INDO AO DENTISTA
 
     Algumas estórias que ouço por aí, são interessantes. Gervásio, aquele caseiro que cuida dum sítio meu, sempre me surpreende com uma ou outra estória, ou fato, inclusive algumas eu presenciei e posso afirmar e testemunhar sua veracidade. Mas eis que há uns dias passados, ele recebe a visita de seu pai, Seu Ataulfo, sujeito um tanto rústico, acostumado viver isolado e a sobreviver com o que tem à sua volta, viera passar uns dias em companhia do filho e aproveitar pra fazer alguns exames de saúde, inclusive necessitando ir ao dentista por conta de uma dor que vinha sentindo.
     A estória que vou contar aqui, e ele jura que é verdade e, como disse antes, após testemunhar tanta coisa estranha por aí, acredito piamente. Bem... Como ia dizendo, a estória que vou contar aqui me foi passada por Seu Ataulfo quando estávamos sentados à mesa, frente a um banquete caipira, com tudo a que tinha direito em comemoração pela presença do pai de Gervásio. Logo que chega do dentista, Seu Ataulfo dá aquela risadinha cínica e comenta: “Esse povo da cidade é tudo mole... Se treme todo por causa de uma ‘broquinhazinha’ de nada...” No que eu aproveitei pra indagar sobre como tinha sido a visita dele ao dentista, e ele me veio com a seguinte narrativa:
     - “Uai sô! Como Gervásio não pôde me levar, primeiro eu tive que achar adonde era que o Doutor Dentista atendia a gente. E tô lá procurando sem saber o lugar certo, me veio a idéia de ficar observando pra ver se via alguém por ali pra poder perguntar onde ficava o consultório. Não demorou muito e vi um pessoal saindo duma casa, com a mão tapando a boca, com cara de tá sentindo dor, aí eu pensei: ‘Só pode ser ali, né?’ Assim que entrei, uma mocinha muito jeitosinha me atendeu e eu expliquei porque tava ali. Ela me pôs sentado num banco macio, mas reparei que tava meio escuro, e ela me falou que estava com falta de energia elétrica naquele bairro, mas que isso não era problema, o Doutor iria atender assim mesmo.
     - “Fiquei esperando, com aquela moça na minha frente, com um rasgo na blusa que vinha lá de cima até o meio da barriga, deixando ver metade dos peitos, e de tempos em tempos, cruzando as pernas pra lá e pra cá, que eu já tava ficando agoniado com aquilo. Eu sou homem de bem mas não tô morto, num é mesmo? Mas não demora muito ela me chama e fala que já é minha vez e fala pr’eu entrar.
     - “Depois de um punhado de perguntas, que nem sei bem pra quê, ele me manda sentar naquela cadeira, onde a gente fica quase deitado, com a boca aberta. Ele pergunta o que houve, em respondi que havia quebrado o dente quando tentei quebrar um coco de macaúba, inclusive, na hora, nem notei que havia quebrado... Só reparei um tempo depois. O dentista logo falou: ‘A gente restaura isso rapidinho, faz agora mesmo... O Senhor vai querer com ou sem anestesia?’ – Eu logo respondi: Pra quê, Doutor. Uma coisica de nada. Eu tô acostumado ao batente do dia-a-dia na roça, num vai ser uma broquinha de nada, que vai me derrubar. Pode mexer à vontade aí que eu agüento. ‘Só tem um probleminha, Seu Ataulfo, como estamos sem energia elétrica, vou ter usar esse aparelho aqui, é a mesma broca só que movida no pedal, é um pouco mais antiga mas funciona bem’. Não tem problema, eu falei, por mim pode começar já!
     - “O Doutor deu um grito lá –Perci!! – chamando um garoto de uns dez anos, no que foi prontamente atendido. Ele explica: ‘Como eu já não tô mais em forma, preciso contar com a energia dessa garotada. Espero que não se importe’. A pedaleira estava quebrada e o dentista havia adaptado com um quadro de bicicleta, uma forma de fazer funcionar aquele motorzinho antigo, e eu logo vi aquelas correias de couro girando a broca, numa velocidade até boa sô... bbiiiizzzz!!!
- “Mexe daqui e dali, com aquele motorzinho zunindo no meu ouvido, vez ou outra aquilo derrapava e ia até a gengiva, e ele só enxugava mais ou menos e continuava, num determinado momento para de funcionar, assim de repente. ‘Travou a broca dentro de seu dente’, me fala o Doutor – ‘Mas vou dar um jeito’. Vi que ele foi até uma caixa de ferramentas e retorna com um alicate. Ele segura a broca com o alicate: ‘Se doer você fala que eu paro’. Eu só acenei pra ele ir frente, dando a entender que ele tava diante de cabra macho, num era esses mofinas da cidade grande.
     - “Ele puxa, sacoleja pra lá e pra cá, tentando tirar a broca que tava entalada no dente, sem resultado. Enquanto ele tava mexendo na minha boca, eu falei : Hahais hum hô em-henhenho... (vou traduzir aqui pra melhor entendimento, uma vez que grunhidos fanhos enquanto mexem em nossa boca, só dentista entende): Mas num tô te entendendo, Doutor. Já disse que pode fazer tudo aí sem medo. Cê ta mexendo com cabra macho, e não esses delicados que costumam vir aqui. Faz o seguinte: Pega essa broca aí e põe no modo impacto, que vai rapidinho, eu tenho um almoço me esperando... Ele até sorriu: ‘Bom, se é assim, então vamos lá...’
- “Ele engatou novamente a broca, girou a chaveta que muda pra modo impacto, que a broca soltou rapidinho. E eu falando (já disse que dentista entende os grunhidos...), continua, continua... E ele continuou, com aquela broca trepidando até a alma. Vez ou outra me segurava pra não sair trepidando fora da cadeira. O Doutor chama a secretária pra ajudar a segurar, coisa que nem relutei, achei foi bom ela agarrada ali comigo, vez ou outra, naquele sacolejo, ela era obrigada a passar a perna por cima pra segurar melhor, ou até enxugar minha baba com um lencinho de papel o que a forçava a se jogar pra cima de mim, mostrando ainda mais a abertura do vestido... Mas como era jeitosinha e eu não podia passar vexame procurei um jeito de me distrair daquela situação toda. Mas alegria de velho dura pouco... Logo chega mais um cliente procurando o doutor e este manda ela ir lá pra atender. Ficou ele me segurando com a perna e quase montado em cima de mim. Não tinha jeito: agora, até terminar, era procurar me distrair. E nem precisou esperar muito... Aquele sacolejo todo deu até uma certa dormência, sabe que me deu sono, com aquele barulhinho – ‘brohrohrohtótórohroh, - aquele sacolejo na cachola, com os miolos querendo virar gelatina... Num demorô muito e eu já tava era sonhando.
     - “Cheguei a sonhar com a danada da secretária, que nem naquela música do cabra que dorme na praça. E justamente no melhor da festa, acordei com ele batendo de leve no meu rosto: ‘Acorda, seu Ataulfo... já terminei aqui’. Acordei meio no susto, olhei prum lado e outro. A secretária já não tava mais ali, tinha sido um sonho mesmo... O meleque me olhava com ‘aqueles olhão’ de curiosidade. Bati os dentes uns nos outros fechando e abrindo, vendo se tava tudo no lugar. Não senti nada. Eu falei: Foi rápido né? – ‘Que nada. Até que demorou um pouquinho. Perci ainda teve que ir buscar cimento, que o meu tinha acabado. Como o Senhor disse que tava com pressa, eu pedi que trouxesse argamassa de azulejo mesmo, com secagem mais rápida. Ficou tinindo de bom!’. Bati de novo os dentes. Tava bom mesmo...”
     - Aqui tô eu, doido pra comer aquela pururuca que você me prometeu, filho. Pode mandar que meus dentes tão tudo novinho, novinho...
     Eu cá sorrindo murmurei pro Gervásio:
     - Chaveta de impacto é ótimo...
     Seu Ataulfo ouviu pela metade meu comentário:
     - Ótimo tá a cara daquele torresmo ali. Passa lá pra mim...
 
 
 
 
 
Walter Peixoto
Enviado por Walter Peixoto em 23/05/2015
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