Talento e vocação

Vamos aqui considerar como “talento” aquela habilidade edificante, que engrandece o indivíduo e contribui para o convívio social pacífico e próspero. Diferente de outras habilidades, que podem ser nefastas, como a do projetista de minas terrestres explosivas, ou a do exímio ladrão profissional. E vamos considerar como “vocação” o chamado, o desejo e empenho em firmar-se numa determinada habilidade, seja profissional, artística, esportiva, científica...

Bem-aventurada aquela pessoa na qual convergem talento e vocação! Quem tem talento para ser um músico, e deseja firmemente ser um músico, superará obstáculos, e terá grande chance de tornar-se um músico de sucesso. Mas quem tem talento para ser um escritor, e não deseja nem se empenha em sê-lo, talvez nunca escreva nada.

Há ainda outras componentes decisivas nessa relação entre talento e vocação. A oportunidade, concedida pelo ambiente, natural ou social, em que a pessoa vive e evolui, é uma delas. Alguém com talento para a música que nunca for apresentado a ela, nem a um instrumento musical, dificilmente poderá tornar-se um músico. A menos que seu talento seja tão prodigioso que ele encontre a música nos sons da natureza. Alguém com talento para a literatura que nunca venha a conhecer um livro, nem a linguagem escrita, dificilmente poderá tornar-se um escritor.

Outra componente é a circunstância. Entre os sobreviventes de um acidente aéreo na floresta, um hábil escriturário da cidade pode ser forçado a revelar-se um competente intérprete da linguagem da selva.

Há ainda pelo menos outra condição para que o talento se manifeste: o desejo, a aceitação da pessoa brindada com relação ao dom natural. É possível que o talentoso nunca descubra seu talento ─ dizem que esta é a situação mais comum ─. Ou até saiba dele, mas o rejeite, influenciado por modismos, preconceitos ou imposições sociais. A mulher agregadora e líder nata pode vir a ser segregada e sabotada num meio excessivamente patriarcal, e pode optar por anular-se. O poeta sensível pode optar pelo anonimato numa sociedade machista e mercantil. Ou ainda, uma talentosa cozinheira nata pode ser convencida que cozinhar seja tarefa de escravas e serviçais, e assim preferir nunca desenvolver e aplicar seu condão.

Há ademais o outro lado: o desejo, a vocação, divorciada do talento natural. Neste caso, a eventual realização do desejo, a transformação da vocação em habilidade talentosa, vai depender da combinação de outros fatores. Sobretudo, de firme dedicação. Vai ser preciso adquirir um talento, uma habilidade, que não se possuía naturalmente. Isso é possível, com muito empenho e perseverança. E desde que a pessoa seja capaz de vencer as limitações para tornar-se talentosa na sua vocação. Não é provável que um deficiente visual venha a ser um fotógrafo renomado. Nem que alguém dotado para ser um velocista torne-se um campeão de levantamento de peso pesado. Nem que a pessoa com aguda deficiência de atenção venha a tornar-se uma revisora de textos eficiente.

Em qualquer dos muitos casos possíveis ─ estes aqui lembrados são só uma parca amostragem ─, parece ser essencial que cada ser humano tenha oportunidade e estímulo para reconhecer, valorizar e desenvolver seus talentos. Parece bem crível que todos nós, sem exceção, tenhamos nossos talentos natos. Lograr descobrir e exercer aqueles que de fato são edificantes realizaria o indivíduo e acrescentaria à sociedade.