Enigma

Pouco antes das quatro da tarde, uma senhora, aparentando sessenta anos, entrou na drogaria. Disse que se chamava Almerinda.

— Há algumas horas estou tentando comprar um remédio, mas ninguém consegue decifrar esses garranchos do médico — explicou ela ao homem do outro lado do balcão.

Marcos, farmacêutico jovem, pegou a receita e começou a examinar. Tratava-se de uma situação rotineira, com o qual ele não concordava.

— Esses médicos não tomam jeito — disse ele à Dona Almerinda. Com a desculpa de excesso de trabalho, eles escrevem mal e nós é que temos de nos virar. Vamos ver. Hum!!! De fato está bastante confuso. Vou pegar uma lupa e buscar mais claridade.

Pouco depois retornou. Havia consultado todos os vendedores, e até os mais experientes se julgaram incapacitados para interpretar o conteúdo do documento. Mas ele não desistiu.

— Dona Almerinda, vamos lhe fazer algumas perguntas. De acordo com as respostas, tentaremos diagnosticar a sua patologia e assim aproximar um pouco mais do conteúdo da sua receita. Concorda?

— Perfeitamente — disse ela.

Diversas pessoas que aguardavam atendimento, em pé, no corredor, entre o balcão e as prateleiras, se interessaram pelo desfecho da conversa e acompanharam, com surpreendente paciência, o desenrolar do caso.

— Então vamos lá, disse Marcos! Por que a senhora foi ao médico?

— Porque eu e o meu marido brigamos.

— Interessante — observou ele, é incomum alguém procurar um médico por causa de um atrito conjugal. Geralmente se consulta um psicólogo, um advogado ou, em casos mais dramáticos, chama-se até a polícia.

— Você tem razão — exclamou ela, acontece que logo depois do arranca-rabo, senti uma forte dor no lado esquerdo do peito. Achei que fosse um infarto.

— Aí então seu marido chamou o médico? — perguntou outro funcionário da farmácia.

— Que nada. Ele nem deu bola. E eu estava com tanta raiva que preferi pegar um táxi e procurar atendimento na UPA da região.

— Que absurdo, que falta de senso — reclamou o colega desolado.

Marcos interrompeu a conversa, dando a entender que a prioridade não era discutir a relação do casal, e sim identificar logo o remédio, para que ela iniciasse o tratamento.

A essa altura, a receita já havia perambulado pelas mãos dos outros clientes, também interessados em ajudar. O problema passou a ser compartilhado por todos. Como é comum aos curiosos, não faltaram perguntas nem palpites. Mas o tempo foi passando e não se chegava a um consenso...

Os alarmistas diziam que Dona Almerinda sofria de angina, enquanto outros defendiam a tese de espasmos musculares, causados pelo stress emocional. Ela escutava em silêncio. Desnorteada, tentava se lembrar do que o médico lhe dissera. O debate prosseguia intenso. Ora o foco eram as doenças, ora os remédios, mas, invariavelmente, voltavam a atenção para a receita. Uma jovem universitária garantiu que a primeira letra do nome da droga era F de farinha, e não P de pato, como a maioria afirmava em coro. E assim, quanto mais as letras se revezavam, mais confusa ficava a querela. Quando Marcos, assustado, sentiu que perdera o controle da situação, um senhor de cabelos grisalhos, usando óculos escuros, decidiu socorrê-lo com uma sugestão inusitada:

— Atenção, silêncio, por favor — disse ele. Se continuarmos assim não chegaremos a lugar algum. Temos que ser objetivos. Proponho escolher e decidir através de votação os pontos divergentes sobre o enigma da receita.

A proposta, que agradou a maioria, consistia em dois sufrágios. Para o primeiro, seria preparada uma lista das seis causas mais citadas sobre as dores no peito de Almerinda. Escolher-se-ia assim a “causa doris”.

Na segunda votação se definiria o número de letras do nome do medicamento e, em seguida, qual era cada uma delas. Para garantir maior legitimidade, alguém sugeriu votações em dois turnos, porém a proposta foi logo rejeitada. Na ausência de urnas eletrônicas, havia um consenso sobre o risco de Dona Almerinda bater as canelas ali mesmo, antes do fim da apuração.

Enquanto as regras e as coligações eram finalizadas, vendedores ambulantes entraram na farmácia oferecendo água, picolé, amendoim torrado e até churrasquinho, com ou sem farofa. O clima de campanha estava propício para os negócios.

Em meio a toda essa balbúrdia, contudo, alguém teve a brilhante ideia de ligar para o médico que havia emitido a receita. O plantonista da UPA já terminara o seu turno, porem foi localizado pelo celular, e logo, para alegria da maioria e frustração de alguns, esclareceu-se o mistério.

Almerinda foi medicada e passa bem.