Joga bosta na Geni porque a Silvia é piranha
Fui doar sangue no Hospital das Clínicas de São Paulo, na semana passada. Na triagem, respondi às perguntas de praxe. Aquelas que a gente vai disparando NÃO a torto e a direito. Geralmente, passo essa fase muito rápido: “NÃO, NÃO, NÃO, NÃO e mil vezes NÃO”. Bato o meu recorde de nãos nesses dias que doo. E eu doo sempre. Mas nesse dia, acho que a mocinha que faz as perguntas tirou o dia para gozar com a minha cara. Acho que demorei uns quinze minutos pra conseguir sair da sala dela.
– Ingeriu bebida alcoólica nas últimas doze horas?
– Não.
– E você costuma ficar com os olhos fechadinhos assim, mesmo sóbrio?
– Não, só quando eu fico com sono por ter que responder a muitas perguntas.
– Fez tatuagem nos últimos doze meses?
– Não.
– E essa tatuagem no seu peito, que dá pra ver pela gola V da sua camiseta?
– Fiz há 17 anos. Está bom para a senhora?
– Esteve resfriado nos últimos sete dias?
– Não.
– Mas eu ouvi você espirrando no corredor.
– É que eu tenho alergia a chatos. E não é nada com a senhora. É uma auto-alergia.
– Viajou nos últimos doze meses para estados onde há prevalência da malária, como Acre, Amapá, Amazonas, Rondônia, Roraima, Maranhão, Mato Grosso, Pará ou Tocantins?
– Não, mas acho que seria mais prático se eu tivesse ido doar sangue por essas bandas.
– Quantas parceiras sexuais nos últimos doze meses?
– Poucas. Sou um cabação que quase não come ninguém. Mas juro que eu me esforço.
– Já manteve relação sexual com pessoa do mesmo sexo?
– Graças a Deus, nunca. Plagiando o Roger Moreira: eu gosto é de mulher.
– Ahahaha… você é engraçado.
– Obrigado. A senhora também.
– Você acha mesmo?
– Não.
– Por quê?
– Porque o meu sentimento agora não é de alegria, é de irritação. Estou quase tendo que espernear e bater o pé para convencer você que não.
– Se você fizer isso, eu vou dar muita risada e vou gostar muito. Vai ficar lindo. Você com essa cara toda séria batendo o pezinho. Mas infelizmente, nesse caso, não poderá doar sangue, pois, infelizmente, existe a portaria 153/2004, da ANVISA, que proíbe gays de doarem sangue. Ahahahahaha… mas eu sei que você não é, não precisa olhar pra mim bravo desse jeito. Você fica engraçado bravo. Ahahahaha… Grávidas também não podem doar sangue. Você está grávido?
– É mesmo necessário que eu responda a essa pergunta?
– Não. Eu só perguntei pra sacanear você. Ahahahaha…
– Obrigado. Não estou numa entrevista de doadores de sangue. Estou num show humorístico e sou o ator que serve de escada para a protagonista brilhar.
– É a primeira vez que saio da linha, de modo tão surreal, como agora. O mérito é todo seu, senhor Marcelo. Saiba que sempre sou muito profissional. Mas, não sei por que, senti uma energia diferente em você e quis brincar um pouco. Vai lá doar o sangue. Você é sangue bom em todos os sentidos. Gostei de você. Prazer, o meu nome é Silvia.
– E não é pra menos. Sua mãe acertou no seu nome. Faço minhas as palavras do Marcelo Nova.
– Ooooolha… eu sou funcionária pública. Isso é desacato, viu?
– Eu sei. Por isso não digo o que eu gostaria de berrar no seu ouvido, mas dou graças pelo grande cantor que já fez isso por mim na década de oitenta.
– Você não pode falar muito. Seu nome é Marcelo. Já se esqueceu da música “Tu é gay que eu sei” ou “Rap do Marcelinho”, da banda Rosa Choque? Fez sucesso no final dos anos noventa.
– Não só eu esqueci como essa música foi apagada da memória coletiva. O que é bom, como o Marcelo Nova, fica. O que é lixo é sepultado.
– Mas eu não esqueci, viu? A música dizia “Falam do Marcelo coisa bem profunda / Casou pra disfarçar / Só pra descansar a bunda / Solta essa franga, Marcelo / Solta essa bicha, menino / Que bom ser do babado / Ser bicha é divino”.
– Obrigado por desenterrar. Mas eu nunca fui zoado e nunca vi nenhum Marcelo sendo zoado. Já as Silvias… A sua é bem pior: “Vive dizendo que me tem carinho, mas eu vi você com a mão no p… do vizinho. Ô Silvia…”
Saí, enfim, daquela sala desgraçada e fui logo para o que interessava: a doação. Pensei que a minha expiação de pecados havia findado, mas logo que deitei na poltrona, senti aquela picada maldita na veia. Quase xinguei quem não tinha nada a ver com isso: a mãe da enfermeira. Soltei um “filha da…”, mas fiz uso das reticências e mantive o nível. Olhei para o crachá da vampiresca mulher e pude ler o seu nome: Geni. Quem vê o nome Geni e não lembra do Chico Buarque que atire a primeira pedra. Ou melhor, que atire a primeira bosta. Pois foi isso que aconteceu. Eu fiquei com vontade de jogar bosta na enfermeira que enfiou aquela merda de agulha no meu braço.
Fui embora daquele banco de sangue correndo mais do que barata de chinelo. Mas voltarei daqui três meses. Apesar de tudo, sei que a única forma de sentir uma satisfação plena é fazendo o bem. Só que não saía da minha cabeça a seguinte situação hipotética: imagina só, uma mulher que nasceu lá pelos anos de 1950, 1955, que foi agraciada com o nome de Geni e teve uma filha chamada Silvia. Nossa, meus queridos! Que família duplamente agraciada! A mãe teve a chance de ser bastante achincalhada em 1978. Aí veio os anos oitenta e foi a vez da filha. Que legal!
Sorte têm as Camilas, Anas Julias e Amélias. Que foram devidamente homenageadas por Nenhum de Nós, Los Hermanos e pelo grande Mário Lago. Para as Danielas sobrou uma musiquinha meia-boca do Biquíni Cavadão e as Sônias tiveram que engolir o Leo Jaime. Música com nome de mulher eu sei que vende. E crônica com nomes de mulheres? Será que vende também? Abre a carteira aí, cambada de mãos-de-vaca. Ah, também não quero mais nem saber. Agora eu quero ouvir música. Como eu tenho bom gosto, no meu MP4, ouço Lenine. Música: “Todas elas juntas num só ser”.
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– Ingeriu bebida alcoólica nas últimas doze horas?
– Não.
– E você costuma ficar com os olhos fechadinhos assim, mesmo sóbrio?
– Não, só quando eu fico com sono por ter que responder a muitas perguntas.
– Fez tatuagem nos últimos doze meses?
– Não.
– E essa tatuagem no seu peito, que dá pra ver pela gola V da sua camiseta?
– Fiz há 17 anos. Está bom para a senhora?
– Esteve resfriado nos últimos sete dias?
– Não.
– Mas eu ouvi você espirrando no corredor.
– É que eu tenho alergia a chatos. E não é nada com a senhora. É uma auto-alergia.
– Viajou nos últimos doze meses para estados onde há prevalência da malária, como Acre, Amapá, Amazonas, Rondônia, Roraima, Maranhão, Mato Grosso, Pará ou Tocantins?
– Não, mas acho que seria mais prático se eu tivesse ido doar sangue por essas bandas.
– Quantas parceiras sexuais nos últimos doze meses?
– Poucas. Sou um cabação que quase não come ninguém. Mas juro que eu me esforço.
– Já manteve relação sexual com pessoa do mesmo sexo?
– Graças a Deus, nunca. Plagiando o Roger Moreira: eu gosto é de mulher.
– Ahahaha… você é engraçado.
– Obrigado. A senhora também.
– Você acha mesmo?
– Não.
– Por quê?
– Porque o meu sentimento agora não é de alegria, é de irritação. Estou quase tendo que espernear e bater o pé para convencer você que não.
– Se você fizer isso, eu vou dar muita risada e vou gostar muito. Vai ficar lindo. Você com essa cara toda séria batendo o pezinho. Mas infelizmente, nesse caso, não poderá doar sangue, pois, infelizmente, existe a portaria 153/2004, da ANVISA, que proíbe gays de doarem sangue. Ahahahahaha… mas eu sei que você não é, não precisa olhar pra mim bravo desse jeito. Você fica engraçado bravo. Ahahahaha… Grávidas também não podem doar sangue. Você está grávido?
– É mesmo necessário que eu responda a essa pergunta?
– Não. Eu só perguntei pra sacanear você. Ahahahaha…
– Obrigado. Não estou numa entrevista de doadores de sangue. Estou num show humorístico e sou o ator que serve de escada para a protagonista brilhar.
– É a primeira vez que saio da linha, de modo tão surreal, como agora. O mérito é todo seu, senhor Marcelo. Saiba que sempre sou muito profissional. Mas, não sei por que, senti uma energia diferente em você e quis brincar um pouco. Vai lá doar o sangue. Você é sangue bom em todos os sentidos. Gostei de você. Prazer, o meu nome é Silvia.
– E não é pra menos. Sua mãe acertou no seu nome. Faço minhas as palavras do Marcelo Nova.
– Ooooolha… eu sou funcionária pública. Isso é desacato, viu?
– Eu sei. Por isso não digo o que eu gostaria de berrar no seu ouvido, mas dou graças pelo grande cantor que já fez isso por mim na década de oitenta.
– Você não pode falar muito. Seu nome é Marcelo. Já se esqueceu da música “Tu é gay que eu sei” ou “Rap do Marcelinho”, da banda Rosa Choque? Fez sucesso no final dos anos noventa.
– Não só eu esqueci como essa música foi apagada da memória coletiva. O que é bom, como o Marcelo Nova, fica. O que é lixo é sepultado.
– Mas eu não esqueci, viu? A música dizia “Falam do Marcelo coisa bem profunda / Casou pra disfarçar / Só pra descansar a bunda / Solta essa franga, Marcelo / Solta essa bicha, menino / Que bom ser do babado / Ser bicha é divino”.
– Obrigado por desenterrar. Mas eu nunca fui zoado e nunca vi nenhum Marcelo sendo zoado. Já as Silvias… A sua é bem pior: “Vive dizendo que me tem carinho, mas eu vi você com a mão no p… do vizinho. Ô Silvia…”
Saí, enfim, daquela sala desgraçada e fui logo para o que interessava: a doação. Pensei que a minha expiação de pecados havia findado, mas logo que deitei na poltrona, senti aquela picada maldita na veia. Quase xinguei quem não tinha nada a ver com isso: a mãe da enfermeira. Soltei um “filha da…”, mas fiz uso das reticências e mantive o nível. Olhei para o crachá da vampiresca mulher e pude ler o seu nome: Geni. Quem vê o nome Geni e não lembra do Chico Buarque que atire a primeira pedra. Ou melhor, que atire a primeira bosta. Pois foi isso que aconteceu. Eu fiquei com vontade de jogar bosta na enfermeira que enfiou aquela merda de agulha no meu braço.
Fui embora daquele banco de sangue correndo mais do que barata de chinelo. Mas voltarei daqui três meses. Apesar de tudo, sei que a única forma de sentir uma satisfação plena é fazendo o bem. Só que não saía da minha cabeça a seguinte situação hipotética: imagina só, uma mulher que nasceu lá pelos anos de 1950, 1955, que foi agraciada com o nome de Geni e teve uma filha chamada Silvia. Nossa, meus queridos! Que família duplamente agraciada! A mãe teve a chance de ser bastante achincalhada em 1978. Aí veio os anos oitenta e foi a vez da filha. Que legal!
Sorte têm as Camilas, Anas Julias e Amélias. Que foram devidamente homenageadas por Nenhum de Nós, Los Hermanos e pelo grande Mário Lago. Para as Danielas sobrou uma musiquinha meia-boca do Biquíni Cavadão e as Sônias tiveram que engolir o Leo Jaime. Música com nome de mulher eu sei que vende. E crônica com nomes de mulheres? Será que vende também? Abre a carteira aí, cambada de mãos-de-vaca. Ah, também não quero mais nem saber. Agora eu quero ouvir música. Como eu tenho bom gosto, no meu MP4, ouço Lenine. Música: “Todas elas juntas num só ser”.
Texto publicado na Revista Literária da Lusofonia – Décima Terceira Edição – abril/maio de 2015 – Páginas 09 e 10.
Marcelo Garbine (Mingau Ácido) – @mingauacido – mingauacido.com.brCrônicas - Humor - Poesias - Letras de música -
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