Amiga Tonha,
Depois da decisão recente da Sociedade Portuguesa de Autores, de se recusar a utilizar o novo Acordo Ortográfico, você quis saber minha opinião sobre o dito acordo, que foi empurrado goela abaixo da população, sem sal e sem qualquer recheio.
Bem, eu, como desabalizado no assunto e como simples mortal da academia brasileira dos desletrudos, sempre fui contra esse acordo, porque, aqui na minha prática redacional, ele implicou trocar seis por meia dúzia. Noto que ele apenas deixou de prestigiar a etimologia, para prestigiar a fonética, principalmente no que se refere aos hífens e desífens entre prefixos e raízes. Na prática não vi nenhuma melhoria, pelo menos na vertente tupiniquim da fina flor do Lácio cantada e recantada por Camões.
 
[Eu acho até que a extinção do trema foi um atentado à clareza pronuncial.]
 
No geral, esse acordo apenas entre legisladores foi uma mudança arbitrária e ditatorial, como se a língua fosse dos governantes de plantão, quando em verdade ela é do povão e dos intelectuais, que sequer foram consultados quanto ao assunto, plebiscitariamente.
O poder de polícia do Estado, no sentido de alterar, construir ou destruir qualquer coisa pública, só tem legitimidade, se for para o bem comum, para a segurança ou para melhorar as condições de vida da população. Tirante isso, é de se registrar em ata que a coisa pública (res publica, ou república) é patrimônio do Estado como um todo, dentro do qual, é certo, estão o povo, o território e o governo, mas não necessariamente os mandatários eleitos pelo povo para gerir, e só gerir, durante algum tempo, a coisa pública, que é do povo em caráter permanente.
A língua é patrimônio histórico e  imaterial de cada povo que a fala (à exceção da Língua Internacional Esperanto, que pertence a toda a humanidade). Não é nem propriedade de todos os países que a falam, mas sim de cada povo, que detém suas variantes e o poder legítimo de reforma, e esta só deveria ocorrer mediante consulta popular, depois de longas discussões entre todas as classes legitimamente representativas, entre as quais a dos intelectuais não chapas-brancas.
 
Bem, seja como for, amiga, eu, aqui no pé da obra, tenho sido obrigado a me reformar ortograficamente, desde 2009, porque meu patrão é um entusiasta da reforma e é quem paga meu salário. Portanto, aqui, ele é a lei.
Dia desses ele me deu um esbregue danado, porque eu escrevi "pão de ló" sem hífen. Mesmo eu argumentando que, com a reforma federal, esse tipo de pão não tem mais recheio hifenal, ele tesou que tem. Conclusão: tasquei dois hifenzões bem negritados no composto e ainda pedi desculpas formais ao todo-poderoso.
É que, embora o hífen planaltino tenha tido sua obrigatoriedade adiada para 2016, aqui na empresa-Estado na qual sou um simples hifenzinho, quase um ponto, seu uso neoacordatário já é norma cogente, cláusula pétrea, e que sujeita a todos, exceto o mangangão sabe-tudo, a sua observância rigorosa, sob pena de incidência no crime de lesa-ortografia, sem direito a fiança nem a cargo de confiança. 
O certo é que, se eu perder esta boquinha laboral, na idade em que já estou, nunca mais sequer verei o pão de ló, talvez nem mesmo o de sal, nem com hífen, nem sem hífen. [Aliás, aquela que não obedeceu aquele patriarca hebreu e que olhou para trás, atrás de hífens passados, você sabe o que é que virou, não sabe?] Enfim, amiga, 
manda e legisla quem pode e obedece quem tem juízo e precisa do ganha-pão, para garantir a margarina e não ter de comer o pão que o diabo amassou na fila dos desempregados pelo não emprego devido dos hífens e desífens, correndo até o risco de só vir a comer pão com algum recheio, se for aquele chamuscado na fumaça de candeeiro, como no dia a dia (ou será dia-a-dia) dos nossos velhos tempos, você se lembra? 
Portanto, viva a reforma! Viva o pão-de-ló! Viva meu patrão!
Abraços hifênicos!
 

 

 
Josenilton kaj Madragoa
Enviado por Josenilton kaj Madragoa em 18/09/2013
Reeditado em 28/09/2013
Código do texto: T4487493
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