IA, LITERATURA E SOCIEDADE: PRIMEIRAS IMPRESSÕES

É inconfundível que estamos vivendo o boom da inteligência artificial, popularizada pela sigla IA, e que isso está marcando a nossa sociedade no segundo quartel do século XXI. É um tanto irônico que isso aconteça somente agora, quando muitos outros debates iniciados há muitos séculos sobre o lado deletério do avanço tecnológico já tenham se arrefecido. Assim, nos defrontamos com um eterno retorno nietzschiano, uma vez que, quando acreditamos que as pessoas seriam menos escatológicas com o avanço técnico e científico da humanidade, algo ressurge desse mar de possibilidades para tornar o debate fervoroso outra vez. Note que eu chamo o debate de fervoroso e não de necessário ou importante. Talvez, neste curto ensaio, eu consiga explicar os meus motivos, embora duvide que se possa expressar formulações mais complexas em um texto tão sucinto.

Com efeito, eu gostaria de convidar vocês à uma análise histórica, que no meu caso não pode ser muito profunda: eu tenho uma capacidade de discorrer mais sobre contextos que implicam a literatura ao longo dos séculos e não os eventos marcantes e primordiais da civilização dentro de um olhar historiográfico. Ainda assim, fica-me muito claro que a Revolução Industrial foi o começo de tudo, tanto dos avanços inigualáveis da tecnologia que temos hoje quanto desses debates e olhares nefastos para todo tipo de inovação que perturbasse a princípio a humanidade. Nesse episódio em que a Inglaterra foi pioneira, temos um movimento conhecido como ludismo, em que as pessoas se rebelaram contra as máquinas, acusando-as de suas mazelas, que, diga-se, eram causadas, na verdade, pela implantação do sistema capitalista e mais precisamente do modo de produção fabril.

No entanto, já naquele momento, o que imperava era uma visão de que a tecnologia por si mesma estava se encaminhando para arruinar a vida das pessoas. Ficava subentendido que elas tinham uma nítida intencionalidade: substituir as pessoas, os braços assalariados nas fábricas, deixando-as desempregadas, desassistidas, indefesas. Por isso, o ludismo se espalhou até ser contido, já que causavam um prejuízo em larga escala. É interessante notar que o ludismo se iniciou em pleno século XVIII e já trazia essa percepção negativa e apocalíptica das máquinas. Uma obra cinematográfica do final do século XX também seguiu pelo mesmo caminho, talvez muito influenciada pelo clima de fim de milênio, trazendo também a ideia de que as máquinas seriam as causadoras da ruína da própria civilização. Isso é encarado de forma muito exaltada no filme O Exterminador do Futuro, de 1984. Nele, uma IA militarizada se apodera de tecnologias e arsenais em todo o mundo e lidera uma rebelião de máquinas contra a humanidade. É claro que os desdobramentos disso são fatídicos, consolidando o tom de ameaça de extinção em decorrência dessa tecnologia tão avançada que suplantou o próprio ser humano.

A primeira IA de nosso tempo a fazer toda a diferença, embora a própria inteligência artificial seja um conceito tecnológico muito complexo e seus estudos remontem ainda a outro século, foi o ChatGPT. Essa plataforma de IA foi a que popularizou o uso da inteligência artificial para diversos campos, uma vez que as interações permitem desde estudos até usos eticamente condenáveis, como é o caso de produção textual no cenário acadêmico e educativo, levando a uma séria discussão sobre plágio e autoria, que, para mim, que sou professor, é o que de fato interessa nesse primeiro momento.

Eu preciso entender que, enquanto professor, a IA é uma ferramenta e que ela pode ser aplicada para diferentes tarefas. No entanto, até que ponto seu uso não viola a assunção da autoria do texto produzido e quando podemos considerar que sua aplicabilidade não levou ao que consideramos plágio? Mas essas parecem para muitas pessoas uma dimensão irrelevante do uso da IA: elas podem ser de fato assustadoras, na visão de indivíduos que ocupam posição mais conspícua em nossa sociedade.

Não faz muito tempo e eu encontrei uma matéria que dizia que havia no mínio quatro hipóteses em que a IA poderia nos ameaçar. Dois dos motivos apresentados eram sore a relação entre a IA e as nossas estruturas de poder, governativas e sociais, sobretudo na forma como nos organizamos com as desigualdades sociais muito vultosas. Nesse sentido, o que teríamos seria mais ou menos o que acontece nas HQs como o personagem Tony Stark, cuja inteligência artificial, JARVIS, serve apenas aos seus propósitos. Somente um industrial, alguém com uma grande concentração de poder econômico teria essa tecnologia à sua disposição, o que intensifica os quadros de exclusão e também acirra as lutas de classes. Se pensarmos também que apenas os governos teriam acesso se torna quase o mesmo patamar, uma vez que eles teriam um recurso que poderiam usar sempre para fins de uma política capaz muito bem ser partidária e ideológica, podendo chegar a quadros extremistas como os regimes totalitários.

Esse quadro esboçado nessas duas hipóteses pode parecer de fato desolador, mas notamos aqui algo curioso e que pode passar despercebido pelas pessoas. Não é a IA o problema de fato, não sua existência em si e o que ela pode fazer. Isso nos lembra uma outra obra cinematográfica, que escancara de maneira muito didática como um avanço tecnológico pode ser detido pelos poderosos, que a película Elysium, dirigido por Neill Blomkamp, uma obra-prima tanto da ficção científica quanto da arte engajada. Nesse caso, por sua vez, não poderíamos contrapor nenhum argumento da criação e disseminação da IA: o que de fato é um problema é o ser humano, sua ética, sua moral, sua conduta e sua política. A fim de sanar esse problema que se desdobra a partir dessas duas hipóteses, talvez devêssemos usar o maior de todos os antídotos: uma educação crítica e politizada, que hoje parece ser mais ameaçadora para alguns grupos que qualquer IA diabólica.

Finalmente chegamos às outras duas hipóteses, que nos remetem à literatura de fato. A matéria diz que a IA pode partir para a produção de armas e usar a desinformação contra a humanidade, como muitos grupos políticos também fazem hoje. Aliás, nós somos o modelo perfeito de tudo que essa inteligência artificial poderia fazer de mais nocivo. Nota-se, desse modo, que a inteligência artificial é antropomórfica, assim como os deuses das civilizações antigas antes do surgimento do Cristianismo no seio do Império Romano. Quando partimos para essas duas hipóteses, logo vem à mente o HAL 9000 do 2001: Uma Odisseia no Espaço, de Arthur C, Clarke, que foi escrito no embalo de uma obra cinematográfica. Mas é impossível deixar de lembrar também a Skynet, de O Exterminador do Futuro, que consagrou mais que qualquer outro produto cultural a ideia de uma IA maléfica que deseja erradicar a humanidade. A meu ver, parece mais uma tentativa de entender a IA a partir de nosso próprio campo referencial: até imagino um pesquisador atribuindo essa inclinação à devastação da IA ao seu Id desestruturado, já que ela é encarada como tendo a mesma constituição psíquica de nós humanos.

Assim, você pode me perguntar o que desejo com essas primeiras impressões: a minha ideia é abrir uma discussão sobre o lugar que que a IA está sendo colocada e quem a está colocando lá. Ao lado disso, é importante pensar que nossa cultura já produziu visões sobre essa tecnologia, que estavam fincadas em seu momento presente, e estamos sendo anacrônicos ao nos voltarmos para elas. Mesmo a literatura, que em muitos casos se mantém atualíssima, também é fruto de seu tempo. Alguns desses discursos nos ajudam a entender por que as pessoas pensam dessa maneira, mas o que mais vamos encontrar não passa disso, de olhares cristalizados por produtos culturais de qualidade ímpar. Se estamos falando de algo que está mais fincado no campo da ciência, quem nos deveria orientar era a experimentação, a matematização, a dúvida metódica e muitos outros arcabouços para pensar a partir do próprio método científico. Tanto literatos quanto roteiristas podem escrever best-sellers e obras cinematográficas que suscitem outro olhar e eles farão isso com o olhar da ciência, que serve de inspiração também para a arte, seja ela funesta ou venturosa.