Mais uma que a dra. Norma Culta não me explica

A pedido do amigo Dante, em comentário, sirvo-me deste espaço para falar da norma outra vez.

Eu tenho dito que escrever "direitinho" e falar "bem" é uma questão de gosto. Acrescento que é questão de momento também (além de certa dose de conhecimento). Eu gosto de escrever de modo quase perfeito, mas tenho-me tornado compreensivo com as produções textuais e principalmente com a fala.

As pessoas que têm acesso à gramática nunca devem esquecer que no Brasil há milhões de falantes da língua portuguesa que não falam a língua apelidada de padrão. É mais fácil um doutor entender um morador da roça do que esse morador entender o doutor. Então o doutor tem a obrigação de "ajoelhar-se" até chegar à estatura "pequena" do morador rural. O doutor tem que interpretar o homem simples, e não o contrário.

Após esse preâmbulo todo, volto a falar da norma. Para mim, que durante os anos em que esquentei banco de escola fui um admirador da gramática, o gosto pela escrita dentro dos trilhos gramaticais parece natural. Por isso é que eu muitas vezes dou uma caprichada no texto. E digo mais: Até em conversas gosto de falar os verbos de acordo com a pessoa, sem deixar dúvidas. Na minha opinião VOCÊ é segunda pessoa, uma vez que a gramática jura de pé junto que a segunda pessoa é a pessoa com quem se fala. Eu falo com você. Eu nunca falo de você. Imagine, numa conversa, eu me dirijo a um amigo e digo: Você é um cara legal, referindo-me a outro que não seja o referido amigo. Não dá mesmo. Você só pode ser a pessoa com quem eu estou falando. Você é, definitivamente, a segunda pessoa.

Eu tenho adotado a prática de minimizar o uso do VOCÊ na minha fala, para evitar essa confusão. Quando quero evitar o tu, em virtude de pouca intimidade com o interlocutor, dá vontade de usar o VÓS. Mas parece um pouco pedante demais. Na escrita até que passa, mas na fala, nem os profetas se dirigem a Sua Onipotência usando o pronome VÓS. Geralmente, vemos nas traduções da Bíblia o pronome tu. Jesus, em muitas versões bíblicas em português, nos ensina a orar assim: "Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o teu nome". Jesus quer que sejamos íntimos do Pai.

O pronome TU é de segunda pessoa. A gramática diz que você é terceira pessoa (de quem se fala). Pode?

Vamos combinar uma coisa? Quando formos usar VOCÊ, colocaremos o verbo na terceira pessoa somente por uma questão de não falar esquisito. VOCÊ ÉS soa um pouco desagradável. Na língua falada, os linguistas dizem que não há "erro". Veja Marcos Bagno (Preconceito Linguístico) e Irandé Antunes (Lutar com Palavras - Coesão e Coerência). Admito que não existe o erro absoluto, pois qualquer falante se comunica bem do jeito que pode e sabe e aprendeu. Mas ao meu ver existe desarmonia, cacofonia, coisas que não soam bem.

Eu não me lembro de ter ouvido alguém dizer "você és". Já vi muito "tu é". Mas "tu é" não soa feio como "você és". É como se os falantes inconscientemente evitassem a desarmonia sonora.

Não dá para deixar de abordar a questão do A GENTE VAMOS. É outro "acidente" linguístico que a gramática diz que está errado, mas vamos analisar: Quando eu digo "a gente" estou falando de um grupo de pessoas do qual eu faço parte. Por essa razão as pessoas dizem "a gente vamos". É um pouco mais harmônico do que "nós vai". A expressão "a gente", segundo meu humilde parecer, é correspondente de NÓS, já que é a soma de "EU" + OUTRA(S) PESSOA(S).

Vamos calcular cada pessoa:

EU (uma pessoa, a minha pessoa, a pesoa que fala);

TU (uma pessoa, a pessoa a quem me dirijo, com quem falo);

ELE (uma pessoa, a pessoa de quem falamos, ou de quem eu falo cá com meus botões, do gênero masculino; pode ser um objeto ou um animal, sempre do gênero masculino¹);

ELA (uma pessoa, de quem falamos, do gênero feminino);

NÓS (duas ou mais pessoas, sendo que uma delas sou eu mesmo, ou é a pessoa que fala);

VÓS (duas ou mais pessoas, a quem eu me dirijo de uma só vez, não importa de gênero sejam);

ELES (dois ou mais seres, coisas ou objetos; se forem pessoas, podem ser duas ou mais, desde que sejam todos homens, ou haja pelo menos um homem, já que existe a questão de que em caso de masculino e feminino, prevalece o masculino, num machismo gramatical que já devia ter sido totalmente extinto).

O pronome você é chamado pronome de tratamento (antigamente era Vossa Mercê, "vosmicê", "vassuncê"). Hoje já existe "OCÊ" e "CÊ". "Onde cê vai?" é redução de "aonde você vai?"

Mesmo que haja a justificativa de que eu estou falando à segunda pessoa sobre uma terceira pessoa "dentro dela" como uma qualidade (Vossa Mercê vai me ajudar? Vossa Alteza vai sair agora?), isso cria confusão na cabeça de um aluno de pouco tempo de escola e até de muito tempo. Pois quando uso Vossa + Qualidade, é por um respeito que pede o verbo na segunda pessoa do plural: Vossa Majestade quereis que seja servido o jantar?

Então eu continuo vendo o VOCÊ (terceira pessoa) como um acidente gramatical. É harmônico, é aceitável, mas não tem a coerência de uma lei gramatical. Aliás, toda gramática tem esses acidentes.

(¹) Existem línguas que não usam o pronome ELE (pessoal) para coisas, objetos e animais. Por exemplo, o inglês: The lion is hungry. It needs to eat a lot of meat. O leão está com fome. Ele precisa comer muita carne.

Peter is thirsty. He is going to drink water now (Pedro está com sede. Ele vai beber água agora). Hellen is very young. She is twenty years old (Helena é muito jovem. Ela tem vinte anos).

O pronome IT (ela ou ela para objetos e animais) é chamado de neutro.

António Fernando
Enviado por António Fernando em 06/08/2009
Reeditado em 05/10/2009
Código do texto: T1740596
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.