MEDO

(Entra em cena com som de latidos)

Morro de medo de cachorro! Não sou um homem medroso, mas tenho medo de algumas coisas. Afinal, todos têm medos. Todo mundo tem medo de alguma coisa. Até que não tem medo, tem medo de ter medo pra ninguém dizer que ele tem medo. Por exemplo: minha filha tem medo de palhaço. Foi difícil entender isso. Ela chorava copiosamente quando eu brincava com ela. E chorava mais ainda quando eu tirava o nariz. Tem gente que tem medo de injeções. Minha mulher tem medo de lagartixa. Quem tem medo de lagartixa? A coitada faz mal a ninguém. Mas eu não vim falar do medo dos outros né. Então vamos aos meus medos. Todos os meus medos tiveram ou têm seus motivos.

Quando era criança, lá pelos idos de 1979, lembro-me do meu primeiro medo traumatizante. O medo da morte. Um tal de Skylab, um satélite artificial, ia cair na Terra. Todos os dias eu ficava sentado embaixo da mesa da cozinha, chorando igual a uma mocinha, gritando que não queria morrer. Medo de morrer. Hoje não tenho mais. Já tive medo de fantasmas também. Mas passei a ver tantos fantasmas, todos os dias que até me acostumei. Agora mesmo estou vendo um sentado ao lado dele e outro ao lado dela.

Lembro-me de um apelido que começou com um segundo medo na minha vida. Laranjeiro. Meu pai pra me assustar, dizia que o laranjeiro, uma versão feirante do homem do saco, ia me levar se eu não fizesse o que minha mãe pedisse. Quando o velho gritava na esquina, LARANJEIROOOOOOO! Eu corria desesperado e me escondia no topo de uma amendoeira e só saia de lá na noitinha. Uma vez dormi lá em cima. É que meu irmão ficou a noite todo imitando o meu algoz, gritando o mantra infernal. E quem disse que descia? Um dia resolvi enfrentar o velho. Quando ele chegou próximo ao meu portão, eu fui até ele e encarando-o com ar de homenzinho, disse: Escuta aqui velho. Não tenho mais medo de você! Ouviu? Então não adianta falar que vai me levar nesse saco que eu não acredito e não vou correr mais. Ele me olhou fixamente, deu uma risadinha de canto de boca e começou a abrir o saco. Eu corri... Depois minha mãe me disse que ele só ia me dar uma laranja.

O tempo foi passando e esses medos de infância foram sumindo. Da série medo de bichos. Tenho sim um medo da porra de lacraia. Certo dia estava eu dirigindo em plena Dutra, quando percebo alguma coisa se movendo no teto do meu carro. Quando olhei, tinha uma lacraia enorme, daquelas bem pretas, com a cabeça em posição de mergulho no meu colarinho. Ela ia descer pelas minhas costas e ia parar em minha valinha. E se ela achasse o sumidouro? Eu ia ser violentado por uma lacraia. Tirei o sapato, isso tudo dirigindo, e bati nela. Caiu no assoalho ainda se movendo, e foi um Deus nos acuda. Eu tentando estacionar o carro e ao mesmo tempo pisar na lacraia com o outro pé que estava com sapato. Eu não podia ouvir o funk “vai lacraia, vai lacraia” que me arrepiava todo.

E, entrando na fase “enta” me restou o medo por viajar de avião ou embarcações. Em todas eu tenho um motivo que potencializou esse medo. Indo para Navegantes, no Sul do país, em uma tal de Azul, passei por um dos momentos mais tensos da minha vida. Antes de decolar, vi um mecânico conversando com o piloto, dizendo que estava tudo bem, e que o piloto ficasse tranquilo que “aquilo” não era nada. Só estava vazando um pouco de óleo... Já fiquei encucado. Daí o avião decolou. Na ida, uma turbulência de assustar. O piloto disse que íamos passar por uma pequena região de turbulência, bem tranquila. Não acreditem em pilotos, eles mentem. O avião balançava mais do que ônibus passando pelas ruas de Jardim Primavera. Mas o pior foi quando chegamos perto de pousar em Navegantes. No momento do pouso, o avião arremeteu. Subiu, subiu, subiu. Em direção ao Oceano. E ninguém dizia nada. Todos nervosos. Até que sai a aeromoça de dentro da cabine do piloto, com um copo d’água na mão, tremendo mais do que mar revolto. Ela disse que o trem de pouso não abriu e que teríamos que ir para Porto Alegre, porque a pista de lá era mais extensa e seria preciso aterrissar o avião de barriga. Mas que o piloto disse que estava tudo bem. O piloto disse? Vamos morrer. Olha o medo de morrer de novo. Eu comecei logo a tremer. Uma mulher começou a passar mal e foi atendida por um médico que estava entre os passageiros. Minha pressão aumentou. E ao meu lado, um camarada com a calma dos monges budistas, me dizendo para ficar calmo que tudo ia ficar bem. Ficar calmo? Tá maluco oh Dalai Lama!? Eu quero ficar nervoso! Eu tenho direito de ficar nervoso! E cala essa boca ou vai sentar em outro lugar. MAS ME DEIXA FICAR NERVOSO! A tripulação sentada de mãos dadas. O choro copioso de pessoas em desespero, inclusive eu. Já víamos as ambulâncias se movimentando quando um barulho seco aos meus pés nos tranquilizou. O trem abriu. Todos se abraçando e o Dalai do meu lado com um sorriso de Buda. Nem tenta me abraçar!

Convidaram-me para um daqueles passeios de escuna. Ilha Grande. Depois de muito relutar, pois tenho um medo de mar que me melo literalmente. aceitei. Diante disso, com algumas condições. Ter ao meu lado ao menos três coletes salva vidas. Ficar ao lado do bote salva vidas e em nenhum momento algum sequelado me dizendo pra ficar calmo. Fomos. Comecei a tremer já no embarque. Quando o barco tomou rumo, meu intestino e estômago decidiram meu destino. Foi horrível, fiquei o tempo todo de olhos fechados. Chegando ao destino, um cara falou para eu fixar meu olhar em algo para não ter a tentação de olhar para o mar. Então, fixei meu olhas às bundas. Bundas de biquíni. Mas não durou muito tempo. É que minha mulher percebeu. Perdi meu ponto fixo. Na volta, o pior, que parecia não existir, aconteceu. Do nada, umas nuvens muito pesadas tomaram o céu. Começou a trovejar e o mar ficou revolto. Um mau cheiro tomou conta do barco. É eu fiz nas calças, ou melhor, nas cuecas. Vomitei como nunca na minha vida. E para piorar um daqueles desavisados veio me dizer para eu ficar calmo e me trouxe um copo de ÁGUA com açúcar. Não deu. Bati nele...

E para encerrar. Medo de ficar broxa. Não é medo de broxar! É medo de ficar broxa pra sempre. Quando fiz uma cirurgia há dez anos. Esta cirurgia ia demorar 45 minutos e demorou 6 horas. Acordei atordoado. Chapado de Anestesia. E a primeira coisa que me veio à cabeça foi verificar se meu bilau estava lá. Sei lá. Vai que eles se enganaram e... Fiquei feliz. Ele estava lá. E se estava funcionando que era a questão. Na noitinha, veio uma enfermeira. Lembro que ela era loirinha. Lindinha. Eu estava com a bexiga cheia e ela veio colocar o dreno na uretra. Quando ela começou a assepsia, limpando ele com aquele líquido geladinho e com as mãos pequenas, macias e quentes, o sujeito começou a tomar forma e volume. Ela chamou as outras pra ver. Eu continuei fingindo que estava sedado e curtindo. É, ele estava funcionando. Ufa! Ah, e ainda funciona!

Bom, é isso. Aqui estão expostos meus medos. Além destes, não tenho mais medo de coisa alguma.

(Sai de cena correndo após o barulho de sirenes de polícia).