A chuva
Seiwá estava deitada na grama baixa olhando o céu já faziam horas, não sentia vontade de se levantar e muito menos de cumprir com suas responsabilidades. Talvez algumas pessoas estivessem preocupadas com ela, não tinha avisado a ninguém aonde estaria, mas descobriu que não se importava.
O céu já tinha rugido algumas vezes, anunciando a chuva que se aproximava, mas não se importou tampouco, ansiou por ela, sempre gostou de ouvir seu canto.
Ouviu passos lentos e meio arrastados chegando perto, fechou os olhos já esperando alguém vir dar uma bronca, mas logo reconheceu pelo som que era seu tio e se acalmou. Continuou de olhos fechados.
- O que está fazendo aqui sozinha, sobrinha? Não sabe que vai chover? – Seu tio disse, com a voz serena e um leve tom de cansaço. Percebeu pela vibração do solo e o farfalhar da grama que ele sentava-se ao seu lado.
Seiwá continuou calada de olhos fechados por um tempo, mas seu tio não voltou a falar e nem a perguntar novamente o por que dela estar ali. Esse era um dos motivos por que gostava tanto dele, sabia apreciar e entender o silêncio numa conversa.
- Eu não quero estar lá agora, tio. – Disse finalmente, juntando o pouco de forças que tinha – Eu sinto que nem o céu nem a terra se importam comigo, talvez eles não ouçam minhas preces...
E por mais um tempo os dois ficaram quietos, ouvindo o vento que assobiava raivoso, ansioso pela graça da chuva.
- Seiwá, talvez você não queira ouvir uma de minhas estórias agora... Mas prometo que essa será curta e depois eu a deixo sozinha de novo – Falou devagar e encostou a mão quente na testa de Seiwá antes de continuar.
A resposta não veio, mas seu tio entendeu que Seiwá ouviria.
Uma vez, a muito tempo atrás...
Muito tempo mesmo, antes até de Ekwan se tornar o primeiro Shaiman e o povo tomar a floresta.
Antes que o homem desse os primeiros passos sozinho.
Antes mesmo do dia em que a lua subiu aos céus e iluminou nossas noites e a árvore nos deu sua sombra.
Houve um tempo em que o céu e a terra eram inseparáveis, como dois jovens amantes que recém descobrem o afeto. E da união deles, os frutos vieram, nossos ancestrais, os primeiros filhos da terra e do céu.
E muitos anos assim foram felizes, a terra, o céu e seus filhos.
Mas um dia, por artimanha do destino, a terra e o céu tiveram que se separar, e pela natureza de sua separação, não podiam mais se comunicar ou se sentir.
A magoa inundou a terra, a fúria tomou os céus e a tristeza se aninhou no peito dos homens. Por dias a terra sofreu e chorou, o céu esbravejou irritado e os homens ficaram desesperados.
Então, de tanto verem sua mãe sofrendo, os homens começaram a rezar, rogar aos céus, cantando o mais alto possível todos os pedidos e a saudade que sua mãe sentia.
Por dias a fio eles cantaram, rezaram, pediram e choraram, na tentativa de fazer com que o céu pudesse escutar mais uma vez o doce canto da terra e daqueles que lá estavam. Por dias eles esperaram uma resposta, para que pudessem ouvir a voz acolhedora de seu pai mais uma vez.
E por dias, nada se ouviu.
Até que numa noite serena e pacata, algo diferente aconteceu.
Começou tímida, leve, pequena e quase sem ser percebida; singela como o canto dos pássaros, transparente como a nuvem no céu, mas crescendo depressa como o afluente de um rio. Rugiu, pois precisava ser ouvida, e ribombou por todos os cantos da terra.
E todos os homens se maravilharam com a água que caía do céu.
A terra e seus filhos puderam ouvir, todas as preces, cantos, suplicas e tristezas que gritaram aos céus sendo devolvidas para eles. Sentiram mais uma vez a presença de seu pai.
A terra se sentiu feliz novamente, como a muito não sentia, e compreendeu que o céu também sentia saudade de seus filhos. Pediu para que os homens rezassem a ele todos os dias, e prometeu que um dia levaria todos de volta para o pai.
Seiwá abriu os olhos ao sentir a primeira gota da chuva. Como sempre fazia, ficou pensando no que tinha acabado de ver e ouvir.
- Então querida sobrinha, foi assim que a chuva nasceu. Se você abrir bem os olhos e os ouvidos, ainda vai poder ouvir o céu a cima de nós devolvendo nossas preces, cantos e suplicas. Basta querer com o coração. – Disse com a voz serena, e começou a tatear o chão a sua volta à procura de seu cajado. Pegou-o e começou a caminhar devagar na direção da vila – Até mais Seiwá.
Seiwá ficou parada por horas ali, até depois da chuva começar a cair com violência. Tentou com todas as forças ouvi-la, mas não conseguia.
A frustração tomou conta de si, e começou a chorar com força, a dor jorrou para fora com a mesma violência que a chuva martelava o chão.
Foi então que ouviu. No começo baixinho, quase como um sussurro, depois em alto em bom som, como se estivesse do seu lado: todas as preces que estavam sendo feitas por sua mãe, desde o dia anterior. Cada uma a atingia como uma gota diferente de chuva. Ouviu vozes sem fim, milhares de suplicas, dores, agradecimentos, alegrias e tristezas. Ouviu amores, ouviu maldições e felicidades sem tamanho.
Ouvi as próprias súplicas feitas a dias atrás, cheias de dor, raiva e tristeza. Percebeu que não era isso que o céu deveria ter dela e, pela primeira vez, se sentiu serena. Se sentou aonde estava e juntou as mãos, rezando pela primeira vez sem dor, mas sim em agradecimento.
E suas palavras se perderam no vento, assim como suas lágrimas se perderam na chuva.