A Alvorada e o Império de São Pedro

A Alvorada e o Império de São Pedro

Alvorada 1.ª metade do século XX Alvorada 2007

Império de São Pedro: Império de São Pedro:

Rabo de Peixe……………… Fenais da Ajuda

1. Alvorada ou Arvorada? Cavalhada ou Carvalhada?

No primeiro documento conhecido que chama um nome à coisa, diz-se assim: ‘(…) cavalhada, vulgo, arvorada [sic] de Sam Pedro.’ (1875)

No falar ouvido pelas ruas da sua terra de berço e área de influência, diz-se tudo ao dizer-se simplesmente: Arvorada ou Alvorada de São Pedro.

Por ali, ouvem-se com a mesma facilidade com que se mete ar nos pulmões expressões como: Vais ver a Alvorada? És o Rei da Alvorada? Vais na Alvorada? Quantos cavalos foram este ano na Alvorada? A Alvorada já passou? A Alvorada deste ano mandou peso! Dás sete voltas a São Pedro como na Alvorada!

Na linguagem fina - da imprensa escrita, falada ou televisiva -, ou na de certas pessoas com algumas luzes, a coisa passou a ser conhecida apenas por Cavalhadas de São Pedro. No falar dos que tanto fazem para puxar para o político e acabam por se estender ao comprido: Carvalhadas de São Pedro.

Para muita boa gente, Alvorada ou Arvorada, serão palavras mal ditas por gente sem cultura. Pior ainda, aqueles dois termos não terão préstimo algum. Tal como Carvalhada. Não estou bem de acordo com esse juízo. Os nomes não se colam à toa às coisas: dizem-nos sempre qualquer coisa mais sobre a coisa nomeada. São como que poeiras cósmicas de estrelas já mortas à espera de serem analisadas com todo o cuidado.

Por exemplo: Aqui nos Açores (veja-se a recolha de Alvoradas impressas no Arquivo dos Açores), um dos seus usos (alvorada) mais recorrentes remete logo para a Festa em Honra e Louvor do Divino Espírito Santo. Mas isto daria pano para as mangas de outra pesquisa.

Império da Lomba de Cima Império do Bandejo

2. Hipóteses

Seis Alvoradas[1] passadas sobre o último trabalho que dei à luz sobre o assunto, volto não só a fazer finca pé à ligação ao culto do Divino Espírito Santo[2], como afirmo a sua ligação ao Império que se fazia então a São Pedro, no largo do mesmo nome.

É seguro afirmar-se que existiu vínculo funcional entre a Alvorada de São Pedro, da Ribeira Seca, da Ribeira Grande, e o Império de São Pedro na mesma terra. A documentação conhecida é bastante explícita a este respeito. Se é relativamente seguro sustentá-lo para 1856, é tanto mais seguro afirmá-lo para 1875 e 1877. Tal relação parece ainda subsistir na década de 1910 do século XX.

É razoável afirmar-se que o uso da Alvorada ao Império de São Pedro terá começado antes da de 1856. A documentação que admite essa afirmação, contudo, só nos autoriza uma leitura implícita. Mas quando? Logo em 1671, ano da fundação do Império? A partir de 1685, ano da construção do seu Teatro? Ou só depois de 1707, ano em que Sousa Freire põe termo às suas notas? Não se sabe ao certo (pelo menos eu não sei): nem Sousa Freire, nem Agostinho de Monte Alverne, nem ninguém que se saiba ou documento conhecido disse algo acerca de tal costume. Por ser tão banal ao ponto de não haver interesse em relatá-lo? É uma possibilidade a não pôr de parte. Por não existir pura e simplesmente? É outra hipótese provável. Com toda a honestidade: não sabemos.

Fosse como fosse, deve ter seguramente surgido no lapso de tempo de quase dois séculos que mediou a criação do Império e a nota de 1856. Possivelmente, já numa altura em que existiriam mais do que um Império na freguesia? Se existe alguma lógica nas coisas feitas pelos mãos dos homens, pelo menos a essa que recorro, pelo que vimos escrito em 1877, e referido à Alvorada, ‘(…) costume sem interrupção desde tempo imemorial,’ é de aceitar-se que tal tenha acontecido em data afastada de 1856.

O que acaba de ser escrito, não põe de parte a possibilidade da existência de outras Alvoradas, antes ou depois das que lanço como hipótese.

3. Ónus da prova

Terminada a missa solene em honra do Primeiro Papa, homem rude favorecido pelos dons do Divino Espírito Santo, com o padre a mandar os presentes para casa em latim legítimo, os ‘festeiros’ da primeira dominga do Espírito Santo da Ribeira Seca e de Santa Bárbara (por muitos anos ainda curato da primeira) reuniram-se no adro da igreja. Após o que, foram percorrer, segundo as palavras de quem fez a notícia, todas as freguesias da Vila da Ribeira Grande (não sei quais), ricamente vestidos, montados em cavalos, e empunhando bandeiras largas (não sei o que sejam) do Espírito Santo. Atrás deste pequeno cortejo (longe dos 123 cavaleiros deste ano: então não mais de dez), seguia um número de mascarados (1856: Mário Moura, Estrela Oriental, Julho de 2001).

Basta uma curta vista de olhos para se concluir que apesar de nos pôr a claro a relação entre a Alvorada - Cavalhada e o Espírito Santo, esta descrição de 1856 não nos esclarece preto no branco acerca da ligação entre o Império de São Pedro, que se realizava no adro da igreja, e a Alvorada de São Pedro.

A confirmação viria em 1875. À décima nona Alvorada após a descrita em 1856, uma nota de 1875, estabelece sem deixar margem para quaisquer dúvidas aquela ligação. Trata-se de uma nota de Licença para Fogo (Fui alertado para a mesma pelo Dr. Hermano Teodoro, a quem devo a atenção).

Atente-se bem aos pormenores. Um tal José António Rebelo, lojista, ao que julgo saber, pedia ‘(…) na qualidade de imperador da primeira dominga do Divino Espírito Santo [repare-se] do império que se erige [existiria à altura ainda o Teatro de pedra ou seria já uma estrutura desmontável?] no largo de São Pedro da dita Ribeira Seca,’ licença para lançar foguetes. Isto para o dia vinte e nove de Junho. Esteja-se ainda atento. Porque iria: ‘(…) ter lugar a cavalhada, vulgo, arvorada de São Pedro, que do referido lugar da Ribeira Seca costuma sair e percorrer várias ruas das freguesias de São Pedro, Conceição e Matriz desta Vila.’ (AMRG, Livro de Fogo, Liv. 36, fl. 33)

Dois São Pedro mais à frente, a nota refere fulano como ‘(…) mordomo da festa de S. Pedro.’ E destinando-se ao mesmo, licença para lançar fogo, acrescenta que iria ‘(…) sair em festejo como é costume sem interrupção desde tempos imemoriais a denominada Alvorada de São Pedro.’ (AMRG, Livro de Fogo, Liv. 36, anexo solto)

Assim o escrevi em 2007/8, agora, 2023, após ter dado caras há dois anos no jornal da Ribeira Grande O Forúm com uma descrição e crítica (contundente) da Alvorada, acrescento e confirmo a hipótese inicial. O seu autor é um florentino havia muito radicado na Ilha e há alguns anos professor na Vila da Ribeira Grande. Chamava-se (ou melhor deu-se esse nome) Teófilo Ferreira. Amigo e protegido de Francisco Maria Supico. Amigo também de Teófilo de Braga. Iria longe na política nacional. Teófilo observa atentamente de forma crítica o que vê e dá-lhe o título de ‘Novidades.’ Começa por explicar aos leitores do que se trata: ‘A novidade mais nova; mas que para os leitores desta Vila é novidade velhíssima é as recentes cavalhadas de S. Pedro, executadas no dia 29 do mês passado, em que a Igreja reza deste Santo Apóstolo. Todos os anos é concorridíssima esta funçanata por pessoas de perto e de longe, que vêem admirar não sabemos o quê. Em todos os desconchavos, que por ali se figuram, há o ridículo elevado ao seu maior auge, mas o povo folga bastante e tanto mais nos alegramos pelo seu contentamento, quanto é certo serem mui poucas as distracções que ele tem. Quem nunca viu a farsa estrondosa, que nesta Vila se representa no dia indicado, não pode fazer uma ideia aproximada do que é a bugiganga denominada alvorada.’ E de que se trata esta alvorada? Eis a sua descrição crítica: ‘Apresentam-se máscaras esquisitas em toda a extensão desta palavra exprimindo disformidade. Aqui aparece um máscara vestido com um saco de folha de maçaroca, representando um monstro, ali outro envergando o mais esfarrapado fato e tendo por capacete uma carapuça de vimes. Número infinito de meninas machas com os seus alvos vestidos assentadas sobre enfermos burricos ou tangendo a sua viola ou pulando sem elegância diante do marmanjo, que lhe serve de companheiro, e muitas vezes embasbacando os iludidos, quando ao aproximarem-se lhes descobrem uma grossa barba preta sobre rugosa e requeimada epiderme. Por toda a parte nos cercam mascaradões, mascarados e mascaradinhos vestidos multiformemente. É uma verdadeira inferneira.

Além destas incómodas criaturas há ainda os repugnantes condutores de burras inúteis, que as conduzem em ranchos aqui e acolá mugindo-as e oferecendo o peitoral líquido aos circunstantes, e bem assim os lavradores com parelhas dos mesmos animais lavrando pelas ruas, levando atrás o competente espalhador de linhaça, que a reparte pela cara de quem pretende observar a sua admirável invenção. Algumas carroças ainda repletas de mascarados de todas as espécies aumentam o número desta diabólica marafunda.’ A funçanata não se esgotava aí: ‘A parte séria, mas não menos ridícula, é a que constitui a cavalhada denominada – Imperadores do Espírito Santo.’ Atentem no que vê e nos descreve em 1867 que confirma a Estrela Oriental de 1856: ‘Compõe-se ela dos vários depositários da coroa para o futuro ano, e em consequência disto levavam, em todos os anos pretéritos, a cavalo e empunhada a bandeira do Espírito Santo com notória irreverência. Esses cavaleiros vão ornados de muitas fitas de todas as cores e não poucos com xailes amarelos ou vermelhos pelas costas e vestidos todos de branco. Na cabeça levam um chapéu de pelo alto todo coberto de cordões e obras de ouro, que pedem emprestados de ano para ano. Reúnem-se num ponto ajustado e às 11 horas desfilam todos para a igreja de São Pedro, e aí dão três voltas uns atrás dos outros ao redor do templo.’ Mas ao contrário do que parece ter acontecido em 1856, em 1867 vão além da área da Ribeira Seca/Santa Bárbara: ‘Desfilam ali e em frente de todas as outras igrejas, ermidas, e lugares públicos executam a mesma cerimónia, acabando este improbo trabalho das três para as quatro horas da tarde, hora em que se recolhem para descansarem.’ E neste mesmo ano de 1867 deixam de poder usar as bandeiras do Espírito Santo: ‘Este ano foi-lhes proibido conduzirem bandeiras do Espírito Santo, e em seu lugar levaram algumas de várias cores.’ Porquê? ‘Deve-se a cessação desta abuso ao Sr. administrador do concelho, que vai desarreigando do povo alguns costumes, que são reprovados pela sã moral.’ ‘Louvores.’ Remata Teófilo.

O desfile dos mordomos do Espírito Santo, ou seja ‘dos vários depositários da coroa para o futuro ano,’ é seguido por outros acontecimentos (Comédias de São Pedro): ‘Além destes cavaleiros há outros denodos (sic) recitadores, que pronunciam certas composições em verso, em que se fazem elogios a São Pedro e a muitos santos, e alusões gerais mais ou menos picantes; mas que poucos percebem por lhes dificultar a máscara algum tanto a pronunciação.’

E mais ainda: ‘Houve ainda uma outra cavalhada de mouros e mouras, cristãos e cristãs, e em que haviam fingidas lutas e casamentos dificultados pela diferença de religião, mas por fim têm sempre o desejado desenlace pelo baptismo do hereje.’ ‘Eis aqui como o povo desta vila festeja o dia de S. Pedro.’

A festa a São Pedro começara na véspera: ‘Este ano ardeu na véspera um lindo fogo artificial, que foi gozado por inúmera concorrência de povo, e tocando por esta ocasião, a Filarmónica desta Vila várias peças de música. E, ‘No dia próprio fez-se a função de igreja a instrumental pela Filarmónica e em que missou o Reverendo Mariano José Ferreira, orando o reverendo Manuel César de Oliveira.’ E tal como ainda hoje: ‘Foram reeleitos os mesmos festeiros, e, por conseguinte, para o ano temos outra vez boa função.’

‘Não concluiremos sem prestaremos os nossos louvores ao Reverendo Joaquim Guilherme da Costa pela direcção, que deu, para o ornato do templo, pois o camarim da capela-mor estava arrebatador pela variedade e boa colocação de flores naturais que o ornamentavam. Desde muito que conhecemos o bom gosto do sr. Padre Costa e neste dia tivemos ocasião de colhermos mais uma prova dele pelo prazer, que gozávamos, quando fitávamos os olhos naquele anfiteatro de flores.

Não eram apenas os mordomos e os demais atrás referidos que faziam a festa, outros mais. ‘Ainda na tarde desse dia, muitas pessoas se mascararam, aparecendo contudo um par de jovens jarretas, que chamava a atenção de todos. O consorte trajava chapéu de Braga alto e grosseiro, casaca de pano azul com botões amarelos e calça branca mui esternida e bengala na mão. A esposa vestia saia de lã cor de café fitas azuis no chapéu abeiro com farto véu largado e mantilete de seda, só olhando-lhe para ela fazia rir. Mas o que mais excitava à gargalhada era a tranquilidade com que essas duas almas iam palmilhando o caminho, justamente em oposição com os outros máscaras, que se distinguem por saltos e bulha incómoda. Assim acabou este dia de cansaço e folga para os, para os que se divertem e para os que vêm assistir.’[3] Notável e lapidar esta descrição? Fico a aguardar novas provas. A História é assim.

Ainda na segunda década do século XX, as Cavalhadas resultariam ‘(…) de promessas religiosas feitas durante o ano e nelas tomam parte os penitentes e ainda os que têm a 1.ª dominga do Espírito Santo, gente da freguesia e arredores.’ Todavia, já não seriam só os festeiros da Ribeira Seca que tomariam parte no cortejo. Trata-se da memória vertida em artigo de jornal de um cultíssimo membro da elite local, de nome Dr. José de Medeiros Tavares. Daí o termo Cavalhada e não Alvorada. (Dr. José de Medeiros Tavares, As Cavalhadas da sua infância, cf. Correio dos Açores, 29 de Junho de 1966, transcrito Estrela Oriental, Julho de 2001, p. 1).

Com o rodar dos anos, graças em parte à metamorfose sofrida pela Alvorada, primeiro festa dos Impérios, depois festa do Concelho e à protecção oficial que veio a gozar a partir de então (alguma compensação aos participantes: dinheiro, prémios ou fama), os penitentes foram ultrapassando em número os mordomos.

Já neste ano de 2007, com a Alvorada desligada da festa da igreja e sem comédias a segui-la como dantes, só assim conhecida na linguagem falada do dia-a-dia, sem nada a ver com o festeiro da primeira dominga do Império de São Pedro, do qual apenas existe uma memória difusa, Fernando Maré, o responsável no terreno há mais de 47 anos, em entrevista a um jornal local, dizia: ‘(…) Os mordomos do Espírito Santo, ainda hoje (2007), preparam um cavaleiro para participar nas Cavalhadas./ Regra geral, quem vai ao lado do rei, são os cavaleiros mais bem enfeitados. Se algum deles é do mordomo exige ir ao lado, mesmo que não esteja muito bem enfeitado.’ (Carmen Costa, A Romaria é uma penitência e as cavalhadas uma festa, Correio do Norte, 1.ª quinzena de Junho de 2007, pp. 6-7)

Se tal ainda não bastasse para nos convencer a dar algum crédito a esta hipótese, atente-se no relato de graças e de castigos por cumprir ou não a ida na Alvorada, que acompanha a entrevista. É característico da cultura do Império ao Divino Espírito Santo. As fitas das bandeiras que enfeitavam a bandeira dos cavaleiros eram as das bandeiras dos Impérios. As sete voltas à igreja do Apóstolo ou as três à volta da do Espírito Santo. Tudo isso vem contado na referida entrevista. Já o disse em artigo de 2002: as bandeiras actuais, ainda vermelhas, são uma espécie de arremedo das, entretanto, proibidas do Espírito Santo.

Neste tipo de trabalho, é bom repeti-lo, é sempre útil recorrer à boa memória das pessoas mais antigas da terra. Assim o fiz. A caminho de completar 87 anos de idade, João Barbosa Silvestre, numa conversa corrida a recordar as Alvoradas dos tempos em que era ainda menino e moço ou já rapazote ou rapaz casadoiro. Logo ao romper do dia, o dia prometia, eu e ele sentados à mesa de um café do chamado Canto da Fonte, perto de casa dele, bem disposto, disse-nos que ‘(…) os despenseiros do Espírito Santo da freguesia iam na Alvorada levando os canecos enfeitados com ouro.’ [4] Hermano Lima Bravo, outro nado e criado naquela terra, de idade que disse ser de 83 anos, com quem conversei à cancela da sua casa umas centenas de metros acima do Canto da Fonte, confirmou-o: ‘Quem fazia a despensa na freguesia ia na Alvorada. Iam ao todo uns 10, 15, às vezes nem tanto.’ [5]

E, como toque final, junto dois registos apenas: o gesto dos mordomos a abençoar com a coroa do Espírito Santo a visita da Alvorada. Gesto antigo. Algo que observei e registei em 2005 (Santa Bárbara) e de novo neste ano de 2007 (Ribeira Seca); e a bandeira do Senhor Espírito Santo arvorada (reparem no termo e tirem as suas conclusões: arvorada de São Pedro? Bandeira arvorada?) no cimo da armação de uma casa da rua da Saudade (dia 9 deste mês, na antiga canada do Feitor).

4. De que Império de São Pedro se trataria?

Bandeira arvorada na cobertura

Provando-se a existência de um império a São Pedro no largo de São Pedro e sabendo-se ao certo quando se fundou a festa do Império de São Pedro (1671) e se construiu o Teatro do Império de São Pedro (1685), só por si não prova que esta Alvorada (Cavalhadas para os letrados) tenha começado por aquela altura. Pode muito bem ter surgido antes daquelas datas. Ou até depois. Pode ter-se, por qualquer motivo desconhecido, entretanto, interrompido. Ou ter-se, por outras razões, modificado ao ponto de não ter nada a ver com uma putativa Alvorada primordial.

Seja como for, o facto de conhecermos a data da fundação da festa do Império em 1671 e da construção do seu Teatro em 1685, garante-nos pistas possíveis. Poderá dizer-se com alguma solidez que a Alvorada a São Pedro terá começado em data desconhecida, mas nunca antes da fundação do Império de São Pedro? É possível. Antes de 1671, a ter existido, seria uma alvorada a outra coisa? É também possível.

Segundo vem dito em João de Sousa Freire (Notas para o Tombo da Ribeira Seca: referido em Norberto da Cunha Pacheco, Ribeira Seca: terra das cavalhadas de São Pedro e da Madre Teresa da Anunciada, 2006, p. 45), o Império a São Pedro foi fundado no ano de 1671. Segundo o próprio João de Sousa Freire, à altura pároco daquela comunidade, Freire teria sido não só testemunha do facto como um dos seus cabouqueiros. Freire deixa-nos esta entrada no Tombo (cópia do original) da Ribeira Seca, quinze anos depois da fundação de que fala.

Foi fruto da iniciativa de um Padre franciscano, natural da Vila, de nome Frei Egídio da Vitória, que ao tempo assistia em casa de uma irmã casada na freguesia. Este frade conseguira entusiasmar algumas pessoas da terra, entre as quais um tal João Brandão. Este João Brandão, acompanhado de outros mais, teria vindo tomar conselho a João de Sousa Freire. Por assim dizer, Freire, devoto do Império, como se prova pela leitura das suas entradas no Tombo, não só bate palmas como entra na festa.

Freire assina um bom naco de prosa em forma de crónica, texto inédito que bem merecia ser publicado sem mais tardar, dedicado ao elogio da festa do Império do Espírito Santo. Por esta mesma altura, um franciscano de nome Frei Agostinho de Monte Alverne, filho da Vila, havia já ou haveria em breve de dedicar um capítulo das suas Crónicas ao Espírito Santo, na Ilha de Santa Maria. Comparando-o porém a Sousa Freire, lendo atentamente um e outro, não me cheira que Monte Alverne tenha sido um entusiasta da festa do Império. Com a mesma ideia fico depois de ler Gaspar Frutuoso. Humanista, ortodoxo, imbuído dos ensinamentos de Trento? A partir de então a festa entra por uns tempos em desgraça. Chegou a ser proibida no tempo dos Filipes. Em meados do século XVIII (1753), haveria o Padre Alberto Pereira Rei de dar à estampa na capital do Reino uma obra de índole laudatória da festa do Império ao Divino Espírito Santo.

Estando já o Império de São Pedro instituído em 1671, em 1685 construiu-se o Teatro do Espirito Santo. Segundo o próprio Sousa Freire, tal facto ter-se-ia ficado a dever ao próprio cronista (seria Provedor da Santa Casa da Misericórdia da Ribeira Grande, fez Passo, terá sido o autor do cadeiral da Matriz e da capela de São Vicente Ferrer, visitador do eclesiástico, se não mesmo Ouvidor do Eclesiástico. Foi contemporâneo de Monte Alverne e parece ter sido uma pessoa influente no seu tempo) e de um devoto que dava pelo nome de André de Fontes.

Este Teatro construído em pedra encontrava-se (não sei quando foi removido, o da Santa Casa da Misericórdia fora demolido para dar amplitude à praça em data próxima de 1769) no lado norte do adro da igreja do Apóstolo São Pedro.

5. Até uma próxima oportunidade

Como terá surgido a ideia de fazer Alvorada a cavalo? Suponho que alguém, talvez um dos Imperadores do Império a São Pedro, ter-se-á lembrado, ou porque vira em outro lugar ou porque ouvira alguém dizer que se fazia assim, ou simplesmente terá inventado sem mais, entre a sua fundação e 1856, de convidar imperadores (mordomos ou despenseiros ou outra designação da altura) de outros impérios da freguesia a correr as casas uns dos outros no dia em que São Pedro fecha com as suas chaves a festa do Espírito Santo. Visitavam-se, davam-se a conhecer ao povo e bebiam uns valentes copos em honra do Senhor Espírito Santo. A ideia, por qualquer razão, terá caído no agrado do povo e ter-se-á repetido a ponto de se transformar num acto do próprio Império. Tal como o saltar à fogueira o é para o Império de São João? Provavelmente.

A Alvorada de São Pedro (Cavalhadas) encerrava não só o Império de São Pedro mas todo o ciclo festivo anual em louvor do Divino Espírito Santo. Nada de espantar, pois, que o mesmo continue a suceder na freguesia vizinha de Rabo de Peixe, no Império de São Pedro, na Cova de São Pedro (descrita por Hermano Teodoro em Estrela Oriental de Agosto de 2001 e por mim em 2005 e 2007) ou no de São Pedro na freguesia dos Fenais da Ajuda (por nós estudada em 2005). Não importa discutir se estes últimos apareceram depois, o primeiro por influência directa do de São Pedro da Ribeira Grande, o segundo não sei, importa somente reter que em áreas culturais próximas é natural fazerem-se alvoradas a São Pedro. Para não falar em áreas culturais mais longe, como será o caso brasileiro.

A terminar, importa dizer-se que já no século XX, o epicentro da Alvorada passara do largo de São Pedro para o Solar da Mafoma, o Império da rua do Biscoito deixou de ter a ver com a Alvorada/Cavalhada, existindo uma mordomia própria encarregada de pôr de pé a festa de São Pedro. Além do mais, as comédias, que hoje se realizam de quando em vez (estes dois últimos anos não houve nada), nada têm a ver com a Alvorada -Cavalhadas.

Mesmo a terminar: ainda que provável, o que acabo agora de pôr um ponto final, ou de suspensão, não pretende ser mais do que uma tese com pernas para andar. E um contributo para o estudo deste ícone de identidade da minha terra natal.

Mário Moura/

2.02.2008 [e 2023]

[1] Se calhar pelo meu coração guinar para o vulgar, opto por usar o termo Alvorada.

[2] Manuel Breda Simões, Roteiro Lexical do Culto e Festa do Espírito Santo nos Açores, I.C.L.P, 1987, p.60. Simões di-lo aí, mas sem provas substantivas, só num palpite que se provou acertado. Baseando-se, em parte, segundo refere o mesmo autor, em trabalho inédito de Maria Mota Faria, que não tive a oportunidade de ler, intitulado: As Cavalhadas de São Pedro (inédito), Ribeira Seca, 1980.

[3] Fórum, Ribeira Grande, n.º 15, 6 de Julho de 1867, fl. [2?]

[4] João Barbosa Silvestre, nascido em 1920 na rua do Balcão e morador na rua Eng. Arantes e Oliveira, n.º 28. Entrevista feita no dia 9 de Julho de 2007.

[5] Hermano de Lima Bravo, 83 anos, morador ao Tornino de Cima, n.º 166: entrevista no dia 9 de Julho de 2007.

Mário Moura
Enviado por Mário Moura em 20/04/2024
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