SAUDOSO HONÓRIO

ORATE

"Quero a certeza dos loucos que brilham. Pois se o louco persistir na sua loucura, acabará sábio'

Raul Seixas

Neste domingo sem sol, nublado e triste, ameaçando chuva, uma lembrança reminiscente me faz, como sói acontecer em mentes cheias de poesia, viajar em pensamento tardio e saudoso, atravessando o tempo e espaço, indo até Bezerros de minha infância feliz.

Eis-me em plena feira, um sol brilhante, um sábado movimentado, "tordas" armadas (tosca banca de feira), folhas, verduras, miudezas, espigas de milho, laranja, mamão abacaxi, comida pronta - buxada de bode, sarapatel, cachorro quente e iguarias outras, as panelas de barro espalhadas na rua da matriz, os mamulengos feitos de madeira tosca, as bonecas de pano, calças e vestidos baratos - "que é prá matuto não andar nú" ... Na esquina da Casa Neri o "homem da cobra" que vendia saúde através de uma garrafada que curava qualquer tipo de doença, impotência, por exemplo, a garrafada curava, levanta moral de homem, de mulher o corrimento, curava até o mal de amor não correspondido. Pascoalina não aparecia (este é o nome da cobra), a curiosidade aumentava, o vendeiro vendia as suas garrafadas, juntava dinheiro, enquanto gritava batendo na mala:

-Calma, Pascoalina!

Depois de algum tempo, o homem saía de cena e deixava a assistência vendo navio. Seu Aprígio, fotógrafo lambe lambe, tirava a fotografia de uma mãe saudosa que enviaria a foto ao filho ausenta que estava em São Paulo.

A beleza da feira em Bezerros de outrora possuía uma característica singular: autenticidade. Era uma relação interpessoal, mais corpo a corpo, mais brejeira porque era uma feira imperfeita. Esta imperfeição tornava-a bela por causa da genialidade em não ser absolutamente ridícula

ou chata.

Todos os sábados, cedinho ainda, os feirantes ultimavam as mercadorias a serem oferecidas aos prováveis compradores. Em meio a este acontecimento nos dias de sábado, sem correria, tendo todo o tempo para estabelecer uma longa prosa livre e direta, o homem do campo era acometido por uma alegria de estar ali em meio a tanto movimento. O dia de feira transcorria num estilo modorrento de ser... A paz da feira era alternada com os noticiários divulgados pela emissora Bandeirante, de Zezinho do Bazar. Certa feita, fora preso um ladrão de galinha, que praticara suas peripécias lá pros lado do Sítio dos Remédios. A emissora, com toda a presteza, divulgara a notícia em seus "possantes" alto falantes, na voz de Zezinho:

- Povo de Bezerros, acaba de ser preso o ladrão de galinha que aterrorizava os moradores do Sítio dos Remédios! Agora mesmo vamos entrevistar o "nosso amigo" ladrão!

Em meio a todo a magia de um sábado iluminado, a criançada era atraída por uma figura simples, humilde e carismática: Honório. Descendente de escravos, ele era o centro das atenções por parte da petizada de minha infância em Bezerros. Ele possuía a arte de ser louco e jamais ousara cometer a loucura de ser um sujeito normal. Afinal a normalidade é entediante, principalmente quando as ruas centrais da cidade é tomada por uma população de feirantes que gritam e gesticulam tentando convencer o freguês a comprar a sua mercadoria barata.

- Honório, qual é seu nome completo? - perguntavam as crianças a este anjo do bem.

- Aga-á-o-ne-o-nó-re-e-ri-ó = Honório - Se-é-se-ve-e-vé-re-e-ri-no-o-nó=Severino - respondia ele.

- Honório, canta prá gente! - insistiam as crianças.

Honório sem titubear, começava uma canção triste, dolente, com uma voz baixa e afinada. Honório movia a cabeça de um lado para o outro enquanto cantava, numa cadência incrível, ritmava a música gravada em sua mente:

"Sabiá da mata, cantou, cantou, cantou;

No meio da ladeira onde mora meu amor;

A lenha nasce do mato, o mato nasce do chão;

meu amor apareceu, no luar do meu sertão"

Honório, não largava a bandeira de sua imaginação porque não temia ser louco. Era uma loucura perdoada, abençoada por nós, quando crianças sedentas de atenção, de muita atenção. Ele, o nosso herói imaginário, nos presenteava com toda uma atenção peculiar, falava a linguagem da infância, nos fazia sonhar, pensando naquele "sabiá da mata". Estes golpes de loucura emanados de Honório nos ajudaram a delinear o destino de cada um de nós, os que procuravam nos dias de feira aquela criatura singular. Hoje, a loucura de Honório me faz lembrar que, em minha vida, os precisos golpes de loucura é que me ajudaram a determinar o meu destino.

Neste dia, neste momento de um feliz divagar, em minha mente, eternizada, a figura de Honório cria forma e se avoluma, e se apresenta tal qual fora nos dias de outrora: num sorriso maroto de homem bom, ele exclama alegre e feliz:

- Viu como eu tinha razão?

" O gênio, o crime e a loucura, provêm, por igual, de uma anormalidade; representam, de diferentes maneiras, uma inadaptabilidade ao meio".

Fernando Pessoa

Carlos Lira.

clira
Enviado por clira em 21/04/2013
Reeditado em 29/04/2013
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