Só queria que minha vózinha soubesse

Dizem que a primeira experiência com a morte que nós temos geralmente é com nossos avós. É a primeira prova que recebemos de que a vida não é eterna. E é bem clichê o que eu vou falar agora, mas é verdade, valorize seus avós enquanto ainda estão vivos, saudade não é motivo suficiente pra trazê-los de volta, quem dera se eu tivesse ouvido e colocado em prática essa citação. Minha experiência com minha avó teria sido bem diferente, eu acredito.

Desde os 11 anos que eu morava com ela. Quando eu tinha 16, ela adoeceu e foi internada. Minha rotina passou a ser sair da escola e ir até o hospital dar almoço pra ela. Minha vó tinha mais de 6 filhos, (acredito que o contato mais doloroso com a solidão deva ser nessa fase da vida) mas nenhum deles fazia essa simples tarefa, (diziam-se) sempre muito ocupados.

Não era fácil entrar no hospital, pois o horário de visita terminava uma hora antes do horário de almoço, logo, ninguém poderia entrar depois desse horário, sem falar que eu era menor de idade, então, de acompanhante eu também não podia ficar. Mas o porteiro virou meu amigo, e sempre dava um jeitinho de eu entrar. Eu subia as escadas, escondia das enfermeiras e ia até o quarto da minha avó. Lá ela pegava seu pratinho e dividia a comida pra nós duas. A sobremesa eu deixava pra ela, inventava que não gostava só pra ela comer sozinha. (era sempre gelatina e isso era bom pra ajudar ela a se recuperar)

Quando ela recebeu alta, voltou pra casa dos meus pais, não estava totalmente bem, andava de cadeira de rodas e usava fraldas, era minha a tarefa de trocá-las também. Eu voltava da escola, fazia almoço, dava banho nela e sentava no sol, dava a hora da novela, a colocava pra dentro. (meus pais trabalhavam) Poucos exames depois descobriram que ela tinha a via Aorta entupida, a veia mais importante do coração, (resultado de anos de cigarro) e que a qualquer momento ela se romperia e o óbito seria inevitável. Além disso, um de seus rins não funcionava e o outro apenas 25%, sendo assim fazia hemodiálise. Era doloroso demais ver a situação dos braços e pescoço dela, direto os enfermeiros perdiam a veia e tinham que achar outro lugar. Ela voltava com os bracinhos todos roxos.

Eu já estava acostumada com minha rotina. Três vezes por semana dava banho e arrumava-a pra ir fazer hemodiálise. Na época de frio, era um custo fazê-la tomar banho, ela tremia igual vara verde, com o cabelo todo pra cima molhado. Essa era uma das cenas que mais me faziam rir. Colocava nela um vestido com um sapato e meia, e VOIALÀ... estava minha vozinha bem brega, mas pronta pra mais um dia.

O dia mais triste da minha vida até agora aconteceu da seguinte forma : Eu estava chegando da escola, e ela estava deitada com a mão do lado esquerdo do corpo dizendo que estava com dor, eu não dei muita atenção, achei que fosse mais uma cena de drama dela (ela costumava fazer isso) perguntei se queria almoço, ela recusou e começou a chorar de dor, nesse momento eu vi que não era cena. Corri pra perto dela e tentei acalmá-la, chamei a ambulância, e fui conversando com ela, porém, sem êxito, ela só chorava e falava algumas coisas que eu não entendia. Ela chorava muito com a mão apoiando o lado esquerdo, até que uma hora ela foi parando de chorar e deitando devagar, eu desesperada, dizia: ‘’vó, fica comigo, vó, pelo amor de Deus, aguenta mais um pouquinho’’. Ela olhou nos meus olhos por um segundo e seus olhos olharam para o céu. Os enfermeiros a levaram às pressas e eu fiquei desnorteada. Não sabia o que fazer. Sentei-me no sofá e pensei um pouco, mas eu não conseguia pensar em nada, minha cabeça era um branco total.

Subitamente, depois de algum tempo ali sentada, me levantei e fui parar no hospital, passei direto pela recepção, (não sei como) e comecei a procurar pra onde tinham levado ela. Cheguei até uma porta que estava entreaberta, era uma sala fria e estava escura, no canto da sala, em uma cama de alumínio estava minha vózinha. Eu corri até lá, ela estava gelada, com o vestidinho que eu tinha colocado nela antes, estava com um esparadrapo que começava no queixo e terminava no nariz, tinha algodão também. Ela estava sem vida. Eu a abracei sem nenhum constrangimento e chorei, pedi muito que ela começasse a respirar ali, que voltasse pra mim. Mas ela não voltou.

No dia do seu velório eu estava acabada, pensei em tudo que podia ter feito a mais por ela, me culpei por todas a vezes que fui impaciente, e implorei pra Deus que me devolvesse aquela me ensinou tudo. Nunca tinha imaginado minha vida sem ela, e agora eu estava vivendo um pesadelo. Não via a hora de acordar e ir até ela aliviada por acordar de um péssimo sonho. Mas eu não acordei, não era sonho.

Muitas vezes eu ficava sentada em frente ao túmulo dela conversando, falando como tinha sido minha semana, e não me importava de estar em um local inóspito e para muitos amedrontador, eu só queria que ela soubesse que eu estava junto dela sempre, não a abandonaria, que ela soubesse que eu jamais a esqueceria, e eu chorei muitas vezes dizendo isso a ela, e pedindo pra que voltasse pra minha vida ou que me levasse pra ela. Não adiantava mais, ela não ouvia. Ficava olhando a foto da lápide, aquele sorriso que eu conhecia bem, aquele cabelinho branco penteado pra trás. Sinto saudade de tudo, mas como eu disse, saudade não é motivo suficiente para trazê-la de volta!