a voz de Moçambique, entrevista de Mia Couto a Luiz Costa Pereira Junior na Língua Portuguesa no 33
É uma metáfora poderosa a de que o escritor se anula ao criar uma história e volta a ser sombra quando a conclui. Essa imagem está em Terra Sonâmbula, o primeiro romance de Mia Couto, escrito há mais de quinze anos em Moçambique, e espelha o tom de respeito que o escritor dá à voz do outro, seja ele um povo desconhecido, seja um personagem de ficção.
António Emílio Leite Couto diz que desfia suas histórias quando presta atenção às figuras que inventa. Imagina o que diriam, quais seriam suas reações numa situação, o que diriam na intimidade, o que as levaria a agir. Esses movimentos, Couto os descobre devagar, que os sons da guerra ainda ecoam em sua mente, e a libertação de Moçambique do domínio português é recente, coisa de 1975. “Sou mais velho que meu país”, diz.
Em junho, Mia Couto lançou no Brasil seu novo romance, Remédios de Deus, Remédios do Diabo (Companhia das Letras), uma viagem exploratória sobre a identidade e a velhice. Nascido em 1955, ele é biólogo e jornalista. Vive num país em que o português é língua materna de apenas 10% da população, lançam-se no máximo 40 livros por ano e há não mais de 11 livrarias, uma das quais em sua cidade natal, Beira.
Com o novo romance, são cinco as obras de Couto editadas no Brasil, um dos 21 países que o publicam. A mais célebre delas ainda é Terra Sonâmbula, seu romance de estreia, um primor de prosa poética em que conta uma história dentro de outra, como uma récita de contos.
Nesta entrevista, feita em São Paulo duas semanas após concluir o novo romance, em março, ele afirma que o povo moçambicano vivia o recalque de sentir que falava um português “errado” até perceber a experiência libertadora que é a brasileira. “O Brasil mostrou que não há português puro, e isso nos afirmou a identidade da língua portuguesa moçambicana.”
Para Mia Couto, os moçambicanos aprenderam que, com o açúcar da sonoridade africana, o português, com eles, não é de má qualidade. Ganha antes elasticidade. E mais alegria.
Língua Portuguesa — Para você também vale o dito por Kindzu (de Terra Sonâmbula): quando você acende uma história, apaga a si mesmo?
Mia Couto — É mais que uma questão literária essa a de que devemos virar sombra para que o outro ganhe visibilidade para nós. Para que as luzes do outro sejam percebidas por mim devo por bem apagar as minhas, no sentido de me tomar disponível para o outro. Nós estamos tão cheios de nós próprios quando vamos ao encontro do outro que não temos a capacidade de captá-lo. É uma questão de fazer de nossa vida um rio de trocas para sermos mais felizes.
Como as técnicas da poesia ajudam a contar uma história?
A poesia para mim é uma maneira de olhar o mundo, de entendê-lo. É quase uma atitude filosófica. Poesia, a atitude, ajuda a criar enredos. Quanto ao resto, não ajuda. Porque o tratamento que é dado à linguagem é outro. O objeto sobre o qual a poesia trabalha é a própria linguagem. No romance, a linguagem não é o objeto central. Ela é muito mais um meio para construir a narrativa. Há aqui qualquer coisa que briga. Uma área assim em conflito me instiga, porque, no fundo, há que desmontar um bocado daquilo que são as ideias feitas sobre o que é poesia ou ficção. O escritor precisa ver onde está o limite entre uma coisa e outra e há de desmanchar esse limite, brincar com ele.
Você começa a escrever com a história previamente idealizada? Ou a inventa à medida que escreve?
Um livro nunca nasce de uma ideia única. Não sou capaz de fazer livros assim, isto de haver uma arquitetura prévia e o resto seria engenharia, digamos assim. Mas acabei de escrever Remédios de Deus, Remédios do Diabo, e quis me contrariar nessa ideia. Porque quero que um processo de criação me questione, de tal modo que, se fosse novamente desafiado, não saberia fazer outra vez do mesmo jeito, e não quero saber. Neste livro, resumi a história a três personagens e não deixei entrar nenhum outro. O processo caótico é muito estimulante, porque a certa altura os personagens nos controlam. Mas agora, não. Disse a mim mesmo que agora sou eu a estar no controle, a subir ao cavalo, a apanhá-los na rede e a não deixar entrar mais ninguém.
Como idealizou o livro?
Em Remédios de Deus, Remédios do Diabo, um médico português vai a Moçambique à procura de uma mulher pela qual se apaixonou. Chega à casa do pai dela, e é informado de que ela está provisoriamente fora. Vai ficando na casa, aproveita e trabalha no hospital da aldeia e vai se confrontando com o universo do lugar. Depois, um jogo de mentiras o obriga a ficar na vila. Neste livro, eu tinha dois personagens que me cativaram, dois velhos. Os velhos têm uma relação muito especial com o tempo, com a idade, com a morte. Há a ideia do convívio difícil que se transfere para a relação entre os dois, mas, no fundo, ambos estão com medo das mesmas coisas, cultivam os mesmos fantasmas. Esses são personagens que me fazem aproximar de uma história. Amo-os suficientemente para que me permitam que eu seja próximo a eles. É como se eu pudesse escutar a sua história, e eles me conduzissem para a sua narrativa.
Que obstáculos têm um escritor da África lusófona?
O fato de morar num universo periférico. A língua portuguesa não é já ela própria uma língua central. Mas pertenço a um mundo ainda mais exclusivo, quase um quintal. Muita gente não sabe nem o que é Moçambique, mesmo aqui no Brasil tenho de estar sempre explicando, e isso não ajuda. Talvez em alguns momentos possa ajudar, quando há a procura pelo exótico, por exemplo. Mas são instantes isolados.
Chegar ao Brasil é um obstáculo grande aos escritores africanos?
Há vinte anos, sim. Agora, mudou muito. Mudou em razão da relação brasileira com a África. Há coisas que o Brasil está fazendo de maneira mais concreta, que antes não fazia, para aproximar-se dos países africanos de língua portuguesa. Não só o Brasil, mas nós próprios também. Nossa atitude mudou. Os africanos eram muito apelativos: “Olhem para nós, porque estamos sofrendo”. Isto não resulta. Há que nos empenharmos em produzir uma linguagem distinta, em criar uma alma que não instiga essa relação de compaixão ou solidariedade, mas seja afirmativa. Não é pela solidariedade que a arte ou a literatura em Moçambique vai conquistar o seu lugar, onde quer que seja.
Há especificidades nas literaturas lusófonas? Que tipo de marca se vê só no texto brasileiro, só no português e só no moçambicano?
Sim, há. Isso está muito marcado com as diferentes relatividades dos lugares. A relação com a morte, com os deuses, os nossos medos profundos. Não é uma coisa só literária, tem a ver com o espírito do lugar. A maneira como portugueses são marcados pelo catolicismo, digamos, mediterrânico; os brasileiros, por alguma área sincrética entre a herança africana e o catolicismo; e os africanos, que têm o peso brutal dos antepassados sobre si. Isso tem consequências fundamentais na literatura, na maneira de sentir o mundo, de pesar os sentimentos. Falamos com os mortos de maneira diferente e por isso escrevemos para os vivos de modo distinto, mesmo na mesma língua.
Como vê a condição internacional do português?
O que posso dizer? Tudo depende da maneira como Brasil e Portugal se vão entender e adotar uma postura que seja produtiva, virada para o futuro, e acima das disputas por hegemonia em torno do português que falamos.
A liberação do domínio colonial provoca algum tipo de aversão ao idioma português em Moçambique?
Isto não existe e, se há, é fruto de uma minoria muito, mas muito pequena. O português tem cada vez mais transitado de língua oficial para a de cultura. Quando Moçambique se tornou independente, em 1975, só 2% da população tinha o português como língua materna. Agora, são mais de 10%. Todos os escritores moçambicanos escrevem em português porque sentem, sonham em português.
Há contradições do português no convívio com os idiomas nativos?
Há áreas de conflito. As línguas têm sempre uma vocação hegemônica e é preciso cuidado para que não ocorra lá o que ocorreu no Brasil, onde os idiomas nativos foram dizimados. Em Moçambique há a preocupação com as mais de 20 línguas locais, para que não fiquem subalternizadas e depois morram. Nasci em língua portuguesa, com 5 anos falava xissena, que é o idioma de minha terra natal, Beira. Agora falo mal e entendo razoavelmente bem o idioma do sítio em que vivo em Maputo, que é o changane.
As diferenças entre o português africano e o brasileiro repercutem em alguma medida na forma como se cria ficção aqui e em Moçambique?
Acho que não afetam, no sentido de perturbar. Alguma arrumação da gramática brasileira tem muita influência da estrutura das línguas africanas. O modo como vocês usam o reflexo, por exemplo, também ocorre no português moçambicano, no de Angola. “Eu o vi” não é correto segundo o padrão europeu, mas sim “eu vi-o”. Em Moçambique, pessoas que nunca conviveram com o Brasil, dizem “eu o vi”. Uma das razões de Jorge Amado ter cativado a África lusófona foi nos ter apresentado personagens falando o português coloquial do Brasil. A adesão imediata foi porque nós também falamos daquele jeito. E percebemos que não é errado. Sempre nos diziam que falávamos errado, mas aí começamos a dizer: “O brasileiro também fala assim”.
A literatura brasileira teria, então, ajudado a “abonar” o português moçambicano?
Sem dúvida. A descoberta do português brasileiro foi fantástica. Porque mostrou que nós precisávamos ver o português sem Portugal, um português que mostrasse que havia pluralidade, outras culturas que manejam o idioma com a mesma dificuldade e a mesma alegria.
Como o acordo de unificação ortográfica é visto em Moçambique?
De uma maneira muito displicente. Percebe-se que não é isso que falta, nem que vá resultar grande coisa. E como se fosse uma questão só de Portugal e Brasil. Meus livros são publicados no Brasil com grafia moçambicana, que é portuguesa, e ninguém me disse que ficou muito atrapalhado com isso. Leio com enorme prazer os livros brasileiros e um dos prazeres é o fato de vocês terem uma grafia distinta. A existência dela não é problema, pois sentir certa falta de familiaridade mostra que ali está um outro povo, uma outra cultura falando.
Quais diferenças do português falado em Moçambique e no Brasil que mais saltam ao seu ouvido?
Além do uso do reflexo, há o gerúndio, por exemplo. Vocês têm o gerúndio muito presente, o “estou fazendo”; nós temos a forma composta “estou a fazer”, que também dá ideia de continuidade, mas não é construída na mesma forma verbal.
O Brasil influencia o léxico moçambicano?
Há coisas mais gritantes, como “bicha”, que para nós é “fila”, e está morrendo, porque nas novelas brasileiras, muito vistas lá, o sentido é de homossexualidade. Expressões como “estou na bicha” estão sumindo nas cidades, não tanto no meio rural. “Todo mundo” é uma coisa brasileira. Há dez anos, dizíamos “toda a gente”. “Visual”, da expressão “mudar o visual”, também não usávamos.
O curioso é que, logo após a independência, havia uma postura preconceituosa em relação ao português do Brasil. Estive numa reunião, não lembro se em 1976, 77, em que os pais protestaram contra um brasileiro que ia ensinar português na capital Maputo.
“O português do Brasil não é o verdadeiro português”, diziam. Mas não só a TV mudou essa imagem, como os jovens moçambicanos, que vieram estudar no Brasil, e os brasileiros, que por Moçambique passaram. Depois desses contatos, percebeu-se que não há um português puro.
Vocês se incomodam com estrangeirismos, que aqui no Brasil são vistos por muitos como um problema?
De modo algum. É preciso notar que o português em Moçambique é uma segunda língua. E na sua língua materna, o moçambicano já faz a sua ginástica de incorporar termos de outros idiomas. O que o português chama de poltrona, em Moçambique é um “etuo” em changane, que vem de stoel, “cadeira” em holandês. Os óculos recebem o nome de “glase”, do inglês glass. As línguas nativas têm toda a liberdade de buscar novos termos onde quiquiserem. Não havia palavra para nomear artefatos modernos pós-colonização, daí africanizá-los como necessário. É um contra-senso defender a pureza do idioma num sítio desses.
A literatura brasileira influenciou sua obra em algum sentido?
Tudo o que li ficou em mim. A literatura brasileira ficou muito conhecida lá, e mais querida que a portuguesa. Na geração dos anos 50, 60, era um entusiasmo. A partir dos anos 80, depois da independência, curiosamente, aquela ligação foi perdida. Hoje não se conhece quase nada por lá, à exceção de Paulo Coelho, que não sei se pode ser chamado de escritor.
Como a literatura moçambicana evoluiu? Ganhou vigor ou é marcada por casos pontuais?
É muito difícil falar de uma literatura moçambicana, como um todo lógico. Há escritas moçambicanas, não uma literatura. Isso pede tempo e nós perdemos umas duas gerações com a guerra. A escola, que era um elemento de ligação com o livro e a língua, morreu por quase vinte anos.
Há literatura lá que não seja em português?
Houve uma tentativa, mas fracassou. Foram publicados dois livros em tsonga, e disseram que venderam menos de dez exemplares cada. Não basta só a oferta, é preciso um trabalho de base que tem de passar pela escola, pela fixação da língua escrita.
Como vê o mercado consumidor de literatura em língua portuguesa?
Eu não o conheço bem. Mas me surpreendi que em proporção, as tiragens em Portugal são muito mais altas que as do Brasil. Há edições com médias de 50 mil 60 mil exemplares por lá, o que no Brasil é impensável. E olha que Moçambique tem uma taxa de analfabetismo altíssima. Em todos os países, há autores de enorme sucesso que não são bons e outros com prêmios que não vendem muito. Não sei nem se os próprios editores entendem bem o que se passa nesses mercados.
Certa vez você declarou que Moçambique vivia um eterno “momento de trégua”, indeciso entre “o horror da guerra e o terror da paz”. umo vê seu país hoje?
É um país que está em estado de ficção. E é muito jovem. Moçambique está agora a tentar encontrar um espaço de comunhão. Sou mais velho que meu próprio país, veja só. Há processos que se sedimentarão com o tempo. Tenho certeza de que iremos nos encontrar e, como fazem as famílias, nos juntaremos para fazer um retrato e dizer: “isto é Moçambique”.
É uma metáfora poderosa a de que o escritor se anula ao criar uma história e volta a ser sombra quando a conclui. Essa imagem está em Terra Sonâmbula, o primeiro romance de Mia Couto, escrito há mais de quinze anos em Moçambique, e espelha o tom de respeito que o escritor dá à voz do outro, seja ele um povo desconhecido, seja um personagem de ficção.
António Emílio Leite Couto diz que desfia suas histórias quando presta atenção às figuras que inventa. Imagina o que diriam, quais seriam suas reações numa situação, o que diriam na intimidade, o que as levaria a agir. Esses movimentos, Couto os descobre devagar, que os sons da guerra ainda ecoam em sua mente, e a libertação de Moçambique do domínio português é recente, coisa de 1975. “Sou mais velho que meu país”, diz.
Em junho, Mia Couto lançou no Brasil seu novo romance, Remédios de Deus, Remédios do Diabo (Companhia das Letras), uma viagem exploratória sobre a identidade e a velhice. Nascido em 1955, ele é biólogo e jornalista. Vive num país em que o português é língua materna de apenas 10% da população, lançam-se no máximo 40 livros por ano e há não mais de 11 livrarias, uma das quais em sua cidade natal, Beira.
Com o novo romance, são cinco as obras de Couto editadas no Brasil, um dos 21 países que o publicam. A mais célebre delas ainda é Terra Sonâmbula, seu romance de estreia, um primor de prosa poética em que conta uma história dentro de outra, como uma récita de contos.
Nesta entrevista, feita em São Paulo duas semanas após concluir o novo romance, em março, ele afirma que o povo moçambicano vivia o recalque de sentir que falava um português “errado” até perceber a experiência libertadora que é a brasileira. “O Brasil mostrou que não há português puro, e isso nos afirmou a identidade da língua portuguesa moçambicana.”
Para Mia Couto, os moçambicanos aprenderam que, com o açúcar da sonoridade africana, o português, com eles, não é de má qualidade. Ganha antes elasticidade. E mais alegria.
Língua Portuguesa — Para você também vale o dito por Kindzu (de Terra Sonâmbula): quando você acende uma história, apaga a si mesmo?
Mia Couto — É mais que uma questão literária essa a de que devemos virar sombra para que o outro ganhe visibilidade para nós. Para que as luzes do outro sejam percebidas por mim devo por bem apagar as minhas, no sentido de me tomar disponível para o outro. Nós estamos tão cheios de nós próprios quando vamos ao encontro do outro que não temos a capacidade de captá-lo. É uma questão de fazer de nossa vida um rio de trocas para sermos mais felizes.
Como as técnicas da poesia ajudam a contar uma história?
A poesia para mim é uma maneira de olhar o mundo, de entendê-lo. É quase uma atitude filosófica. Poesia, a atitude, ajuda a criar enredos. Quanto ao resto, não ajuda. Porque o tratamento que é dado à linguagem é outro. O objeto sobre o qual a poesia trabalha é a própria linguagem. No romance, a linguagem não é o objeto central. Ela é muito mais um meio para construir a narrativa. Há aqui qualquer coisa que briga. Uma área assim em conflito me instiga, porque, no fundo, há que desmontar um bocado daquilo que são as ideias feitas sobre o que é poesia ou ficção. O escritor precisa ver onde está o limite entre uma coisa e outra e há de desmanchar esse limite, brincar com ele.
Você começa a escrever com a história previamente idealizada? Ou a inventa à medida que escreve?
Um livro nunca nasce de uma ideia única. Não sou capaz de fazer livros assim, isto de haver uma arquitetura prévia e o resto seria engenharia, digamos assim. Mas acabei de escrever Remédios de Deus, Remédios do Diabo, e quis me contrariar nessa ideia. Porque quero que um processo de criação me questione, de tal modo que, se fosse novamente desafiado, não saberia fazer outra vez do mesmo jeito, e não quero saber. Neste livro, resumi a história a três personagens e não deixei entrar nenhum outro. O processo caótico é muito estimulante, porque a certa altura os personagens nos controlam. Mas agora, não. Disse a mim mesmo que agora sou eu a estar no controle, a subir ao cavalo, a apanhá-los na rede e a não deixar entrar mais ninguém.
Como idealizou o livro?
Em Remédios de Deus, Remédios do Diabo, um médico português vai a Moçambique à procura de uma mulher pela qual se apaixonou. Chega à casa do pai dela, e é informado de que ela está provisoriamente fora. Vai ficando na casa, aproveita e trabalha no hospital da aldeia e vai se confrontando com o universo do lugar. Depois, um jogo de mentiras o obriga a ficar na vila. Neste livro, eu tinha dois personagens que me cativaram, dois velhos. Os velhos têm uma relação muito especial com o tempo, com a idade, com a morte. Há a ideia do convívio difícil que se transfere para a relação entre os dois, mas, no fundo, ambos estão com medo das mesmas coisas, cultivam os mesmos fantasmas. Esses são personagens que me fazem aproximar de uma história. Amo-os suficientemente para que me permitam que eu seja próximo a eles. É como se eu pudesse escutar a sua história, e eles me conduzissem para a sua narrativa.
Que obstáculos têm um escritor da África lusófona?
O fato de morar num universo periférico. A língua portuguesa não é já ela própria uma língua central. Mas pertenço a um mundo ainda mais exclusivo, quase um quintal. Muita gente não sabe nem o que é Moçambique, mesmo aqui no Brasil tenho de estar sempre explicando, e isso não ajuda. Talvez em alguns momentos possa ajudar, quando há a procura pelo exótico, por exemplo. Mas são instantes isolados.
Chegar ao Brasil é um obstáculo grande aos escritores africanos?
Há vinte anos, sim. Agora, mudou muito. Mudou em razão da relação brasileira com a África. Há coisas que o Brasil está fazendo de maneira mais concreta, que antes não fazia, para aproximar-se dos países africanos de língua portuguesa. Não só o Brasil, mas nós próprios também. Nossa atitude mudou. Os africanos eram muito apelativos: “Olhem para nós, porque estamos sofrendo”. Isto não resulta. Há que nos empenharmos em produzir uma linguagem distinta, em criar uma alma que não instiga essa relação de compaixão ou solidariedade, mas seja afirmativa. Não é pela solidariedade que a arte ou a literatura em Moçambique vai conquistar o seu lugar, onde quer que seja.
Há especificidades nas literaturas lusófonas? Que tipo de marca se vê só no texto brasileiro, só no português e só no moçambicano?
Sim, há. Isso está muito marcado com as diferentes relatividades dos lugares. A relação com a morte, com os deuses, os nossos medos profundos. Não é uma coisa só literária, tem a ver com o espírito do lugar. A maneira como portugueses são marcados pelo catolicismo, digamos, mediterrânico; os brasileiros, por alguma área sincrética entre a herança africana e o catolicismo; e os africanos, que têm o peso brutal dos antepassados sobre si. Isso tem consequências fundamentais na literatura, na maneira de sentir o mundo, de pesar os sentimentos. Falamos com os mortos de maneira diferente e por isso escrevemos para os vivos de modo distinto, mesmo na mesma língua.
Como vê a condição internacional do português?
O que posso dizer? Tudo depende da maneira como Brasil e Portugal se vão entender e adotar uma postura que seja produtiva, virada para o futuro, e acima das disputas por hegemonia em torno do português que falamos.
A liberação do domínio colonial provoca algum tipo de aversão ao idioma português em Moçambique?
Isto não existe e, se há, é fruto de uma minoria muito, mas muito pequena. O português tem cada vez mais transitado de língua oficial para a de cultura. Quando Moçambique se tornou independente, em 1975, só 2% da população tinha o português como língua materna. Agora, são mais de 10%. Todos os escritores moçambicanos escrevem em português porque sentem, sonham em português.
Há contradições do português no convívio com os idiomas nativos?
Há áreas de conflito. As línguas têm sempre uma vocação hegemônica e é preciso cuidado para que não ocorra lá o que ocorreu no Brasil, onde os idiomas nativos foram dizimados. Em Moçambique há a preocupação com as mais de 20 línguas locais, para que não fiquem subalternizadas e depois morram. Nasci em língua portuguesa, com 5 anos falava xissena, que é o idioma de minha terra natal, Beira. Agora falo mal e entendo razoavelmente bem o idioma do sítio em que vivo em Maputo, que é o changane.
As diferenças entre o português africano e o brasileiro repercutem em alguma medida na forma como se cria ficção aqui e em Moçambique?
Acho que não afetam, no sentido de perturbar. Alguma arrumação da gramática brasileira tem muita influência da estrutura das línguas africanas. O modo como vocês usam o reflexo, por exemplo, também ocorre no português moçambicano, no de Angola. “Eu o vi” não é correto segundo o padrão europeu, mas sim “eu vi-o”. Em Moçambique, pessoas que nunca conviveram com o Brasil, dizem “eu o vi”. Uma das razões de Jorge Amado ter cativado a África lusófona foi nos ter apresentado personagens falando o português coloquial do Brasil. A adesão imediata foi porque nós também falamos daquele jeito. E percebemos que não é errado. Sempre nos diziam que falávamos errado, mas aí começamos a dizer: “O brasileiro também fala assim”.
A literatura brasileira teria, então, ajudado a “abonar” o português moçambicano?
Sem dúvida. A descoberta do português brasileiro foi fantástica. Porque mostrou que nós precisávamos ver o português sem Portugal, um português que mostrasse que havia pluralidade, outras culturas que manejam o idioma com a mesma dificuldade e a mesma alegria.
Como o acordo de unificação ortográfica é visto em Moçambique?
De uma maneira muito displicente. Percebe-se que não é isso que falta, nem que vá resultar grande coisa. E como se fosse uma questão só de Portugal e Brasil. Meus livros são publicados no Brasil com grafia moçambicana, que é portuguesa, e ninguém me disse que ficou muito atrapalhado com isso. Leio com enorme prazer os livros brasileiros e um dos prazeres é o fato de vocês terem uma grafia distinta. A existência dela não é problema, pois sentir certa falta de familiaridade mostra que ali está um outro povo, uma outra cultura falando.
Quais diferenças do português falado em Moçambique e no Brasil que mais saltam ao seu ouvido?
Além do uso do reflexo, há o gerúndio, por exemplo. Vocês têm o gerúndio muito presente, o “estou fazendo”; nós temos a forma composta “estou a fazer”, que também dá ideia de continuidade, mas não é construída na mesma forma verbal.
O Brasil influencia o léxico moçambicano?
Há coisas mais gritantes, como “bicha”, que para nós é “fila”, e está morrendo, porque nas novelas brasileiras, muito vistas lá, o sentido é de homossexualidade. Expressões como “estou na bicha” estão sumindo nas cidades, não tanto no meio rural. “Todo mundo” é uma coisa brasileira. Há dez anos, dizíamos “toda a gente”. “Visual”, da expressão “mudar o visual”, também não usávamos.
O curioso é que, logo após a independência, havia uma postura preconceituosa em relação ao português do Brasil. Estive numa reunião, não lembro se em 1976, 77, em que os pais protestaram contra um brasileiro que ia ensinar português na capital Maputo.
“O português do Brasil não é o verdadeiro português”, diziam. Mas não só a TV mudou essa imagem, como os jovens moçambicanos, que vieram estudar no Brasil, e os brasileiros, que por Moçambique passaram. Depois desses contatos, percebeu-se que não há um português puro.
Vocês se incomodam com estrangeirismos, que aqui no Brasil são vistos por muitos como um problema?
De modo algum. É preciso notar que o português em Moçambique é uma segunda língua. E na sua língua materna, o moçambicano já faz a sua ginástica de incorporar termos de outros idiomas. O que o português chama de poltrona, em Moçambique é um “etuo” em changane, que vem de stoel, “cadeira” em holandês. Os óculos recebem o nome de “glase”, do inglês glass. As línguas nativas têm toda a liberdade de buscar novos termos onde quiquiserem. Não havia palavra para nomear artefatos modernos pós-colonização, daí africanizá-los como necessário. É um contra-senso defender a pureza do idioma num sítio desses.
A literatura brasileira influenciou sua obra em algum sentido?
Tudo o que li ficou em mim. A literatura brasileira ficou muito conhecida lá, e mais querida que a portuguesa. Na geração dos anos 50, 60, era um entusiasmo. A partir dos anos 80, depois da independência, curiosamente, aquela ligação foi perdida. Hoje não se conhece quase nada por lá, à exceção de Paulo Coelho, que não sei se pode ser chamado de escritor.
Como a literatura moçambicana evoluiu? Ganhou vigor ou é marcada por casos pontuais?
É muito difícil falar de uma literatura moçambicana, como um todo lógico. Há escritas moçambicanas, não uma literatura. Isso pede tempo e nós perdemos umas duas gerações com a guerra. A escola, que era um elemento de ligação com o livro e a língua, morreu por quase vinte anos.
Há literatura lá que não seja em português?
Houve uma tentativa, mas fracassou. Foram publicados dois livros em tsonga, e disseram que venderam menos de dez exemplares cada. Não basta só a oferta, é preciso um trabalho de base que tem de passar pela escola, pela fixação da língua escrita.
Como vê o mercado consumidor de literatura em língua portuguesa?
Eu não o conheço bem. Mas me surpreendi que em proporção, as tiragens em Portugal são muito mais altas que as do Brasil. Há edições com médias de 50 mil 60 mil exemplares por lá, o que no Brasil é impensável. E olha que Moçambique tem uma taxa de analfabetismo altíssima. Em todos os países, há autores de enorme sucesso que não são bons e outros com prêmios que não vendem muito. Não sei nem se os próprios editores entendem bem o que se passa nesses mercados.
Certa vez você declarou que Moçambique vivia um eterno “momento de trégua”, indeciso entre “o horror da guerra e o terror da paz”. umo vê seu país hoje?
É um país que está em estado de ficção. E é muito jovem. Moçambique está agora a tentar encontrar um espaço de comunhão. Sou mais velho que meu próprio país, veja só. Há processos que se sedimentarão com o tempo. Tenho certeza de que iremos nos encontrar e, como fazem as famílias, nos juntaremos para fazer um retrato e dizer: “isto é Moçambique”.