ENTREVISTA PARA ANGELINA NEVES (MOÇAMBIQUE)

(Depois de ter feito uma longa entrevista com a educadora moçambicana Angelina Neves, eis que ela propôs que invertêssemos os papeis. Vi-me, então, na condição de entrevistado, diante de uma mente aguçada, querendo talvez me conhecer mas essencialmente curiosa em conhecer o Brasil e os brasileiros. Não sei se representei bem esse papel, mas aí está o resultado desse diálogo)

Angelina Neves - 1. Imagine por um momento, que se encontra num palco enorme, holofotes se acendem e o iluminam. Tem de se apresentar:

a) Se a plateia fosse composta por crianças, como se apresentaria?

Escobar Franelas - Olá, crianças. Tudo bem? Já tomaram o café da manhã? Bem, vocês não devem saber quem sou eu, mas vou me apresentar. Sou um bicho. Um bicho humano, assim dizem. Com duas patas para se locomover, e mais duas para caçar, pescar, se alimentar, coçar, agredir, agarrar e abraçar. Nome? Sim, eu tenho um nome, mas isso não importa agora. Mas, se quiserem, podem me chamar de homem.

Gosto de dançar, pintar nos muros, comer sem colher, correr descalço,

jogar futebol, jogar xadrez, ler hq, ver tv, ver passarinho.

b) Se a plateia fosse composta por "intelectuais", o que diria?

Olá, senhores, senhoras.... Tudo bem? Àqueles que não me conhecem, vou me apresentar. Sou um bicho. Um bicho humano, assim dizem. Com duas patas para se locomover, e mais duas para caçar, pescar, se alimentar, coçar, agredir, agarrar e abraçar. Nome? Sim, eu tenho um nome, mas isso não importa agora.

Mas, se quiserem, podem me chamar de humano, humano ser. Gosto de dançar ("um dia aprendo tango!"), pintar a esmo ("sou apaixonado por Van Gogh, Portinari, Scholte e Picasso"), restaurantes ("Principalmente ´frutos do mar´"), caminhar ("pratico rapel quinzenalmente"), jogar futebol ("torço pelo Palmeiras"), jogar xadrez ("já perdi muitos campeonatos!"), ler ("Camus, Bandeira, Mia, Dostoievski, Clarice, Namora, Lóbo, Machado e Rosa são alguns dos meus preferidos"), cinema ("Truffaut, Glauber, Kurosawa, Almodóvar, os irmãos Coen etc"), ouvir música ("de Telonious Monk a Beethoven, de Caetano Veloso a Charlie Parker, de Cesária Évora a Cole Porter, de Madredeus a Fela Kuti").

c) E se na sua frente estivesse "o Mundo inteiro", curiosamente à espera para saber quem é?

Olá, tudo bem? Já tomaram o café da manhã? Bem, vocês não devem saber quem sou eu, mas vou me apresentar. Sou um bicho. Um bicho humano, assim dizem. Com duas patas para se locomover, e mais duas para caçar, pescar, se alimentar, coçar, agredir, agarrar e abraçar. Nome? Sim, eu tenho um nome, mas isso não importa agora. Mas, se quiserem, podem me chamar de extra-terrestre.

Gosto de dançar, pintar, jogar futebol, jogar xadrez, ler, cinema e música.

AN - 2. Tem nas suas mãos um álbum de memórias e folheando-o...

a) Que imagem ou imagens guarda com mais ternura sobre a sua infância?

EF - A cada dia, a memória afetiva age de uma maneira diferente em minha vida.

Em alguns momentos, a nostalgia refere-se a uma música (determinada canção que me faz pensar numa certa namorada da adolescência, outra em que aprendi a dançar mais facilmente, e outra que nunca aprendi os passos direitos, uma outra ainda que me faz com que me lembre de minha mãe a lavar roupa cantarolando). São, enfim, muitas músicas que preenchem essa lacuna do tempo.

Em outras situações, é um lugar, ou gesto, ou até um olhar que me traz certa recordação. Lembrei agora que perto da casa de minha mãe tinha um enorme terreno onde às vezes montavam esses circos ou parques de diversões decadentes, típicos de periferias e subúrbios. Pois uma coisa muito comum neles era deixar nos fins de semana um alto-falante ligado tocando música bem alto. Então, eu deitava sobre a laje da casa, na sombra, e ficava ali ouvindo muito Ângelo Máximo, Ângela Maria, Raul Seixas, Amado Batista, Cascatinha e Inhana, Jane e Herondy, Sidney Magal, enfim, artistas populares daqueles tempos, e ficava sonhando o meu futuro (é claro que meu sonho era ser jogador de futebol!), vendo nuvens e pássaros a passar céleres. Tive muitas coisas ruins, mas consegui guardar com mais nitidez os momentos bons de minha infância e juventude.

b) Que lição ou lições, aprendidas durante a sua juventude, você gostaria mais de ensinar aos outros?

Sou tentado a acreditar que as grandes lições que se aprendem na adolescência e pré-juventude são aquelas que podemos chamar de informais. Acho que o jovem se espelha muito na imagem (de seu cabelo, de seu tênis, da marca de sua camiseta, de seu ídolo musical ou futebolista). Então, isso é transferido para o magistério da vida: o jovem acaba aprendendo mais com os exemplos bons ou ruins dos próprios pais (não nos esqueçamos que os pais são sempre os primeiros ídolos que criamos em nossa relação como mundo); dos amigos, dos ídolos pop que lhe permeiam a vida (esportistas, artistas, etc); alguns (poucos) professores...

c) Sei que traz em si a influência de três irmãos diferentes entre si: (i) Um que lhe legava livros e ideias, (ii) outro artista plástico, roqueiro, hippie, e (iii) um terceiro ligado ao samba e ao futebol. Pode contar uma história sobre cada uma destas deliciosas misturas na sua vida?

Pois bem, meus manos (ainda) são muito diferentes, mas desde pequeno eu notava uma certa unidade, que era uma coisa da família mesmo. Meu pai trabalhava todos os dias, sem férias ou folga, mas conseguia se fazer presente, mesmo sem proporcionar as diversões ou os prazeres que se espera de um pai. Ele pouco nos levava a passear. Minha mãe também vivia uma rotina avassaladora, sempre às voltas com algum tipo de comércio: teve oficina de costura, banca de frutas, banca de doces, loja de roupas infantis, etc.

Então, meus irmãos (principalmente o mais velho), ficaram informalmente com a função de suprir o que fosse mais supérfluo na educação dos irmãos mais novos. Eu, que era o quarto da seqüência, herdei então um pouco da atenção deles, e tive o privilégio de ir ao cinema assistir Herzog (“Fitzcarraldo”), por exemplo, por intermédio do meu irmão mais velho, enquanto os pais dos meus amigos, quando levavam ao cinema, era para assistir Os Trapalhões, por exemplo. Curioso que, ao contrário do que se possa imaginar, não odiei esse didatismo educacional, até porque um outro irmão mais próximo, apenas três anos mais velho, também participava de minha educação me levando às vezes para ver os filmes do Trinity, que era um cinema com apelo mais popular, além de gostar de coisas mais próximas da nossa realidade, como rodas de samba, desfiles de carnaval, jogar e torcer no futebol, soltar pipas... O mais velho também cuidava de me iniciar em The Rolling Stones, Camus, Piglia, Brecht, Borges, George Benson, Elis, Chico Buarque, esse pessoal...

E entre os dois, tinha aquele que talvez mais tenha me influenciado a longo prazo, por assim dizer. Desde menino ele sempre desenhava, e ficava horas trancado no quarto, reproduzindo em papel sulfite e folhas de caderno as capas de suas bandas de rock preferidas. E eu ali, intrigado, “como alguém podia ficar tanto tempo, só ouvindo música e desenhando?” Mas era da personalidade dele, ficar assim sempre calado, pintando e ouvindo Belchior, Secos e Molhados, The Who, Led Zeppelin, The Beatles, Zé Ramalho. Aprendi muito desse convívio com eles.

Curioso que quando cheguei à idade de repassar talvez algum ensinamento aos mais novos, até porque os mais velhos já estavam se casando e tomando cada um o seu rumo, provavelmente eu não ofertei nada, pois entrei em crise com a família, principalmente minha mãe. Nessa época passei a usar brincos e tatuei meu corpo, o que era inconcebível para os padrões protestantes de meus pais. Quase fui expulso de casa e me tornei persona non grata, indo me refugiar na maconha, no álcool, no sexo e na solidão lacônica daqueles que têm muita gente à volta, mas não se relaciona com ninguém.

Mas logo depois nasceu minha filha e aí minha vida deu uma guinada. Tinha 19 anos nessa época.

AN - 3. Trabalha em várias áreas da “comunicação”:

a) Por quê esta área e não, por exemplo, o “futebol” (que no fundo é também uma espécie de “comunicação de massas”)?

EF - Porque em algum momento de minha adolescência me dei conta que não tinha talento algum para jogar futebol. Até hoje pratico, apenas nos fins de semana, em campos ou quadras (têm vários perto de casa). Uma coisa, no entanto, eu já sabia desde os meus 11, 12 anos: seria poeta! Havia em mim uma centelha que não apagou, de sempre escrever poesia. Então, se fosse jogador, cantor, advogado, lixeiro, cineasta, bancário, empresário, ainda assim sei que seria poeta. Tive sorte de começar a trabalhar com mídia na juventude, e isso, de certa maneira, orientou tudo o que viria a fazer depois. Hoje, por exemplo, estudo História, mas sabendo que quero ligá-la ao cinema e à literatura, que são as minhas grandes paixões. E, à parte isso tudo, sigo escrevendo cadernos e mais cadernos de poesia. Em meu micro tem vários arquivos com livros de poesia prontos, e outros com material esparso, aguardando o momento certo para tratamento e análise.

Sei que 80% do tenho guardado não é publicável, mas é, afortunadamente, essa é a forma que encontrei de fazer meu exercício diário de viver o meu idílio com o mundo, com a vida.

b) Que finalidade tinha/tem ao criar um “Recanto de Letras” na net?

Quando iniciei minhas publicações no Recanto das Letras, pensava usar o espaço para divulgar meus trabalhos. Hoje, confesso, minha idéia de publicações na net tem outra orientação.

Depois de um tempo, percebi que faltava conteúdo nas diversas formas de expressão que fui encontrando pelo caminho virtual, então decidi ampliar um pouco minha atuação. Deixei de ser narcisista (ainda que todo “artista” seja pelo menos um pouco megalômano), e resolvi trabalhar mais na troca de idéias, informações, divulgando.

Sempre tive pequenos envolvimentos com jornalismo, na região onde moro desde o meu nascimento (Itaquera, região suburbana na extremidade leste da cidade de São Paulo), sempre escrevi nos chamados jornais de bairro. Então, esse “quê” de jornalista também permeia meus trabalhos virtuais. Talvez seja essa a razão pela qual num determinado momento resolvi resenhar livros, discos e filmes que acho dignos de uma crítica sincera. Também nesse meio-tempo foi que surgiu a idéia de entrevistar gente interessante, que tem algo a dizer. E é isso que venho fazendo em meu endereço virtual.

Depois eu pensei em alargar essa via, criando um blogue, mas vi que não daria conta, então desisti de escrever lá e uso o espaço apenas para postar fotos experimentais que gosto de praticar também. Escrever mesmo, só no Recanto das Letras.

Outra questão que me fez repensar um pouco a divulgação de meus trabalhos na internet diz respeito aos direitos autorais. Após uma longa reflexão, achei que seria prudente postar somente aqueles que já estão publicados em papel ou que já registrei legalmente na Biblioteca Nacional, aqui no Brasil.

Mas o Recanto das Letras, ainda assim, é um espaço excelente para divulgação de trabalhos e lá encontrei gente muito talentosa, como o Francisco Coimbra (Portugal), Alessandra Espínola (Pernambuco, Brasil), e mais Maria Helena Sleutjes, Rubia Bourguignon, Juli Lima, Luiz Guerra, Maria Olímpia Alves Melo, e mais uma infinidade de pessoas de talento. Aliás, citando nomes estou cometendo injustiças, pois tenho certeza que estou esquecendo alguns nomes importantes e que não vêm à cabeça agora. Também fiquei contente pois consegui que dois amigos de infância, e excelentes poetas, colocassem seus trabalhos lá também, o Luciano dos Santos e o Luka Magalhães.

c) Qual é/são os seus objectivos (sonhos/intenções...), o que deseja atingir através da “comunicação”?

Comunicar, comunicar... não sei! Tudo o que posso dizer é que tenho uma ânsia em dialogar, herdei isso de Hegel, essa vontade de trocar idéias, parolar, aprender através da “conversa fiada”, essa informalidade que nos faz tão bem.

Se eu fizer a lista das coisas que já pretendi algum dia, é bem provável que notaremos alguns desses traços comunicativos já desde a infância, apesar de minha timidez avassaladora, e com a qual eu vivo muito bem.

AN - 4. Como definiria "arte"?

EF - Taí uma questão que nunca se resolveu em mim. Em novembro de 2008, comecei a gravar um filme experimental cujo mote era justamente “o que é arte”, mas o assunto travou num determinado momento, e não ficou resolvido, razão pela qual as imagens gravadas nunca foram finalizadas, pois as pessoas que entrevistei não souberam responder a questão, ou talvez as respostas não tenham me agradado. Pior ainda, pode ser que eu não tenha formulado a pergunta de forma adequada. Ou, mais ruim ainda, talvez não exista “a” resposta.

Talvez não exista resposta alguma. Talvez a arte não exista, seja apenas fruto de uma formulação, tanto quanto deus, ou ética, ou amor, ou felicidade.

AN - 5. O que é “uma obra de arte”?

EF - Se estiver razoavelmente correto na resposta anterior, então será “obra do que não existe”. Será?

AN - 6. O que é um “poema”?

EF - Poema será uma obra de arte? Se for, então temos uma nova retomada do tema anterior: o poema não existe, pois obra de arte não existe, pois a arte não existe. Brincadeiras à parte, acho a poesia (veja bem, a “poesia”, não o “poema”, que seria a representação física da poesia) um diamante bruto da alquimia entre o viver e o extasiar-se. Por exemplo, quando leio “a amizade é um amor que nunca morre” do Mário Quintana, soberbo poeta brasileiro já partido desse mundo, acho que crio imediatamente uma conexão com um outro lado de mim (aquele que intui, isto é, que casa minha inteligência com a minha emoção), que fico desguarnecido, vulnerável, ou, para usar um termo mais moderno, fico siderado, pois o corpo amolece, reflete a faca abissal que o tomou de assalto e literalmente os pôs de joelhos. Imagine agora um outro poema, “Pela Luz dos Olhos Teus”, de Vinícius de Moraes,:

“Quando a luz dos olhos meus / E a luz dos olhos teus / Resolvem se encontrar / Ai que bom que isso é meu Deus / Que frio que me dá o encontro desse olhar / Mas se a luz dos olhos teus / Resiste aos olhos meus só p'ra me provocar / Meu amor, juro por Deus me sinto incendiar...”

Ele nos embriaga, faz com que sintamos os olhos da musa entrando dentro dos nossos, com sua irradiação febril, com sua luz que é sonora, quente, sedutora, aconchegante. Nenhuma dessas qualidades está escrita, mas o poema faz com que sintamos todas as nuances claramente. Por isso a necessidade da poesia na vida das pessoas.

Poucos percebem, mas viver sem poesia é inviável. Aliás, sou tentado a dizer que viver sem poesia é impossível.

AN - 7. O que é “a arte de viver” (ou será que é “a arte de saber viver”)?

EF - Apesar de minha sincera e devotada timidez, reconheço alguns traços narcisistas em mim. Um deles é assumir que sou poeta, não porque escreva poesia, mas por vivê-la a cada dia e lugar, mesmo em condições adversas ou naquelas que não reconhecemos primariamente que seja para “curtir poesia”.

Tenho dúvidas se minha poesia, se a poesia que escrevo, é de qualidade, mas quando olho meus filhos, meu neto, minha musa, quando ouço “Imagine” do John Lennon, quando contemplo Degas, Portinari, ou Monet, ou quando revejo alguma jogada do Garrincha, o nosso “anjo das pernas tortas”, entendo que viver é uma arte, basta apenas um êxtase, um espanto, para dizer que tudo isso (apesar de tudo), vale a pena.

AN - 8. Imagine-se um deus ou mágico fantástico (desses que podem transformar princesas em sapos ou sapos em princesas!) ou é o dono de uma potente “varinha de condão” e tem algum poder sobre a “humanidade”:

a) Qual seria a primeira coisa que mudava em nós, os humanos?

EF - Meu princípio lógico, caso fosse “deus”: o livre arbítrio. Sei que a tentação é muita, mas creio sinceramente que este princípio básico é que nos traz o prazer e o mistério de sermos quem somos, e não pode ser alterado.

Apesar de agnóstico, uma das maiores riquezas que encontrei no mito bíblico foi justamente o princípio do livre-arbítrio. Se eu pudesse mudar alguém ou alguma coisa, eles seriam computadores, bonecas, fantoches, personagens... seriam qualquer coisa, menos humanos.

Aliás, até os personagens de meus contos ganham tamanha expressão de vida que me “desobedecem”. Muitas vezes, começo escrevendo com uma idéia na cabeça, defino a personalidade, mas quando dou por mim, eles já ganharam vida, tamanha liberdade diante de meus olhos, que até saem sozinhos por aí, a esmo.

b) Se tivesse a possibilidade de imprimir, na mente de todos nós, os humanos, UMA e única das suas verdades, qual delas escolheria?

Posso bater na mesma tecla? Mal consigo exercer algum domínio sobre os personagens que invento e escrevo. Mais que isso, não consigo visualizar essa possibilidade. Sinto por não saber responder essa!

(um dia depois...)

"Ange, pensei melhor, fiz um esforço no sentido de tentar responder à sua questão, pois, relendo-a, achei que podia ser mais educado, afinal, a pergunta traz um desafio muito interessante, então vou tentar: suponhamos que escrevesse ficção científica, poderia me dar ao luxo de ter uma dessas habilidades que você comentou. Pois bem, nesse caso (e somente nesse caso!), acho possível pensar numas alegorias. Sua pergunta possui o poder de provocar na gente um pensamento fora do modelo civil, racional, natural, por isso principiei até a escrever um conto sobre essa dificuldade, o fato de poder ser deus.

Já pensou se pudéssemos viver sem um governo, livres política e filosoficamente? Pensei nessa possibilidade, por causa de uma antiga militância anarquista da juventude, coisa que já não acredito mais. Como disse certa vez o John Lydon (ex-vocalista da banda punk inglesa Sex Pistols), “o anarquismo é uma armadilha psicológica da direita”. Liberdade, portanto, não cabe aqui.

Continuando a viagem, e seu eu pudesse incutir a solidariedade entre todos os seres? Mas se eu tivesse tal poder, com certeza poderia então “amar” o mundo de tal maneira que não haveria dor ou clamor, pobreza ou ódio, e, portanto, essa tal solidariedade seria desnecessária. Então pensei em sonho. Sonho? Sonho é a inclemente prova de que não temos domínio do real. Por isso sonhamos, para podermos voar, ir mais longe, amar quem não nos ama, ter o dinheiro que realmente não temos, escrever os contos que Borges e Cortázar escreveram, ter a beleza suicida que o espelho insiste em nos ocultar. Sonhar é lindo porque é só sonho.

Outra tentativa: a paz! Porém, se a paz fosse real e possível por meu intermédio, então não precisaria ser definida ou almejada, ela simplesmente existiria, e sequer seria notada, certo? Uma última: o sexo. Vou ser sincero: foi a primeira coisa que pensei. Já pensou todos vivendo em torno do prazer carnal, na plenitude orgástica? Mas daí creio que em duas semanas o sexo teria então se tornado uma coisa chata, muito acessível, disponível e – portanto – tornada supérflua em nossas vidas. A riqueza sexual está contida no mistério da conquista lenta, sutil, serena. Outro detalhe que contribui para sua beleza e encanto é o seu jogo, a possibilidade de perder, de falhar, de esgotar-se, de não vivê-lo plenamente. Essa a sinceridade do êxtase sexual.

Pois bem, falhei em todas as minhas tentativas. Então, se me fosse dado o poder de administrar a mente humana, exerceria essa minha única vontade: desplugar-me desse poder, para poder viver normalmente entre os mortais, nesse carnaval humano."

AN - 9. Ummmmm... esta é por pura curiosidade, que me ficou da entrevista que me fez, gostaria muito de saber:

a) O que acha que torna uma decisão “importante”?

EF - Filosoficamente, creio que uma decisão se torna importante a partir de sua dimensão humana, ou seja, o quanto ela envolve o indivíduo no contexto social, e as implicâncias que isso traz. Considerando assim, devo então acrescentar que uma decisão ganha ares de importância quando leva algo de mim para a sociedade na qual estou inserido, ou então quando uma decisão de outra pessoa, ou da sociedade a quem pertenço, me afeta ou ao grupo do qual faço parte. Por exemplo, a eleição de um presidente, ou governador, ou prefeito, uma declaração de Caetano Veloso falando do respeito a certas tradições, ou uma entrevista do Almodóvar comentando a importância de seu cinema para defesa das minorias, tudo isso é “decisão importante”. A libertação do Nelson Mandela é outro exemplo de decisão importante que afetou a África, o continente africano e o mundo todo, tanto pelo seu valor intrínseco quanto pelo seu valor simbólico.

A tomada de decisão para a realização da copa de futebol na África do Sul também foi importante. Fez emergir significados até inconscientes sobre a cultura, a tradição e a história de todo o continente que vão se refletir aleatoriamente pelo resto de suas vidas.

b) E que decisão importante (ou decisões importantes) tomou durante a sua vida?

Tecnicamente, a mais complicada foi quando decidi parar de fumar maconha e cheirar coca, e que assumiria a paternidade, quando soube que tinha uma filha por nascer. Isso tudo apesar de presumir que não iria viver com a mãe dela (o que de fato se confirmou), e da idade relativamente nova, 19 anos.

Todavia, muitas outras situações – as mais diversas possíveis – também foram muito complicadas. Quando ganhei um concurso literário em 1988, por exemplo, entrou um dinheirinho razoável e pensei em usá-lo para fazer uma reforma em casa. Minha musa não deixou e insistiu para que o utilizasse para publicar meu primeiro livro. Foi o que fiz e lancei o "hardrockcorenroll", mas confesso que por muito tempo ainda doía pensar que deixei a reforma para depois. Todos os dias tomamos decisões que são importantes, mas nem sempre nos damos conta disso. Às vezes o tempo é que explicará melhor para nós.

AN - 10. Sobre as perguntas:

a) Que pergunta nunca lhe fizeram e gostaria que um dia lhe fizessem para ter a oportunidade de responder? (faça-a e responda!)

EF - Deixe-me ver... acho que esperei por questões mais genéricas, ou mais jornalísticas, como “qual o livro de sua vida?”, ou “qual o diretor (de cinema) que mais gosta?”. Então, fiquei surpreso com a qualidade das perguntas.

b) Nesta entrevista, há alguma pergunta que acha que eu deveria ter feito e não fiz? (se sim, faça-a por mim e responda!)

EF - Um livro? “O estrangeiro”, de Albert Camus.

Um filme? “Veludo Azul” (Blue Velvet), de David Lynch.

Um Escritor? Quatro: Albert Camus, Guimarães Rosa, Mia Couto e Fiodór Dostoievski.

Uma escritora? Clarice Lispector.

Um Quadro: “Futebol”, de Cândido Portinari.

Um Compositor? Dois: Richard Wagner e Cole Porter.

Uma cantora: Edith Piaf , Tetê Espíndola e Elis Regina.

Um cantor: Roberto Plant (ex- vocalista do Led Zeppelin), Tim Maia e Edson Cordeiro.

Um cineasta? Akira Kurosawa.

Um número? 13.

Uma música? “A Nona”, de Beethoven.

Uma palavra? Utopia.

Um lugar? Itu, em São Paulo.

Uma personalidade pública? Betinho (Ação da Cidadania contra a Miséria e a Fome, Brasil)

Um esporte? Futebol.

Um passatempo? Jogar xadrez.

Uma paixão? Viagens.

Um defeito? Querer agradar todo mundo.

Uma qualidade? Zelo extremo pelas amizades.

Uma mania? Ler qualquer coisa, e em qualquer lugar.

Uma obsessão? Guardar todo caderno cultural que me chega às mãos. Hábito adquirido com o tempo, e hoje tenho mais de dez caixas de papelão só com suplementos culturais de jornais dos mais variados lugares, nessas últimas décadas.

(Estou brincando com tudo isso, Angi. Mas sempre gostei dessa informação pulp fiction de respostas curtas que se lê em revistas. Tornei-o realidade agora, pois você me permitiu. Se não gostou da idéia, delete-a. Já serviu de divã para o meu ego. Obrigado)