SÃO JOSÉ DOS BEZERROS - CIDADE SESQUICENTENÁRIA

“Venho de um lugar...

Onde bem cedinho já escutava o canto do sabiá.

Moro muito longe de todo ego

e vaidade deste mundo!”

Paula Monteiro

Sou de um tempo e lugar em que os comboios eram lentos, tão lentos que pareciam cansados da viagem. Apesar do horário arrependido, a hora de vinda do trem servia de referência para todos: “o trem das três e vinte” ou o “trem das oito horas da noite”, quem não lembra? Na estação é que tudo acontecia: as boas vindas ou o choroso até Deus, separação traumática porém cheia de esperança de um provável retorno, o golpe definitivo da partida. Tudo era tão lento e esfumado, um misto de boa vinda e de um adeus para sempre que se convertia em irrealidade. A despedida como a quebra de um elo em minha vida aconteceu no meu primeiro aeroporto, o dos Guararapes. Voar é a própria encarnação da poesia. Mas embarcar em um avião exige despesa de afeto carente de poesia.

Nasci e vivi em meandros de cidades – Garanhuns, Caruaru e Bezerros. Ainda criança, despertei para a vida ao sabor das águas límpidas do Rio Ipojuca. Dona Santinha de Zé Cazuza lavando roupas e pondo-as a quarar sobre as gramas da margem do rio, ao sabor do sol de Bezerros. Enquanto ela batia na pedra a roupa molhada, eu brincava fazendo cacimbas, fazendo barquinho de papel. Preguiçosas águas que se apegavam às margens. Uma ou outra vez um pequeno barco conduzia turistas que ia navegando pelo rio afora. As andorinhas beijando as águas do rio e dona Santinha dizia que eles estavam lavando as vestes de Jesus. A estação ferroviária obedecia aos contornos dessa líquida paisagem. Em meu inocente entendimento considerava o comboio uma espécie de barco e a plataforma da despedida, como o “cais” onde as pessoas agitavam os lenços brancos. Para mim, os gestos lentos do trem que partia não resultavam de limitação motora, eram, na verdade, um gesto nobre de despedida. Uma espécie de carinho para essas pequenas mortes, que são as despedidas. E me despedi, parti em direção à grande cidade do Rio de Janeiro, onde permaneço até hoje até um dia voltar à Bezerros e morrer em seus braços acolhedores. Principiei esta homenagem à minha terra evocando a estação e o Rio Ipojuca pois essa dupla compunham a “sala de visitas” de Bezerros. Como hoje comemoramos o sesquicentenário de Bezerros, vou me ater à homenagens pura e tão somente, esquecer o Rio Ipojuca podre, sujo, seco e sem viço dos dias de hoje. Esquecer que o trem não mais existe, a famosa ponte de ferro abandonada, sem conservação. Esquecer que a bela praça Duque de Caxias não mais existe, conseguiram transformá-la em mausoléu. E os coqueiros que ladeavam o rio, como estão? Eram tantos os coqueiros que bailavam ao sabor do vento que vinha do mar e hoje podemos contá-los, tornaram-se raros. Eu sou do tempo que encontrava pintores reproduzindo a beleza do entardecer em nossa cidade. Infelizmente, no contexto atual, o cartão postal de Bezerros sofreu uma mudança violenta e estamos sem rio, sem trem, sem coqueiros, sem praça sem esquecer que destruíram o conjunto colonial da rua da matriz e rua do comércio, tornando esses logradouros fantasmagóricos, sem beleza e sem árvores. Vamos esquecer essa página negra da nossa cidade, afinal, hoje Bezerros comemora 150 anos de sua emancipação e este fato precisa ser comemorado apesar desta quarentena inoportuna. Bezerros fica sem festa, Bezerros fica sem luz, Bezerros fica sem cor.

Bezerros apesar desse obscurantismo ocasional, é um município que possui os seus encantos, é uma cidade rica em poesia e tradição. Possui a sua história e ama os seus filhos com amor verdadeiro. Por muitas vezes, eu caminhava para a estação do trem com a finalidade de não me deslocar para lugar nenhum, queria permanecer ali somente, amando a minha terra. Sentava-me no banco de madeira a olhar as pessoas se movimentando em curtas passadas, escutando a difusora Bandeirante de Zezinho Soares, e me abandonava naquele assento por algum tempo, sem que o tempo me pesasse. Talvez eu viajasse mais que os próprios viajantes que chegavam ou partiam. Era uma cidade pequena, bem arrumada, o cinema também ficava perto da estação, Era tão pequena a cidade que os domingos com seu tédio antecipado, passavam despercebidos. Eu inventava o meu próprio tempo, criava o meu próprio espaço, o tempo fora do tempo e fora do espaço, ali no tranqüilo bordejar na estação ferroviária ou sentado no banco da praça Duque de Caxias.

Tive uma excelente educação religiosa influenciado pelo virtuoso Monsenhor José Florentino, fui seminarista, conhecia a planta da matriz de São José na palma da mão, os corredores, os seculares recantos e os livros de tombo que registram o passado da nossa gente a perder de vista. Estar com São José e os santos que compõe os altares da Igreja Matriz transmitem até hoje um sossego que refresca a alma dos penitentes. Qualquer coisa parecida que eu encontrava na gare ferroviária. Com uma expressiva diferença de que a estação me oferecia um recolhimento do lado ardente do dia á dia, um acolhimento entre as pessoas e as almas que eu nelas imaginava existir. Os fantasmas da igreja matriz moravam na sombra fria do recolhimento e oração. Os fantasmas da estação irradiavam sol, riam alto e falavam uma linguagem de alegria ou tristeza. “Como é que a gente voa quando começa a pensar”. Pensar em Bezerros, pensar em sua gente e em sua história me faz bem. É o meu bem querer. Em querer amar mais e mais essa terra dos noites frias e serenas dos festejos juninos, do calor ardente do papangu e do final de ano quando exaltamos o nosso padroeiro São José de Cantalice.

Hoje eu moro em todos os lugares e em nenhum lugar ao mesmo tempo. Como um judeu errante, sou peregrino em busca de mim mesmo, em busca de encontrar a cidade da minha infância, das muitas pessoas que se foram para nunca mais voltarem. O cemitério que é o celeiro de homens e mulheres ilustres que honraram o nosso passado, construíram a história da nossa gente e projetaram a vida de hoje. Bezerros, terra gentil e acolhedora, lugar onde o silêncio fez seu ninho, onde o beija flor beija as nossas matas e a calmaria enamora o luar, onde o entardecer modorrento nos oferece um por de sol mais lindo do mundo. Uma vida melhor onde Bezerros se situa se chama terra, um lugar que está sendo poluído, está sendo desfigurado pelos menos esclarecidos, ignorantes da tradição, os erros da terra estão sendo cometidos através da fumaça, do lixo, da enchente. Para se ter uma vida melhor o que pode ser feito? São tantas as palavras que brotam em meu pensamento nesta data especial de São José dos Bezerros que formam delírios de idéias, enxurradas de lembranças mortas que criam vida e me colocam no tempo das quimeras nesta cidade amada quando eu me despertava para a vida e sorria para o amanhã. E Bezerros também sorria para mim. É um lugar pacato e sereno, de poucas mudanças em essência, nada acontece de novo, se algo de bom e promissor surge, logo desaparece. Descrever a natureza que aflora no entorno da cidade bezerrense é uma missão maravilhosa pois existe de tudo que vai além da imaginação, ninho de passarinhos na porta de casa, por exemplo. Uma bênção de Deus. É uma cidade que podemos fazer tudo o que gostamos sem lugar nem horário, morando embaixo do chapéu, sem carregar calendário, conservando a linguagem simples, sem respeitar dicionário, mas esbanja conhecimento na vaquejada sem nem ter concluído o curso primário. Um bezerrense de boa cepa conhece o lugar onde as árvores choram, onde as montanhas queimam canções e as nuvens derretem e invadem as casas na Serra Negra. É uma experiência estranha aos desavisados mas essas reações loucas dominam o bezerrense de origem em ver a natureza que chora e chora e ainda por cima implora para cessar a dor, ideologias tolas, hipocrisias carregadas de fome, que vem e some, é um lugar onde o chão se move e rola, mostrando ao caminhante atento lástimas de angústias e depressão. A terra conhece o bezerrense amado e o bezerrense conhece a terra amada. É uma simbiose de amor e dor. A magia desta relação se origina de uma força interior, não se compra com esmolas ou dízimos, é uma força visível e invisível como o sol que brilha em Bezerros. Os raios entorpecem a realidade presente, criando ilusões, os aboios, a sonoridade de uma viola tardia, o azul do céu que se confunde na vastidão dos campos e fica mais ou menos verde. Aliás, o filho da terra bezerrense e a sua terra amada podem ser tudo, menos separados porque essa união já é e não poderia ser de outro modo. Loucura! Loucura minha que me transportei para esta minha terra, agora estou por lá, vagando pelas ruas, criando momentos, comendo buchada e sarapatel, deixando a pamonha para o amanhecer. As vísceras dos acontecimentos, os tardios e os que advirão, combustões e conexões estão espalhadas pelo ar, ocupado todos os lugares e ruas – a rua da matriz, a volta do sofrimento, a rua de velame, a rua da castanhola, a rua do chamego sem esquecer o jequiá, como podemos observar, a realidade às vezes assusta e o passado como fica? Como em uma casa de terror acabo me acostumando com os fantasmas e inseguranças e percebo que é bem melhor viver a realidade do que as incertezas de um amanha incerto. O fato mais incrível, é poder encarar a realidade da cidade dos Bezerros de hoje, com os avanços e limitações sem nunca ter a isto vivido ou presenciado, É como se tudo tivesse conectado e as minhas pulsações se manifestam rapidamente e o pensamento me faz pulsar Bezerros, incorporo Bezerros, e vivo Bezerros numa reação com formas desconfortáveis, quem sabe se não tenha vivido para isso? Mas ainda estou bem, apenas cansado do fardo mas desejo por mais emoções porque amo a minha terra além do limite!...

Algo me ficou dessa divagação de alma, respirando Bezerros nessa data única, os 150 anos de amor e dedicação aos seus filhos, é como se eu ganhasse residência perene nas velhas estações ferroviárias de todo o mundo. Afinal, essa contemplação me trouxe como que um irreparável vício de amor ao meu amado rincão: Bezerros do meu viver. .

Carlos Lira

Uma reduzida homenagem aos vultos expressivos de Bezerros da atualidade e do passado:

Dr Lucas Cardoso,

Senhor Romeu de Góes,

Senhor Alcides de Andrade Lima,

Narciso Lima,

Dona Mônica,

Dona Maria Telles

Dona Joaninha Pontes,

José Pedro da Silva (meu tio)

Senhor Antonio Cordeiro Mergulhão

Dr Rinaldo

Dr Euclides

Dr Pádua

Desembargador José Antonio de Amorim

Senhor Zuzinha Guilherme

Senhora Maria Leão

Birinha

Dr Jarbas Alcântara

Senhor Paulo Alves - cultivo a esperança de que surgirá a grande oportunidade que Vossa Senhoria será eleito o prefeito de Bezerros.

Professor Ronaldo Souto Maior

Dr Marcone Borba – a quem dedico as minhas preces por sua pronta recuperação e aprenda a administrar o mal que o atormenta.

Samuel Cunha

José Borba

Monsenhor José Florentino

Dom Severino Batista – bispo e colega de infância

Dr Severino Otávio – colega da Abes e estudante no Colégio Diocesano de Caruaru

Estilista Souto Maior a quem me comunico quase diariamente. Ama ardorosamente a cidade dos Bezerros e divulga a nossa terra por onde passa. Ele lamenta que não é reconhecido pela sua cidade. Ele que é detentor da cidadania paulistana, várias condecoração. Discordo do amigo Estilista: ele é amado pelo povo bezerrense mas devido, talvez a uma respeitosa deferência, a população mantém um respeito distanciado.

Ao meu estimado ex aluno Joca Bernardo

Dr Aldo Bernardo

Felix Rocha

Marlene Dias

Elsa Alcântara

Nivaldo Nunes

José Edivaldo - grande sanfoneiro

Zito Farias

Joãozinho Machado

Jota Borges - a referência máxima da cultura bezerrense, quiçá do nordeste brasileiro. Desculpa meu nobre, publiquei uma sua gravura sem sua prévia autorização.

E todo amado povo bezerrense, motivo e orgulho desta minha crônica talhada no amor perene.

clira
Enviado por clira em 18/05/2020
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