe até o espaço reservado ao sacrossanto voto.

Não, o filho não poderia ultrajar o inalienável direito da velha senhora exercer o voto secreto.

O filho tentou argumentar.

A velha mãe faz questão de votar (embora pela idade não seja obrigada), e sempre se confunde onde colocar o "X" no lugar que ela quer.

Os velhos fiscais de partido também interviram; a senhora era conhecida, uma doçura de pessoa, que fazia tudo na companhia do filho em que confiava plenamente.

Até os mesários que não foram substituídos pela modernidade da urna eletrônica intervieram: se ela tinha dificuldade em colocar o "X" imagine agora em apertar botões brancos, verdes, vermelhos, cheio de números.

Melhor abrir exceção disseram todos.

O novo presidente da secção manteve a negativa.

De modo algum o "segredo" do voto seria quebrado.

A velha teria que ir só para o reservado da urna.

Dura lex, sed lex; (no cabelo só gumex!).

Ou como diz Thomas Paine: "O governo não é governado por princípio algum e nem pelo bom senso; ele pode transformar um mal em bem, ou um bem em mal, tal como queira. Em síntese, o governo é um poder arbitrário".

Os princípios e o bom senso devem estar com as pessoas, porque "uma lei boa pode se tornar má na mão de um mau juiz; e uma lei má pode se tornar boa com um bom juiz".

O presidente da mesa, naquela decisão, dava exemplo de mal juiz.

Nisso, esqueci de dizer, já havia se formado uma pequena multidão de eleitores na porta da secção, mais fiscais, curiosos, com aquele "deixa não deixa".

Desacompanhada a velha contrariada foi para a cabine votar, pela primeira vez, numa urna eletrônica.

O filho angustiado ficou na porta, como lhe determinara o presidente da secção.

A velha sumiu atrás do biombo de papelão.

Resmungou isso e aquilo em uma língua estrangeira.

Praguejou em árabe.

Tudo em voz alta.

Ocorreu-me que havia razão para a insistência da velha senhora em votar. Sua idade, pois no Brasil o voto feminino só foi conquistado em 1932, no governo Vargas.

Ela vivenciou a conquista; e queria exerce-lá.

A velha resmungou em árabe mais um pouco, saiu fora da urna e gritou com toda força:

____ Nagib, como eu faço para votar no Maluf?

O presidente da secção assombrou-se mas não teve como a fazer calar, porque na multidão que se formava ela procurava pelo filho a gritar:

____ Nagib, como eu voto no Maluf?

O filho apresentou-se e o imponente presidente da urna eletrônica achou melhor não intervir.

O filho ajudou a senhora a digitar o que queria.

Depois foram embora com o filho pedindo:

____ Mamãe, não fale alto.

Ela elevou mais a voz para que todos ouvissem:

____ Como não? Não queriam que eu votasse no Maluf, Nagib!!

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Obrigado pela leitura.

Domingo lembre-se: devemos ser sensatos e aceitar

que cada pessoa tem o direito de votar em quem

acha melhor.

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"Senso comum; os direitos do homem e dissertação sobre os primeiros princípios de governo" - editora L&PM Pocket, custa uma merreca e pode ser encontrado em qualquer banca de revista.

Nele você pode ler coisas como: "Quando os direitos dos homens são iguais, todos percebem que proteger os direitos do outro é a melhor proteção para si mesmos."

Ou seja, tá faltando Paine em muita gente hoje em dia; é bom ler.

setembro / 2016