O Grilo e a Cortina: uma metáfora em defesa do ódio

É hora do almoço no Planeta dos Grilos. A fome é voraz na família Apeguche da Silva, composta por onze grilos filhos e a mãe Grila, dona Apeguche Xonada da Silva. O pai da turma havia morrido, vítima fatal do ataque de uma lagartixa faminta.

Não havia nada em casa para comer, mesmo que fosse para encher o buraco de um dente, como se diz na gíria da região. A saída dos onze grilinhos era vasculhar toda a casa a procura de algo para matar a fome. Porém, desde a seca que assolou o planeta, já haviam comido tudo que havia por lá, inclusive as roupas deixadas pelo pai. O único objeto que restava intacto era uma cortina de seda, estimada pela mamãe grilo. A mesma fora cuidadosamente fabricada na China e importada para o Planeta dos Grilos.

Os grilos nunca haviam devorado a verde cortina da mamãe grilo por uma razão simples: cada filhote que nascia a mãe fazia um ritual: enrolava o grilinho na cortina e o fazia jurar amor eterno em nome do Bicho-da-Seda, uma espécie de deus do Planeta dos Grilos; juravam conservá-la para sempre sem jamais cortá-la. Dizia ainda aos grilinhos que se alguém ferisse a cortina seria também ferido pelo Bicho-da-Seda. E, assim, mesmo estando com muita fome e sem nada para comer, os grilos obedeciam as normas da casa.

No entanto, dona Apeguche Xonada, se usava de uma astúcia com o objetivo de atrair seus amores: ela convidava o namorado para uma noite de amor; como forma de conquista-lo picotava a cortina em pedaços minúsculos e oferecia um jantar romântico. Até que um dia um dos grilinhos percebeu a atitude da mãe e resolveu quebrar a jura de amor ao Bicho-da-Seda. Ao longo da madrugada, enquanto os outros dormiam, devorou completamente a cortina sem deixar um só pedaço até matar completamente a fome; um furioso ódio o fez picotar e engolir por inteiro a cortina. Em seguida fugiu para outras regiões do Planeta dos Grilos.

Os demais grilos-irmãos já estavam completamente sem forças e morreram de fome. O grilinho Cara de Pau sobreviveu e passou a contar essa história para outras famílias que também viviam situações como essa. Por essa razão, ele foi preso, uma vez que contrariava a cultura e a religiosidade do planeta. Mas de tanto ódio que tem das grades há alguns anos começou a ocultamente roer as correntes da cela. As chances de quebra-las e se libertar eram grandes, mas não sabemos o que aconteceu.

CARLOS REIS SOUSA
Enviado por CARLOS REIS SOUSA em 23/07/2014
Reeditado em 23/07/2014
Código do texto: T4893858
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