Professor Ruy desce para o inferno
 
Ao contrário do gato Garfield, eu não tinha nada contra as segundas-feiras, mas desde fevereiro que eu estava enfezado (cheio de fezes) com o – oficial – segundo dia da semana, mas que, cá entre nós, sabemos que de segundo não tem nada. Quem inventou que os dois dias da semana em que descansamos e nos divertimos são, respectivamente, sétimo e primeiro, cheirou cola. segunda-feira é o primeiro dia da semana, cacete! O motivo do meu descontentamento com o dia preferido do Bom Bandeirante Paulistano (vai à merda, Mingau) eram as aulas do já finado Professor Ruy K. (que Belzebu o tenha). No insosso ano de 1999 (não aconteceu nada de bom pra mim naqueles 365 dias), o Professor K. lecionava econometria (estatística aplicada à economia). E não era por isso que eu o odiava. Não fora ele quem escolhera qual curso superior eu faria. O Problema do mestre – mestre não, graduado, porque ele era da época em que não se exigia mestrado para os professores universitários e, quando começaram a exigir, faltavam poucos anos para ele se aposentar e resolveram deixá-lo por lá mesmo – era que ele passou a maior parte de sua vida num mundo ainda bipolarizado por Estados Unidos da América e União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Ele não sabia pensar de outra forma e, mesmo faltando menos de um ano para o século XXI, seu hobby preferido era cutucar as viúvas de Karl Marx (e eu era uma delas). Entrava eu no jogo do velhinho e dava os meus chiliques em sala de aula. E achava lindo. Contava o catedrático da velha guarda que, na época do regime militar, um aluno, descontente com sua nota na prova bimestral, se vingou dele o denunciando como comunista para o DOI-CODI (aliás, esse nome DOI-CODI soa como algo tão intelectual, mas se é coisa de polícia, não pode ser intelectual). Ele foi capturado na saída da faculdade, encapuzado e levado para os porões do DOPS. Interrogado por dois milicos, o professor começou a ficar nervosinho. Percebendo que haviam cometido um engano, propuseram soltar o docente e lhe dar o dinheiro para o taxi, mas Ruy K. não aceitou a oferta e, batendo perninha, fez os dois homens levá-lo até a casa dele. Após os pedidos de desculpas, despediram-se dele. Mas K. objetou e obrigou os valentes belicosos a adentrarem sua residência e explicarem tudo à sua esposa, que jamais acreditaria se a história fosse por ele contada. É… é uma historinha interessante e seria mais interessante ainda se Ruy a tivesse contado apenas uma vez, mas aquele velho gagá contava as mesmas histórias todas as aulas. O conteúdo programático que se danasse. Um professor picareta que enrolou uma classe o ano letivo inteiro. Entretanto, tio Ruy não era tão mal assim. Escolhia uma aula do bimestre para expor vinte e cinco minutos da disciplina curricular, assim, havia o que perguntar na prova. E se um aluno fizesse uma pergunta? O espertalhão preceptor ficava elogiando a sábia pergunta do instruído universitário durante dez minutos e dizia que seria mais produtivo se a dúvida fosse sanada na biblioteca da faculdade, pois se ele desse a resposta de mão beijada, o aluno não cultivaria o hábito de pesquisar e não assimilaria o conhecimento de um modo muito produtivo. Era um perobento fora de série. Idolatrar o livre comércio e vomitar em cima dos filhos de Trotsky não eram os únicos passatempos daquele tagarela dos púlpitos, ele também gostava de deixar claro que a imunidade dos endinheirados era uma característica normalíssima do sistema no qual quem pode mais chora menos: “que se revoltem os fracos e os porcos que chafurdem na lama, mas não existe nenhum rico atrás das grades no Brasil”. Minha face ruborizava de ojeriza e uma rajada de metralhadora ficava engasgada no meu gogó: não era que o desgraçado estava certo? Comecei a rezar todas as noites, pedindo encarecidamente que só um, apenas um FDP de um rico fosse parar no xilindró, só para que eu pudesse ter o prazer de calar a boca do maldito discípulo de Adam Smith. Minhas preces foram atendidas e, na câmara de vereadores de São Paulo, veio abaixo o fraudulento esquema de Hanna Garib e sua trupe. Era o desmantelamento da máfia dos fiscais (meus textos são um show de atualidades), no qual quase todos os vereadores estavam envolvidos. O episódio foi tão revoltante que o Jornal da Tarde distribuiu adesivos para automotores com os dizeres “eu tenho vergonha dos vereadores de São Paulo”. Eram todos profissionais do assalto aos cofres públicos, com exceção de um amador. O nome dele: Vicente Viscome. Seu curral de votos era a zona leste da cidade e seu patrimônio contava R$16 milhões (valor estimado, na época, e não atualizado). Políticos ladrões são facilmente digeridos pelo aparelho digestivo dos brasileiros, mas arrogância não! A arrogância estraga tudo. Pode levar a minha carteira, mas não olhe no fundo dos meus olhos e me diga que és um excelente trombadinha. Isso ninguém admite. Até os artistas brilhantes e as mentes acima da média perdem o encanto quando um homem deixa a altivez do ego subir à cabeça e emite, desdenhosamente, aquele sorrisinho soberbo. Ninguém suporta. Vicente Viscome fez isso. Após conseguirem, heroicamente, barrar mais uma abertura da CPI da máfia dos fiscais, todos os malandros vereadores quedaram-se humildes, menos o senhor Vicente Viscome, que começou a gargalhar adoidado e fazer gestos obscenos no meio do plenário. Aquela imagem foi exaustivamente reprisada em câmera lenta e o paulistano médio ficou com sangue no zóio. Atendendo ao clamor do populacho, um repórter global foi perguntar a Viscome o que havia ocorrido. Viscome respondeu: “A corrupção existe mesmo. Desde quando eu era criança, eu já ouvia falar em corrupção.” Viscome, Viscome… um malandro deve ser inteligente, Viscome… malandro burro é a coisa mais feia que há. É desnecessário lembrar que, de uma violenta porcentagem dos 55 vereadores que estavam envolvidos, Vicente Viscome foi o único a vestir o macacão e a boina com faixas horizontais pretas e brancas, com um número de três dígitos estampado no peitoral da pomposa vestimenta. Quase que eu fiquei com dó do Viscome. Com aqueles olhinhos baixos, frágeis como os de um cervo diante da mira da espingarda de um caçador, ele se perguntava por que só ele havia tomado na tarraqueta. Mas o meu maior prazer não era vislumbrar aquela cena tão rara no Brasil Capitalista de Todos os Corruptos, era sim saber que, naquela segunda-feira, finalmente, eu iria poder disparar os projéteis que estavam entalados na minha garganta desde o princípio de fevereiro de 1999. Iria ser um alívio tão grande e seria ótimo para as minhas entranhas. Mas… “Coração de Estudante” de Milton Nascimento, começou a tocar como música de fundo quando eu entrei na sala de aula. Professor Ruy K. expirara… Parem essa maldita música! Quando eu tinha oito anos de idade, eu já tive que escutá-la a tarde toda naquele dia 21 de abril de 1985, na antiga TVS de Silvio Santos, enquanto a câmera filmava sem parar aquele aviãozinho sem graça. E eu ainda perdi o programa do Bozo. E agora, quem seria alvo dos projéteis que eu estava pronto para disparar? Calma, calma, Marcelão, vamos serenar a fisionomia, assim como o restante dos corpos docente e discente, e lamentar a morte do digníssimo mentor da educação que, naquele momento, estava defronte ao generoso Satanás, que lhe dava a opção de escolher entre inferno capitalista e inferno comunista. “E qual é a diferença?”, indagou o Professor Ruy K. “Quase nenhuma”, respondeu o capeta, “apenas que no inferno comunista existe racionamento de lenha”.

Marcelo Garbine (Mingau Ácido) – @mingauacido – mingauacido.com.br

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