Saudades da TV Pirata
(Rafinha Bastos X Vinicius de Moraes)
(Rafinha Bastos X Vinicius de Moraes)
Fazia tempo que eu não encontrava a Vanessa. Muitas lembranças inesquecíveis. Momentos vividos que ficaram para a nossa história. Daqueles que fazem com que nós recostemos a cabeça na poltrona e fiquemos tentando entender o que aconteceu. Como algo tão gostoso simplesmente acabou? Odiando o tempo por ele nos permitir que vivamos momentos tão maravilhosos uma única vez. Como todo bom saudosista, fomos passar a tarde num tradicional café de São Paulo. Meus olhos marejavam e proporcionava-me a sensação de que eu havia tomado coca-cola com bala de hortelã e o arrepio da nuca não cessava. Isso durante toda a narrativa da carismática Vanessa, com quem tive o privilégio de compartilhar tantas tardes de sol, sentindo a brisa na face, debaixo de uma árvore, no Parque do Ibirapuera. O momento estava romântico demais e – como em Hollywood – na minha vida não existe espaço para muita água com açúcar. Entre três ou quatro ingestões do doce líquido, o meu corpo sempre pede um copinho de Vodka polonesa, fazendo com que o momento que, até então, era puramente romântico, se transformasse em uma comédia romântica, sem perder a classe e o estilo. Já frequentava, há muitos anos, aquele café e conhecia o casal de donos. Dona Genoveva e seu Jacinto eram os típicos ex-trabalhadores braçais, que começaram dando duro como garçons e calharam de estar no lugar certo, na hora certa. Aquele clássico desfecho do patrão que não tem dinheiro para pagar os direitos trabalhistas aos empregados e atrasa salários, férias e décimos terceiros durantes anos a fio, até ir à falência e oferecer o próprio estabelecimento comercial para quitar a sua dívida com os empregados. Até aí, muito bom. Só que o casal esquecera-se de sua origem humilde e pisava grotescamente nos empregados ou se achava o máximo por qualquer migalha de pão estendida à zelosa serventia. Dona Genoveva era um cão chupando manga, por dentro e por fora. Era, provavelmente, um gene de família, pois suas duas irmãs também eram assim. Nos bastidores, as três germanas eram chamadas de Sem Graça, Desgraça e Nem de Graça. À dona Genoveva, cabia, carinhosamente, a terceira alcunha. Não era possível sustentar piedade pela petulante senhora dos couverts e drinks. Toda vez que algum sentimento de complacência começava a se aflorar no benévolo espírito humano, a dona Genoveva comparecia com o seu semblante mais assustador do que o da mulher do Nazareno, personagem humorístico do grande Chico Anysio, e mandava uma grosseria preconceituosa pior do que a do Boris Casoy, quando xingou os garis e disse que eles ocupavam “o mais baixo grau da escala do trabalho” e não tinham o direito de desejar feliz ano novo “do alto de suas vassouras” (quem não viu, veja no You Tube: Boris Casoy – garis). Por assim dizer, não sei quem é pior, se são as pessoas que maltratam aqueles que cumprem a importante missão de fazer tudo ficar bem feito para que não precisemos nos preocupar com o trabalho mais árduo e possamos desempenhar nossas tarefas, amparados pelo zelo dos braçais, ou se são os hipócritas, que pensam que estão fazendo o favor de considerar os empregados como gente. Seu Jacinto tinha um zóião arregalado, sobre os quais só faltavam a cobertura de óculos em formato de sutiã, e um sorriso escancaradamente arreganhado, que deixava à mostra 67% de sua gengiva esbranquiçada e fazia questão de anunciar a todos que aqueles retangulozinhos brancos que ele carregava dentro da boca eram uma protuberante dentadura. Foi sábia a perspicácia do astuto que teve a sacada de batizá-lo de Boca de Ouro. Ao contrário de sua odienta muiézinha, não era explicitamente grosso, mas se achava o bom samaritano quando permitia que sua faxineira deixasse de lavar a louça do jantar para ir à escola, no período noturno, ou que o cozinheiro fosse dormir em casa com a família, após cumprir suas oito horas de expediente diário. O requintado café, naquela noite de sábado, contava com a presença de um talentoso pianista. Os preparativos para recebê-lo exigiram grande maestria dos funcionários, que, orquestralmene, se empenharam de modo sincrônico na limpeza e organização do ambiente, deixando-o apto para a apresentação do artista. A pérola de seu Boca de Ouro foi que, ao permitir, gentilmente, que os funcionários, que viabilizaram tudo, assistissem ao músico, ele ficasse os apontando para os amigos e dizendo: “oooolha, o pessoal da faxina… não são bonitinhos? Eles estão sentadinhos, vendo o pianista tocar. Eu deixei!”. E os amigos ressonavam em coro: “ooooh!” E a cabecinha do seu Boca virava de ladinho, 25 graus para a esquerda, para fazer uma coreografia perfeita com o seu sorriso dentadurístico medonho. Dona “Nem de Graça” fitava com cara feia (perdão pelo pleonasmo) a boa ação do marido e perguntava que cultura musical que os empregados tinham para poder apreciar isso. Mas ela nem sabia quem foi Mozart ou Louis Armstrong. Praguejava pelos cantos sua costumeira frase “A gente dá a mão e eles querem o braço inteiro. A gente dá sopa e eles querem sobremesa”. É, dona “Nem de Graça”, que absurdo, não? Toda recordação aconchegante que a eloquência da Vanessa me proporcionava era substituída por uma comicidade pronta que confundia os meus sentimentos. Caramba, alguém me esclareça: é pra eu me emocionar com a prosa poética da minha ex-namorada ou é pra rir do show do casal que parecia ter fugido de um picadeiro? A minha mente já havia até mesmo composto uma trilha sonora para acompanhar aquele pastelão. A outra trilha, a da recordação romântica, já havia destoado do clima fazia tempo. Misericórdia! Mas as coisas possuem uma tendência natural de sincronização. Se estamos andando pela rua e ao nosso lado passa uma parada militar, de repente, nos pegamos dando passos no mesmo ritmo que a música da banda. Isso ocorre sempre. Desconfio que tenha alguma relação com a necessidade humana de socialização. Nós, humanos, preferimos o suicídio à exclusão social. É fato comprovado estatisticamente. Acho que é por isso que os quatro integrantes da mesa ao lado fizeram questão de entrar na onda do seu Boca de Ouro. O senhor de idade, com um bigode longo e enrolado, que parecia ter ganho uma licença físico-quântica para sair um pouquinho do século XIX e nos visitar no século XXI, chamou a atenção do seu amigo que emitia a sua opinião sobre a preservação da cultura dos índios: “meu jovem, não seja politicamente incorreto, diga povo da floresta e não índios”. O obediente companheiro, apesar de mudar de assunto, foi ligeiro ao dizer que era necessário que os paulistanos fossem servidos com aparelhos de telefones públicos sustentados por postes mais baixos, para oferecer acesso às pessoas pequenas. O contemporâneo de Dom Pedro I sorriu satisfeito. A abominável palavra “anão” não havia sido pronunciada. E essa não era a única mesa do café que quis dançar a valsinha. Cada mesa tinha o seu estilo de integrantes e, cada um, à sua maneira, bailava ao comando do Boca de Ouro. Meus ouvidos são de leproso – se os politicamente corretos me permitirem usar esse termo – e eu conseguia ouvir o que era dito duas meses à frente. Nela, uma moçoila, com um olhar apavorantemente indignado, falava mal do Rafinha Bastos (já é a segunda crônica em que eu o defendo, mas juro que não sou seu advogado e nem estou apaixonado pelo humorista). “Como é que ele tem a audácia de dizer que mandaria o pinto dele para a APAE porque comprou uma camisinha de efeito retardado?” O processo havia sido concluído em primeira instância, com a sensata sentença do juiz de direito que, obviamente, não enxergou nenhuma ofensa na piada, e julgou improcedentes as acusações dos autores. Agora, está circulando pelo You Tube, um vídeo em que portadores de deficiência mental pedem para Rafinha falar isso na cara deles. Um dos integrantes do vídeo até exibe um cartaz com a frase: “Fala pra mim, Rafinha Bastos”. É, tiozinho, não é brincadeira, procure você mesmo no You Tube (fala pra mim, Rafinha Bastos). Tem até a divulgação de uma # (hashtag) e de um e-mail para você apoiar o vídeo e pedir para fazer parte dele. O que você está esperando? Até eu me prontifiquei. Amanhã mesmo quero que me filmem. Não, não. Eu quero agora! O meu cartaz terá o dizer: “Rafinha, você é muito malvado”. Mas quem foi que mandou os deficientes dizerem essa frase? Quem escreveu e colocou o cartaz na mão de um dos deficientes? Quem ficou ofendido por causa da bendita camisinha do Rafinha? Quem saiu ganhando com a liminar judicial que proibiu a venda do DVD que continha essa piada e fez o artista amargar um grande prejuízo? Os que idealizaram o vídeo querem o quê? Que sintamos pena dos deficientes mentais? Para que ser tão apelativo emocionalmente? Será que eles duvidam da inteligência das pessoas que estão assistindo ao vídeo? E o pior de tudo é que a solidária amiga da moçoila acompanhou a indignação com o grito: “RETARDADO É ELE”. Ué, a palavra retardado serve para ofender? Quem é o preconceituoso? Rafinha não xingou os deficientes mentais, apenas fez um trocadilho com o nome dado a um tipo de preservativo. Os ofendidos são os que vêem sujeira em tudo. O modo como enxergamos o mundo do lado de fora é um reflexo do que temos dentro da gente. E o vídeo termina com um menino dizendo que, antes, admirava o Rafinha e, agora, já não o admira mais. Levando-se em consideração que a piada do Rafinha foi feita há mais de dois anos, é, no mínimo, estranho que um garoto de tão pouca idade tenha tido tempo e maturidade suficiente para formar um bom conceito sobre o humorista e, como se não bastasse tamanha sapiência precoce, ainda reformular as suas intelectuais impressões e mudar de opinião. Não, imagina, nenhum adulto mandou o menino falar isso. Não há nada de artificial nesse vídeo. E as pessoas que o fizeram são puras, corretas e detentoras da verdade absoluta. Rafinha deve queimar eternamente no fogo do inferno. Cabra ruim! A terceira integrante da mesa do bem, ainda lembrou que o Rafinha Bastos disse, enquanto ainda fazia parte da bancada do programa CQC, que as mulheres do estado de Rondônia são feias. Isso não pode! Só o Vinicius de Moraes podia dizer “as feias que me desculpem, mas a beleza é fundamental”. Vinicius de Moraes tinha licença poética para isso, Rafinha Bastos, não. Cadê o certificado de licença, Rafinha? Quem autorizou? O fato é que o Vinicius teve a sorte de morrer em 1980, muito antes dessa modinha desgraçada. Enquanto escrevo essa crônica, ouço a música “O Mundo” do Capital Inicial: “Se eu for ligar para o que é que vão falar, não faço nada”. Parece que algumas pessoas estão fazendo o favor de suprir a ausência dos militares no poder. É o saboroso paladar da censura. Gostoso, né? E eu estou morrendo de saudades da TV Pirata, programa humorístico do fim da década de oitenta e início da década de noventa. Tempos em que as piadas podiam ser feitas. A geração Y, provavelmente, não viu.
Marcelo Garbine (Mingau Ácido) – @mingauacido – mingauacido.com.br
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