PEQUENA, GRANDE MULHER!
 



Foi no ano em que irrompeu a Revolução Russa, 1917, que minha mãe nasceu em uma fazenda do interior de Santa Catarina. Em uma casa sem energia elétrica, com parco conforto. Cresceu também em fazenda, onde foi alfabetizada por um professor contratado que ensinava a ela e aos irmãos. Mamãe teve 16 irmãos, dos quais treze sobreviveram. Três morreram ao nascer.

Levava uma vida dura, levantando-se muito cedo para ajudar na ordenha e em outros serviços, na horta, na cozinha, na lavagem de roupa em riacho próximo. Não desdenhava do trabalho árduo, rude, mas tinha um sonho: queria continuar os estudos. Era um tempo em que as jovens deviam ser educadas tão somente para casarem, terem filhos e cuidarem deles, do marido e da casa. Meu avô também pensava assim e quando ela expressou seu desejo de continuar os estudos, ele não só se opôs como também ficou deveras zangado. Disse que ela faria falta para ajudar minha avó na cozinha e em outros serviços da fazenda. Vovô achava que ler e escrever bastavam. Mais que isso era luxo.

Mamãe não se deu por vencida, anunciou que começaria uma greve de fome, e assim fez. O pai, vendo-a tão obstinada e temendo pela saúde da filha, a contragosto consentiu e mandou-a para um colégio na capital. Para ela foi a descoberta de um mundo fantástico em contato com números, letras e artes. Principalmente as artes. Aprendeu a costurar, bordar, fazer tricô e crochê. Não tinha grande habilidade musical mas mesmo assim aprendeu a tocar violino. Mas no que realmente mostrou seu talento foi na pintura. Lembro de mamãe com o pouco tempo que tinha (trabalhava o dia todo como professora), mas sempre tirava uns minutos para pintar. Quando viemos do interior para Curitiba, e ela já estava aposentada, fez muitos cursos e aprimorou sua técnica.

Mamãe faleceu em janeiro de 2014, aos 96 anos. Seus quadros, entalhes e gravuras estão nas casas dos filhos e netos, ornando as paredes e nos alegrando com sua lembrança.

Levou uma vida do jeito que queria, simples, mas produtiva. Foi a primeira pessoa ecologicamente engajada que conheci. Amava a natureza, praticava a preservação, a reciclagem, evitava o desperdício e sempre teve, nas casas onde moramos, um lugar destinado à compostagem. Plantou um sem número de árvores. E junto com papai nos transmitiu esses hábitos como algo natural, além de valores morais como honestidade, honradez, compostura, dignidade. E obstinação.

Quando já estava bem velhinha e doente, percebi que não duraria muito, quando começou a pintar uma tela com dois bem-te-vis pousados em um galho de árvore. Pintou os dois com muita dificuldade, mas não conseguiu fazer-lhes os pés, os olhos. Aí parou. Quando lhe perguntei por que não continuava, ela esboçou um sorriso e fez que não com a cabeça.

Sentia dores da artrose severa que a impedia de andar, mas nunca ouvi de seus lábios uma queixa sequer, manteve-se sempre serena. Cuidei dela até o último dia. Fiz tudo o que pude para aliviar-lhe o sofrimento, mas mesmo assim, ainda penso que foi pouco.

Conheci muitas pessoas admiráveis, mas essa mulher franzina, de 1,50 m de altura e 47 kg, foi para mim o maior exemplo de vida.

Em seu sepultamento, o padre, que a conhecia, ao fazer as orações fúnebres, chamou-a de “pequena, grande mulher”!

Aloysia
Enviado por Aloysia em 07/05/2016
Reeditado em 12/05/2024
Código do texto: T5628555
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