BIÁ - Vlady

Biá, - era assim que seu irmão costumava te chamar, esse apelido ficou pra sempre - quando reviro minha memória a lembrança mais remota que tenho é uma cena em que nós dois estávamos pendurados numa cerca de fazenda em Braúna, devíamos ter 4 ou 5 anos de idade, nossos pais estavam em férias, nesse mesmo dia vimos um índio de verdade passando a cavalo, um susto e tanto para dois garotinhos. Nascemos no mesmo hospital e dizem que, coincidentemente, nossas mães ficaram no mesmo apartamento no Hospital Leão XIII apenas com dois meses e meio de diferença, você nasceu primeiro, nossa grande amizade começou ali. Passávamos férias na casa do nosso avô, lembro direito das travessuras que fazíamos, principalmente a noite, atrapalhando o sono do tio Chinho. Nessa época já fazíamos planos, você seria o dono da Viação Cometa e eu do Expresso Brasíleiro. Depois, mais tarde, quando tínhamos catorze ou quinze anos íamos ao cinema nas noites de sábado, caminhávamos tranquilamente pelas ruas do centro da cidade, ficávamos até de madrugada, terminávamos o passeio ou comendo um pastel na Pastelaria Modelo que ficava na Praça da Sé, ou um pedaço de pizza, apenas um, na Padaria Santa Tereza onde seu pai tinha uma charutaria, nossos planos de negócios tinham mudado, compraríamos bancas de jornais e revistas na Praça da Sé e João Mendes.

Mas a vida é dura mesmo e comecei trabalhar de dia e estudar a noite, faltava dinheiro lá em casa, nessa ocasião primo, você fez coisas que jamais retribuí, lembro que saíamos com nossa turma aos sábados, eu sem um tostão no bolso, você dividia comigo a grana que tinha para eu não passar vergonha! Se os tempos eram difíceis, os tempos eram também de grandes mudanças, de rebeldia, de protestos. Era o final dos anos 60, os Beatles, os Bee Gees, o Renato e seus Blue Caps, os Incríveis encantavam nossos dias. Lembro com detalhes do seu aniversário de 18 anos, uma festa e tanto. Fizemos uma mixagem usando Cherish e o Never My Love do The Association. Já tínhamos 18, você foi para o exército e eu não. Caíamos na noitada, rachas, bailes, bebedeiras, as namoradas, você era jeitoso com as mulheres. Você e o Valdir querendo ver o sol nascer, aliás, essa expressão era sua marca registrada, “Ver o sol Nascer”. Mais músicas, Loves is Blue com o Paul Murriat, grandes farras no Bar do Mingão, vez ou outra uma escapada até a nossa velha Braúna. Entrei na faculdade, lembro que foi seu pai quem pagou minha inscrição no vestibular, mas você nunca foi muito de sala de aula, sua universidade era a charutaria na Padaria Santa Tereza onde batalhou anos a fio, assim como seu pai – o tio Modesto.

Me casei, você foi meu padrinho, começamos a percorrer caminhos diferentes, muito embora mantivéssemos o contato. Tempos depois você se casou e também fui seu padrinho de casamento. Trago vivo na lembrança a viagem que fizemos para o Araguaia, mais precisamente para a Ilha do Bananal, foram os últimos 15 dias em que tirei férias de verdade, foi a última vez que reunimos nossa velha turma, pois aos poucos cada um foi para o seu lado e nos dispersamos Nessa viagem lembro de fatos engraçados, ficamos numa tribo de índios e você levou em sua bagagem um perfume Paco Rabanne. Tiramos o maior sarro, estávamos em plena selva e você usava um perfume caríssimo. Lembro também que o cara que promoveu a viagem nos enganou com a comida, e você sorrateiramente entrava da dispensa e voltava sempre com novidades, engraçado era ver você com um prato na mão servindo parmesão como aperitivo, na verdade parmesão ralado da dispensa do Jean. De madrugada depois de grandes bebedeiras roubávamos uma ou duas latas de Sukita pra matar a ressaca de whisky, cachaça e cerveja.

Ainda tivemos alguns bons momentos juntos, você sempre prestativo cuidava das pessoas com carinho, cuidou dos nossos avós, do seu pai, de nossa tia. Sempre esteve presente nos momentos tristes, mas sinto que as pessoas foram se afastando de você, inclusive eu. As coisas começaram ficar difíceis, sua situação financeira foi degradando, sua mãe – a tia Bela - passou morar numa clínica e lá está até hoje, não conhece mais ninguém e nem sabe que você partiu pra sempre. Num golpe, que passo a chamar de mortal, lhe tiraram a charutaria da Santa Tereza, você não reagiu primo, foi o começo do fim. Poucos lhe estenderam a mão, e mesmo assim de forma esporádica. Aprendi mais uma lição, a vida é bela, mas os homens do mundo são cruéis, a gente vale quando ainda tem algo a doar, depois disso nos tornamos estorvo. Como diz a Rita Lee, tudo vira bosta, essa é a triste realidade. Adeus. Um abraço!

Laerte Russini
Enviado por Laerte Russini em 27/03/2011
Reeditado em 30/03/2011
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