FÁBULAS FABULOSAS ou Classicozinhos Infantis Revisitados - CAPÍTULO I
Sapatinho Vermelho era uma dessas meninas que detestavam usar vestidinhos cor-de-rosa, daqueles cheios de babadinhos e rendinhas e frescurinhas mais, e tampouco quaisquer daqueles delicados e empiruados adereços próprios das delicadas meninas de todas as épocas e lugares. Seu figurino predileto eram os bermudões frouxos, uma velha camiseta do flamengo, o indefectível boné com a pala virada para trás e um inseparável par de tênis vermelhos de cano longo, daí seu apelido.
Numa linda tarde de sol, a mãe de Sapatinho pediu a ela que fosse levar uma cestinha com um pouco de comida e alguns remédios para sua avozinha, que morava num bairro afastado da aldeia.
-- Mas veja lá, Sapatinho: não vá atravessar a floresta! Há muitos perigos rondando por lá, como trombadinhas, estupradores, vereadores, deputados, empreiteiros, técnicos de informática e advogados que ficam de tocaia para assaltar o primeiro incauto que passar.
Contudo, como a menina não queria pegar um ônibus, porque todos estavam sempre lotados e, além disso, tinham que dar uma longa e demorada volta até chegar lá, Sapatinho resolveu desobedecer sua mãezinha e decidiu atravessar a floresta.
Lá ia a menina, saltitando e cantando alegremente, quando de súbito surgiu à sua frente um enorme lobo guará, o qual foi logo perguntando:
-- O que você leva nessa cestinha, menina?
-- Tô levando uns trecos pra minha vó.
-- E onde mora sua avozinha?
-- Na periferia da periferia do favelão que fica pra lá da floresta.
O lobo, então, sem demora partiu para a casa da pobre velhinha, a fim de comê-la -- não no sentido bíblico, mas no sentido gastronômico --, para depois disfarçar-se de avozinha, esperar pela Sapatinho e então comê-la também.
* * *
Ao chegar no barraco da boa velhinha, Sapatinho surpreendeu-se com a aparência da vovó, que estava um tanto diferente da usual e, portanto, começou a perguntar:
-- Vovó, por que estes olhos tão arregalados?
-- É a catarata, Sapatinho. Eu quase não enxergo mais, então tenho que abrir muito os olhos para poder vê-la melhor...
-- E por que este nariz tão inchado e grande?
-- É a rinite alérgica, Sapatinho. Esse barraco vive empoeirado e embolorado e a minha artrite reumatóide não me permite fazer a faxina...
-- E por que essa boca tão grande?
-- É por causa da minha nova dentadura, Sapatinho. Como a minha aposentadoria é uma mixaria, não posso encomendar uma decente num dentista de verdade. Então fui à feira e comprei uma usada, mas como não enxergo direito, escolhi uma cujo defunto antigo usuário tinha um bocão enooorme, deste tamanho!...
Neste instante, o lobo guará chegou ao barraco, atrasado, ofegante, faminto e furioso por ter seus planos atrapalhados.
Tudo ia bem no começo, pois ele conhecia todas as trilhas e atalhos da floresta. Porém, quando ia a meio do caminho, viu por entre as árvores a silhueta do temível caçador segurando sua AK-47 numa mão e, na outra, um enorme saco ensangüentado cheio de bichos caçados e mortos. Então não lhe restou alternativa, a não ser esconder-se por um tempo, esperar o caçador partir, para só então dirigir-se ao barraco da vovó.
Lá chegando, mesmo estando cansado e contrariado, rosnou e uivou e terminou pulando sobre as duas indefesas vítimas.
Acontece que o caçador estava justamente passando por ali e ouviu aquela barulheira toda. Entrou correndo pelo barraco adentro, já empunhando sua AK-47 mas, desastrado, tropeçou no último degrau, caiu todo troncho e deixou cair a sua poderosa arma.
Sapatinho nem hesitou! Agarrou o trabuco e abriu fogo em cima do lobão!
Porém, um fiscal do Ibama que também estava passando por ali, terminou por autuar o caçador por porte de arma ilegal, deu voz de prisão à Sapatinho por matar um animal cuja espécie estava em risco de extinção e ainda lascou uma bruta multa na vovozinha, por ter construído seu barraco numa área de proteção ambiental.
Moral da história: quem não tem cão, caça com AK-47, mas tem que tomar cuidado com o fiscal do Ibama...