Conversa Sobre Meu Pai...

          Cresci ouvido as pessoas dizerem que eu era a sua filha predileta, isso me incomodou durante muito tempo, depois relaxei e procurei ser a “sua nega”. Queria ser sempre melhor e fazia tudo para chamar a sua atenção e olha que a concorrência era grande, afinal somos 24 irmãos, fruto de 04 uniões. De mamãe somos 09 (06 mulheres, 03 homens).

          Lembro de minha infância vivida numa fazenda onde eu dispunha de tudo que precisava para ser feliz: animais, rios, açudes, árvores para subir, campos para correr.  Fui um criança extremamente livre, gostava de brincar com meu irmão mais velho e isso me rendeu alguns apelidos, como maria homem(que eu não tinha a menor idéia do que queria dizer).  Enquanto minhas irmãs brincavam de bonecas eu dirigia os caminhões que faziam suas mudanças, se brincavam de casinha eu caçava preás com meu irmão, enquanto ajudavam mamãe a arrumar a casa eu carregava água em jumentos ou banhava os cavalos, sempre com meus irmão.

          Minhas irmãs eram (são) lindas. Eu era uma espécie de patinho feio e era comum escutar coisas do tipo: compadre essas suas moças são muito bonitas! Depois olhavam para mim e diziam: esta tem cara de inteligente! Uma forma agradável de não me chamarem de feia. Papai logo entrava em minha defesa e dizia que eu muito esperta, sabia andar a cavalo, acordava cedo para tomar leite no curral, sabia pescar, nadar, era mais corajosa que meu irmão e sabia fazer contas.

          Para compensar minha falta de beleza procurava ser simpática e estudiosa. Logo aprendi usar estas armas ao meu favor, comecei a ler muito cedo e como papai era analfabeto eu me sentava ao seu lado e lia versos (literatura de cordel) para ele, logo virou mania e ele convidava os moradores da fazenda para escutar sua nega lendo.  Fiquei famosa. Todos admiravam a neguinha de seu Chico que mal começara estudar já sabia ler, eram meus minutos de fama.  Assim enquanto todos debulhavam feijão, eu lia.

          Sempre detestei tarefas domésticas, então usava a leitura como arma para não ajudar minhas irmãs, quando mamãe me mandava fazer alguma coisa logo inventava uma forma de fugir e papai me defendia: deixa a nega estudar, ela vai ser doutora.

          Meu pai é um homem simples, nunca estudou, mas de uma inteligência ímpar. Sempre foi muito mulherengo, gostava de farras e mamãe sofria muito com isso, mas nunca nos colocou contra ele. Cresci nesse ambiente onde o amor não era falado, os gestos de carinhos eram contidos, mas havia amor sim, ele nos mantinha unidos, irmanados naquele jeito diferente de viver e amar.

          Com minha mãe aprendi lições de tolerância que me acompanham até hoje. Com meu pai aprendi todas as lições que precisava para viver honestamente, com ele aprendi a ser forte, a gostar de política, andar a cavalo, gostar da vida no campo. Outras lições aprendi pelo antagonismo, em sua falta de fé, aprendi a acreditar em Deus, em seu jeito infiel de ser aprendi que a infidelidade não era um bom caminho, em seu jeito rude aprendi que a ternura além de sentida precisa ser expressa, em seus gestos contidos aprendi a demonstrar tudo que sinto, em seu pessimismo encontrei o otimismo. Tudo que sou de melhor foi meu pai que me ensinou a ser; os meus erros são frutos das lições não aprendidas.

          Devo tudo a você papai! Embora soubesse que ele sentia que eu o amava mais que tudo nunca havia dito isso abertamente, mas veio o CA e o medo de perde-lo me fez falar. Em seu aniversário de 75 anos declarei todo meu amor, respeito e admiração que sempre senti. Enchi-me de coragem e entre lágrimas e soluços disse o quanto eu temia perde-lo, o quanto ele era importante para todos nós e que o ajudaria a superar aquela doença que queria roubá-lo de nosso convívio. Ele continua entre nós e sempre peço a Deus que não o chame para si, ainda precisamos dele ao nosso lado. Ah, e sabe quem é o neto predileto dele? Meu filho mais velho!
Ângela M Rodrigues O P Gurgel
Enviado por Ângela M Rodrigues O P Gurgel em 18/08/2007
Reeditado em 17/05/2014
Código do texto: T612379
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