De grão em grão [69]

“Por que escrevo? Antes de tudo porque captei o espírito

da língua e assim às vezes a forma é que faz conteúdo.

Escrevo (...) por motivo grave de ‘força maior’.”

(Clarice Lispector)

Estou lendo “A hora da estrela”, da Clarice Lispector. Além do tema central em torno da protagonista Macabéa, a escritora nos dá uma aula sobre composição literária. Ou seria um depoimento do processo da sua autoria?

Vários trechos me tocaram profundamente e explicam magistralmente o sentimento que também tenho em relação ao ato de compor. Não quero parecer pretensioso, não estou me comparando à Clarice Lispector. Quis dizer apenas que ela descreveu um sentimento com que senti uma íntima identificação lá no fundo da minha alma de autor amador. E embora os sentimentos possam ser parecidos, é claro que os resultados – as obras – são substancialmente diferentes.

Logo nas primeiras páginas, ela explica: “Para escrever não importa o quê o meu material básico é a palavra. Assim é que esta história será feita de palavras que se agrupam em frases e destas se evola um sentido secreto que ultrapassa palavras e frases. É claro que, como todo escritor, tenho a tentação de usar termos suculentos: conheço adjetivos esplendorosos, carnudos substantivos e verbos tão esguios que atravessam agudos o ar em vias de ação, já que palavra é ação, concordais? Mas não vou enfeitar a palavra (...). Tenho então que falar simples para captar a sua delicada e vaga existência. Limito-me a humildade – mas sem fazer estardalhaço de minha humildade que já não seria humilde.” Uma verdadeira lição a escritores novatos e veteranos.

Depois, ela prossegue explicando a sua obra de forma poética: “As palavras são sons transfundidos de sombras que se entrecruzam desiguais, estalactites, renda, música transfigurada de órgão. (...). Juro que este livro é feito sem palavras. É uma fotografia muda. Este livro é um silêncio. Este livro é uma pergunta.”

Ainda sobre esta menor unidade da composição, a autora relata que “a palavra é fruto da palavra. A palavra tem que se parecer com a palavra. Atingi-la é o meu primeiro dever comigo. E a palavra não pode ser enfeitada e artisticamente vã, tem que ser ela apenas ela. Bem, é verdade que também queria alcançar uma sensação fina e que esse finíssimo não se quebrasse em linha perpétua. Ao mesmo tempo que quero também alcançar o trombone mais grosso e baixo, grave e terra, tão a troco de nada que por nervosismo de escrever eu tivesse um acesso incontrolável de riso vindo do peito. E quero aceitar minha liberdade sem pensar o que muitos acham: que existir é coisa de doido, caso de loucura. Porque parece. Existir não é lógico.”

[CONTINUA NO PRÓXIMO GRÃO]

Hélio Fuchigami
Enviado por Hélio Fuchigami em 30/12/2014
Código do texto: T5085464
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