Pequenos ajustes

Enquanto isso, Deus e o anjo Gabriel conversavam tranquilamente...

– Senhor, dizem, pelos quatro cantos do universo, que grandes mudanças estão por ocorrer. É verdade ou seria mais uma daquelas fofoquinhas do demônio?

– Não, Gabriel. Desta vez as articulações do maldito pouco tem haver com os fatos.

– Então está confirmado: o Senhor resolveu ceder às pressões dos humanos e fazer ajustes nas leis da vida?

– Não me restaram alternativas. Constatada a ineficácia das sempre passivas reclamações contra as injustiças, eles partiram para me desafiar. Sabe qual a nova tática? Qualificaram-me de retrógado, atrasado e até obsoleto.

– Blasfêmia!

– Frequentemente se esquecem por quem foram criados. Chulos mortais!

– Desculpe minha intromissão, mas não fica bem o Senhor se referir à sua própria prole usando adjetivos tão deselegantes.

– Estás coberto de razão, Gabriel, mas tem hora que até os deuses perdem a linha.

– Apenas por curiosidade: essas modificações afetariam também a nós, os anjos?

– Claro que não. Ou existem colegas insatisfeitos com a vida divina?

– Não, pelo contrário. Felicidade total. Alguns às vezes reclamam do modelo das asas, alegando estarem fora de moda; outros se dizem sobrecarregados, principalmente os “anjos da guarda”, porém nada que não possa esperar.

– Vamos agir imediatamente! Forme uma comissão de anjos para propor um novo design das partes aladas. Quanto aos “anjos da guarda”, sugiro procurar algum aplicativo que lhes permitam “proteger” à distância.

– Ah! Observo que o Senhor já mergulhou fundo na era tecnológica. Seria o efeito da pressão lá de baixo? Talvez o contágio provocado pela globalização – em Vosso caso universalização – é claro. Existem rumores de que o Senhor, inteligente que é, foi visto pegando carona em uma nuvem acompanhado pelo incansável Steve Jobs, nosso inquilino recente. É a maçã mais uma vez querendo fazer história...

– Aí reside exatamente o maior problema, Gabriel. Os terráqueos acreditam cegamente que os seus grandes cientistas vão acabar resolvendo a maioria dos problemas que enfrentam. O prazo, entretanto é desanimador. Séculos serão necessários para que tal façanha se concretize. Por isso me desafiam a ganhar o prêmio Nobel de ciência.

– Resolvendo qual problema, Senhor?

– Pergunta desnecessária: o da morte!

– E o Senhor, para não parecer démodé, pretende enfiar a mão neste vespeiro? Vida e morte são duas coisas inseparáveis. Disso eu já sabia mesmo antes de virar anjo.

– Não! Eu não intenciono acabar com a morte. Já deixei claro. Inegociável! Nestas condições eles podem pegar o Prêmio Nobel e...

– Mais uma vez, calma, Senhor. Sei que em Vossa magnífica grandeza mesmo as mais vulgares expressões mundanas são sempre revestidas pela aura da santidade, mas é preferível não dar maus exemplos.

– Desculpe Gabriel.

– Não, por favor, Senhor.

– Descartada a possibilidade de se acabar com a morte, eles apresentaram uma alternativa – sem direito a prêmio – que eu fiquei de estudar.

– Vejamos que sugestão foi posta à mesa, Senhor.

– Já que as pessoas não podem ser eternas, o que eles me pedem é que todos morram bem velhinhos, se possível, com mais de 120 anos. Existe um consenso de que o sofrimento dos amigos e parentes é sempre muito menor. Acham que o morto já deu o que tinha que dar e, portanto, tá na hora mesmo de ir.

– Faz sentido!

– Eu disse que a proposta é razoável, mas que antes avaliassem o impacto na organização da sociedade. Estou aguardando a resposta. Pelo visto eles terão que fazer uma profunda reforma no Sistema de Previdência Social, pois assim como está não há como sustentar tanta gente por muitos anos.

– Quando então o Senhor acha que eles terão tudo resolvido?

– Em se tratando deste assunto acho que vou esperar alguns séculos, principalmente por causa dos brasileiros. Neste intervalo teremos tempo suficiente para fazer as mais belas asas que os anjos já sonharam...