HÁ CINQUENTA ANOS, UM GOLPE MILITAR

 

Esta entrevista foi concedida em maio de 2013 a Cinthia Cavalcante, estudante do curso de História da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB), Cruz das Almas, Bahia. Respondi prazerosamente, por e-mail, as 10 questões levantadas por ela que pretendia elaborar um trabalho acadêmico com a minha colaboração. No ensejo dos cinquenta anos do golpe militar de 1964, achei por bem partilhar com os amigos o teor dessa entrevista, principalmente com os mais jovens que não vivenciaram essa triste página da nossa história.

 

1. Onde o Senhor estava no momento do Golpe Militar?
Estava em Cruz das Almas, onde cursava o terceiro ano de agronomia e participava do movimento político pelas reformas de base propostas pelo governo esquerdista de João Goulart. Existia a Frente Nacionalista de Cruz das Almas onde militavam diversas tendências desde a esquerda mais radical representada pelo Partido Comunista Brasileiro, então na ilegalidade, até grupos mais moderados de posição nacionalista. O que unia a todos era o sentimento de patriotismo pelo desenvolvimento nacional, a defesa de nossa riqueza natural ameaçada pela cobiça externa e a industrialização do país.
A prefeitura da cidade era ocupada por Jorge Guerra, político conservador, eleito com o apoio da esquerda cruzalmense, por ter assumido compromissos com um programa de governo afinado com o ideário da Frente Nacionalista. O exército golpista com a colaboração das forças reacionárias locais o depôs nos primeiros dias da ditadura. Muitos militantes políticos operários e estudantis foram presos entre os quais eu, no verdor dos meus 20 anos. Lembro-me como se fosse hoje. Tinha chegado da Escola Agronômica da Bahia quando minha mãe entregou-me um intimação para comparecer à Casa de Detenção, local onde hoje funciona a Casa da Cultura Galeno D’Alvelirio. Isso depois de ter passado por um interrogatório na sede do Tiro de Guerra dias antes. Recebendo ordem de prisão, fui jogado numa viatura junto com mais três companheiros: Gumercindo Sá, Mario Santos e Martinho, líder camponês tarefeiro da Escola Agronômica, e levado para Salvador (Carlos Alves Costa, outro colega de agronomia tinha sido recolhido antes). Só tive tempo de rabiscar às escondidas um bilhete para os meus pais, deixado com um dos soldados da polícia conhecido de minha família, explicando o que acontecera. Chegamos a Salvador perto de meia noite. Na minha memória ainda ressoam as doze batidas do sino da Igreja de Nazaré próxima ao Quartel General do Exército, onde passamos por uma triagem e fomos fichados. Ali não houve interrogatório, apenas uma triagem, fotos e “tocamos piano” ou seja fomos fichados.
Novamente dentro de uma viatura, sem enxergar nada do que se passava lá fora, segui destino ignorado. Subia e descia ladeira até que ouvi o barulho de ondas do mar. Pensava com meus botões: será que vão nos dar fim no oceano? A tensão terminou quando a viatura transpôs o portão da Fortaleza de Monte Serrat onde passei por um rápido interrogatório com o major comandante. Em seguida fui encarcerado num depósito de presos, um barracão amplo, sem divisórias, com um só portão de entrada. Era sem dúvida um local improvisado para prisioneiros. Era de madrugada, abriram o portão fui jogado lá dentro, fiquei por uns instantes tentando acostumar-me à escuridão até que enxerguei um monte de pessoas dormindo em colchões espalhados pelo chão. Procurei em vão um colchão para me acomodar. Encontrei apenas alguns jornais que me serviram de leito. Quando o dia amanheceu, fui rodeado de companheiros que me deram as boas vindas e começaram a dar as dicas sobre o viver naquele espaço onde os presos estavam organizados e se revezavam nas tarefas de limpeza. Existia comissão de recepção, comissão para contato com a direção do presídio, comissão de recreação, comissão de assistência religiosa, assistência política, entre outras. Tive azar de chegar de madrugada. Os prisioneiros novos chegados durante o dia tinham uma recepção calorosa com palmas e vivas para levantar o moral.
2. Você foi a favor? Por quê?
Do golpe militar? Claro que não. O golpe foi perpetrado com o apoio explícito do governo americano sob pretexto de impedir o “avanço comunista” no Brasil. Mas na verdade o que eles queriam era impedir os avanços político, social e econômico que as chamadas reformas de base do governo de João Goulart, eleito democraticamente pelo povo, queria implantar. Eram as reformas agrária e bancária, o controle da remessa de lucros para o exterior, a participação dos empregados nos lucros das empresas e a nacionalização de empresas estrangeiras, entre outras. Isso contrariava interesses dos trustes internacionais (hoje chamados empresas multinacionais) e, internamente, das oligarquias latifundiárias e urbanas.
O núcleo de apoio político principal dos militares golpistas era a União Democrática Nacional (UDN), partido das oligarquias derrotado nas urnas, em 1950, por Getúlio Vargas que terminou se suicidando, em 1954, para resistir a um golpe militar. Novamente tentaram impedir a posse de Juscelino Kubitschek em 1955 e também não conseguiram graças a um contragolpe legalista liderado pelo general Teixeira Lott que viabilizou a posse de JK. Após a renúncia de Jânio Quadros, em 1961 os militares tentaram impedir a posse do vice-presidente constitucionalmente eleito João Goulart. Ele se encontrava em viagem oficial à China. No Brasil, o governador do Rio Grande do Sul Leonel Brizola rebelou-se contra a atitude dos militares e liderou o Movimento pela Legalidade para dar posse ao presidente Jango. Os seus discursos inflamados transmitidos pela Radio Guaíba de Porto Alegre instalada nos Porões do Palácio Piratini, logo foram ouvidos em todo o Brasil graças à adesão das estações de radio à chamada Cadeia da Legalidade. Foram 14 dias de resistência que terminaram com a atitude conciliadora de Jango que aceitou assumir a presidência de um regime parlamentarista que reduzia os seus poderes, como impunham os militares. Tancredo Neves assumiu então a função de Primeiro Ministro, mas logo foi proposto um plebiscito que devolveu ao presidente Goulart plenos poderes, quando o povo por maioria esmagadora rejeitou o parlamentarismo.
O golpe militar de 1964 finalmente logrou o êxito que as forças reacionárias golpistas não conseguiram nas três tentativas anteriores. Só que os políticos da UDN que esperavam receber de mão beijada o poder dos militares tiveram a maior frustração. Os milicos tomaram gosto pela coisa e foram se revezando na presidência por 21 anos até que a pressão popular pelas eleições diretas conseguiu reverter esse quadro. Entretanto não houve ruptura e a transição foi acertada de modo que os militares não sofressem punição pelos crimes perpetrados mediante a assim chamada “anistia mútua”. Até que isso acontecesse o Brasil viveu a fase mais negra de sua história com a supressão dos direitos democráticos, perseguições políticas, prisões e torturas cujos responsáveis até hoje não foram punidos, diferente do que aconteceu com os ditadores e torturadores da Argentina, Chile e Uruguai países que viveram o mesmo drama.
3. No que influiu em sua vida?
Não só a minha vida, como de resto a de todos os brasileiros, a ditadura militar foi um período de cerceamento das liberdades em todos os sentidos. Você não podia expressar livremente o pensamento, muito menos agir politicamente. Desconfiava-se de tudo e de todos porque ali em sua frente, disfarçado de amigo, poderia estar um dedo duro informante do Serviço Nacional de Informações. Para conseguir um emprego em repartição ou empresa publica tinha de passar pelo crivo de um general ou coronel todo poderoso que estava lá para dar a palavra final sobre sua contratação e depois vigiar os seus passos, suas declarações e atitudes. Era um clima de terror que hoje depois de tudo, os mais jovens que não viveram esse momento triste são incapazes de imaginar. Você imagina que até os eventos culturais, festivais, teatro, cinema tudo tinha de passar por esses censores. Lembro-me que o I Festival da Cultura realizado em Cruz das Almas em 1966, onde fiz uma conferência sobre a literatura cruzalmense foi monitorado pela Polícia Federal. O meu amigo e poeta Luciano Passos que coordenou o evento teve de dar muitas explicações a um coronel chefe do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) em Salvador para viabilizar o Festival. Assim mesmo deslocou-se para Cruz um aparato de agentes disfarçados para acompanhar o desenrolar do evento. Recordo-me que no dia da conferência de João Ubaldo Ribeiro e Ariovaldo Matos, na plateia estavam alguns desses agentes.
Se eu resisti olimpicamente ao impacto dos acontecimentos durante a prisão, ficaram marcas indeléveis que afetaram do ponto de vista psicológico. Perdi a desenvoltura para falar em público, comecei medir as palavras escritas ou verbalizadas com certa autocensura, ficando alguns traumas até recentemente. Maltratou-me muito a sorte dos amigos que entraram para a clandestinidade, inconformados com a falta de espaço político para a sua atuação. A essa altura, eu desvinculado desse tipo de luta, levando a vida normal preocupado apenas em sustentar a minha família – já tinha três filhos - sofria muito a cada notícia de queda de alguns desses amigos presos, torturados, trucidados e desaparecidos. Eudaldo Gomes da Silva colega formado também na Escola Agronômica da Bahia, em Cruz das Almas, foi uma dessas vitimas da crueldade da ditadura militar. Os algozes torturadores fizeram desaparecer o seu corpo que até hoje sua família não teve o direito de velá-lo em sepultamento cristão.
4. Qual foi o motivo da sua prisão?
Sempre atuei no movimento estudantil e na Frente Nacionalista de Cruz das Almas desde a adolescência. Enquanto muitos outros colegas viviam essa fase da vida curtindo as festas, as garotas eu já me preocupava com questões das desigualdades sociais, independência econômica do Brasil e outras ações de cunho político. Escrevia para o jornal local, era simpatizante do Partido Comunista que apoiava o Governo Jango e membro de um dos Grupos dos Onze de Cruz das Almas, organização liderada nacionalmente por Leonel Brizola com o objetivo de defender as reformas de base do Governo João Goulart.
Segundo um dos coronéis que me interrogaram na Fortaleza de Monte Serrat, o motivo principal de minha prisão teria sido o poema Desperta Povo publicado no jornal local que sucedeu a “O Nacionalista” pouco antes do golpe. Lamentavelmente não me recordo do nome desse tabloide que me parece ter circulado em apenas duas edições.
Em 1964, passei o São João preso na Fortaleza de Monte Serrat. Recordo-me daquela noite estrelada, as luzes e estouros de fogos à distância e os pequeninos balões que caiam no pátio do Quartel onde tomávamos banho de sol. Depois fui transferido para o 19° BC (Batalhão de Caçadores) onde as condições prisionais eram piores pelo excesso de lotação na cela.
5. Como o Senhor era tratado lá?
Passei por muitos constrangimentos embora não sofresse tortura física. No máximo ameaças disso, como ir para a solitária e outros castigos quando resisti a denunciar companheiros. Mas a violência moral era forte. O prisioneiro às vezes era acordado de madrugada para prestar depoimento de forma inesperada. Você saia do galpão onde estava preso e se dirigia para o segundo andar da Fortaleza onde o palco estava armado para você depor. Seguia escoltado por soldados com metralhadora e fuzil. Os companheiros gozavam da situação dizendo que os mais importantes eram seguidos por bandolim e violão em alusão à metralhadora e ao fuzil portados pelos soldados que nos levavam . Nos depoimentos, três oficiais se revezavam horas a fio para o prisioneiro se cansar e falar o que eles queriam ouvir. Tinha um que fazia o papel de durão com as ameaças físicas, se você se negasse a responder na linha esperada por eles e o outro fazia o papel de “bonzinho” procurando ser amável e compreensivo para lhe conquistar a confiança e assim obter delações.
Diziam que nesse Quartel estavam os presos menos perigosos segundo eles. Era o batalhão de Engenharia formado de oficiais e soldados supostamente mais cultos diferente de outros batalhões de caserna.
6. Quais foram suas inspirações para escrever seus Poemas na prisão?
Em primeiro lugar o sentimento de perda da liberdade e o inconformismo com a violência que os militares usavam para silenciar a resistência dos que apoiaram o governo constitucionalmente eleito de João Goulart. Depois a busca da interioridade espiritual encontrada na certeza de que não praticara mal algum para ali estar recluso. Inspiraram-me também as dádivas da natureza na maioria das vezes despercebidas ou não valorizadas pelos que estão em liberdade. Por exemplo, o pôr-do-sol, o surgimento da primeira estrela no céu , a visita de um pássaro saltitando próximo às grades e aquela “quenturinha” gostosa no seu costado por ocasião do banho de sol. Da Fortaleza de Monte Serrat, estando no alto, dava para ver o mar, o horizonte e o anoitecer. Eu me postava em frente às grades todo o fim de tarde para apreciar a beleza da chegada da noite e “tomei posse” da primeira estrela que sempre aparecia no céu quase escuro. Um dia essa estrela não apareceu e compus um poema revelando o meu estado de espírito ante aquela ausência:

A MINHA ESTRELA

Ela virá?
sim, ela virá,
tenho certeza.
Ainda ontem, anoitecendo,
ali estava.
Sobre o horizonte policromado
reluzia.
E o mar calmo, taciturno,
indiferente à minha angústia,
embalava o barco que passava.
Hoje estou desolado...
Vejo o mar, o barco, o horizonte
e a minha estrela não veio.
Fugiu deixando a paisagem
tão vazia quanto minh’alma.

7. O que o Senhor lembra daquela época, que mais lhe indigna?
As cruéis perseguições que resultavam em prisões, torturas e desaparecimentos. A falta de liberdade de expressão, as delações, o apoio ou a conivência de setores políticos, empresariais e da grande mídia, notadamente a Globo com os atos que marcaram essa fase negra da nossa história. Doeu-me muito a conquista do tricampeonato mundial habilmente associada a popularização daquele general mais cruel de todos Garrastazu Medici que recebeu os jogadores no Palácio, fazendo embaixadinhas. Enquanto isso nos porões da ditadura centenas de cidadãos da resistência, ativistas ou apenas por eles suspeitos eram submetidos às mais abomináveis sevícias, não raro torturados até a morte e dados como desaparecidos. As novas gerações precisam tomar conhecimento dessas atrocidades cometidas para que elas jamais se repitam no Brasil.
8. O senhor perdeu alguém próximo nas mãos dos militares?
Eudaldo Gomes da Silva a quem já me referi anteriormente foi uma dessas vítimas.
9. Em que ano o Senhor saiu da prisão? Como foram seus anos após?
Entrei em maio e sai em julho de 1964. Não me recordo as datas mas foram exatamente 50 dias de reclusão. Parte no Quartel de Monte Serrat e parte no 19° BC, no Cabula. Eu cursava o terceiro ano de agronomia, mas apesar de tudo consegui concluir o meu curso entre os primeiros colocados. A despeito disso não foi fácil conseguir o primeiro emprego. Naquela época a oferta de empregos era muito grande mesmo. Choviam propostas de diversos órgãos oficiais e privados que antes mesmo da formatura já partiam para a faculdade a fim de recrutar formandos. Na verdade um único convite que recebi foi do Prof. Clodoaldo Gomes da Costa, professor da EAB e nomeado pela ditadura diretor do INDA (órgão de colonização e desenvolvimento agrário). Ele me conhecia desde o tempo em que era diretor do então Colégio Alberto Torres, particular, hoje CEAT, onde cursei o ginásio e o científico com bolsa de estudo do colégio obtida por desempenho escolar. Eu estava prestes a começar trabalhar num assentamento em Andaraí, quando casualmente encontrei o Prof. José Assis de Oliveira, titular da cadeira de Extensão Rural, com quem eu tinha feito um excelente curso. Ele me perguntou se eu já tinha arrumado trabalho. Quando falei que estava indo para Andaraí ele não se conformou. Como já tivera dirigido o Sistema Brasileiro de Extensão Rural – ANCAR-RN agendou para mim uma entrevista com o então Secretario Executivo da ANCAR-BA. Fui aceito e logo encaminhado para um curso de extensão rural na Universidade de Viçosa, onde obtive o primeiro lugar. Nesse curso conheci um grande amigo Luis Galvão, também perseguido da ditadura em Juazeiro, com que confidenciava assuntos políticos e trocava poemas. Mais tarde ele deixou as atividades técnicas para ser compositor dos Novos Baianos onde ficou até a separação do grupo.
Pela ANCARBA, fui trabalhar em Itapetinga, depois voltei para Cruz das Almas, atuando no IPEAL, hoje Embrapa. Em 1974 vim para Brasília para trabalhar no Departamento de Difusão de Tecnologia, na sede da Embrapa. Quando me aposentei, em 2005, exercia a função de assessor da Diretoria Executiva da Embrapa, depois de ser editor por uns 15 anos da revista científica Cadernos de Ciência & Tecnologia.
Com a redemocratização do Brasil, voltei à militância política no Partido dos Trabalhadores. Inconformado com os rumos tomados pelo PT depois da eleição do presidente Lula, abandonei de vez a militância política, e parafraseando Cazuza, digo hoje que o meu Partido é um coração partido. Atualmente dedico-me à literatura. Quem quiser conferir o meu acervo literário, encontra-se no Recanto das Letras, repositório de todos os meus textos em versos e prosa.
10. Todos os seus Poemas para o livro Poemas de Cárcere foram escritos na prisão? O que sente hoje ao relembrar de tudo vivido naquela época?
Não. Muitos deles, talvez a maioria, foram escritos depois. Mas como guardam relação com a temática política e social resolvi agregá-los aos Poemas do Cárcere em E-book. Essa edição eletrônica foi composta pela poeta e amiga Reinadi Sampaio, para ser lançada em Havana, em maio de 2012, por ocasião do I Encontro de Poetas del Mundo realizado em Cuba.
O meu sentimento hoje ao relembrar de tudo isso é a um só tempo de orgulho e desencanto. Orgulho por ter participado ainda menino de acontecimentos tão importantes da história política brasileira, ainda que no microcosmo de Cruz das Almas. Desencanto com a realidade da chamada globalização do mundo atual que a despeito de avanços no campo científico-tecnológico mantém as desigualdades e iniquidades sociais. Pior que isso, a uni dimensão de valores por ela impostos destrói culturas locais, limites éticos e morais, tudo em nome da exacerbação consumista que sustenta o capitalismo.
Finalizando agradeço a você a oportunidade de falar um pouco de mim no contexto desses acontecimentos que não podem ser esquecidos pela sociedade brasileira.