As Influências Filosóficas da Idade Moderna na Psicologia.

Universidade de Pernambuco (UPE)

Cadeira de História da Psicologia

Raul Magalhães Brasil

Introdução.

Muito antes de ser considerada ciência, a psicologia já tinha seu lugar garantido nos grandes debates da humanidade. Pode-se dizer que essa área do conhecimento é a filha mais nova da metafísica, e a mais proeminente sobrinha da epistemologia clássica. Seus debates são milenares, perguntas “como o que é a mente?” e “como ela funciona?” remontam ao tempo de Sócrates, este, que já lançava olhares para a psicologia, definindo a mente como algo “além da alma”, e designando as suas funções: o pensamento, a imaginação, a memória e o sonho. Não é um equívoco dizer que a psicologia quase sempre existiu, e também não é um equívoco dizer que sem as reflexões da Idade Moderna, dificilmente a psicologia teria se desenvolvido ao ponto de tornar-se essa ciência que conhecemos hoje.

I. O Espírito da Idade Moderna.

A idade moderna buscava questionar os dogmas e as doutrinas reivindicadas pelo conhecimento produzido pela igreja católica durante a Idade Média. Define-se a idade moderna como humanista, cientificista e antropocentrista contrastando com o teocentrismo e o dogmatismo do período anterior. As descobertas científicas desse período deram uma guinada no conhecimento humano, a filosofia natural teve um papel fundamental nesse processo, filósofos e físicos como Galileu, Newton e Copérnico marcaram o desenvolvimento das ciências para sempre, e essa marca se estendeu por todas as áreas do conhecimento, inclusive a própria filosofia e a psicologia.

Diz-se que Descartes, conjuntamente com Francis Bacon inauguram a filosofia da idade moderna. Retirando o foco dos pensamentos teológicos e metafísicos dos escolásticos, e dando a primazia do conhecimento ao homem, que agora, pode conhecer o mundo sem o intermédio de Deus. A filosofia com Descartes e Bacon criava novos paradigmas, se misturava e se embrenhava com diversas áreas do conhecimento, como a fisiologia, a matemática e a física, desse modo dando a luz a um novo modelo do fazer-filosófico e lançando olhares sobre perguntas e questões que ainda hoje permanecem fundamentais.

II. Os Racionalistas: Descartes, Leibniz e Spinoza.

René Descartes(1596-1650) foi muito provavelmente o filósofo mais importante de seu tempo, destacou-se no estudo da mente, resgatando o dualismo platônico entre mente e corpo. Apontando o corpo como um motor que trabalha independentemente da supervisão da mente e que, portanto, corpo e mente são, sim, entidades dissociáveis. Talvez a principal contribuição de Descartes para a filosofia, e sobretudo para a filosofia moderna tenha se dado em sua obra “O Discurso do Método”, onde questionando os métodos das ciências naturais, da teologia e da filosofia escolástica, busca um novo método do fazer filosófico que produza conhecimento de maneira confiável, de modo que se possa chegar a certezas. Seu método é a dúvida metódica, isso é, da dúvida como método, que consiste em duvidar de todos os conhecimentos até que restem somente as verdades auto-evidentes, que não podem ser questionadas. Neste processo de dúvida Descartes percebe que não consegue duvidar da própria dúvida, e que portanto, o ato do pensamento é real, e o pensamento, por sua vez é uma qualidade da mente existente enquanto ato, e é dessa inferência que vem sua famosa frase: “Penso, logo existo”. Desse processo de dúvida Descartes aponta para o conhecimento matemático como uma verdade auto-evidente, assim como o conhecimento sobre Deus, afirmando que ambos, o conhecimento matemático e o conhecimento sobre Deus, são ideias inatas ao indivíduo.

Gottfried Wilhelm Leibniz(1646-1716) foi um filósofo e polímata alemão, destacou-se principalmente nas áreas da filosofia e da matemática, tornando-se uma figura central em ambas as áreas do conhecimento e se eternizando por ter concebido as ideias do cálculo diferencial e integral independentemente de Newton (o que gerou diversos empasses no que diz respeito a direitos autorais). Leibniz destaca-se também na teologia, com seu livro, A Teodiceia, onde defende a ideia de que Deus não tem culpa sobre o mal do mundo, e na metafísica com seu livro Monadologia, que defende a ideia de que o universo é constituído por indivisíveis partículas metafísicas sem extensão, as mônadas. Para a filosofia e para psicologia, os seus livros mais importantes são, sem dúvidas, Discursos de Metafísica onde, resgatando e homenageando o conhecimento escolástico, prioriza a razão como forma de conhecimento e demonstra como ela pode apreender verdades sem o intermédio dos sentidos, usando exemplos da geometria e da própria física para isso, neste livro, Leibniz também resgata a ideia da reminiscência de Platão, apontando que todo o conhecimento já está contido na alma, e tudo o que a mente faz é reconhecer esses conhecimentos. Outro livro de suma importância, embora desconhecido é o Novos Ensaios acerca do Entendimento Humano, uma espécie de “livro-resposta” a John Locke, onde Leibniz demonstra diversas falhas, reducionismos e nuances do pensador empirista, defendendo a primazia da razão sobre a apreensão dos conhecimentos.

Baruch de Spinoza(1632-1677) foi um dos mais rebeldes pensadores do racionalismo. A verdade é que é difícil situar Spinoza de fato como racionalista ou empirista, e até mesmo situá-lo na idade moderna. Acontece que Spinoza é um pensador póstumo, sendo resgatado somente na filosofia contemporânea, com Nietzsche e Deleuze, que conseguem reconhecer o brilhantismo no pensamento do filósofo holandês. Spinoza critica duramente, embora de maneira elegante, a filosofia de Descartes e a filosofia escolástica, ele busca combater o conhecimento supersticioso das religiões, esse combate se dá através de uma filosofia pautada na razão e na lógica, erguendo pilares extremamente sólidos de pensamento através do método axiomático-dedutivo. Sua principal obra é a Ética, um tratado curto em extensão porém profundo em questionamentos. Na primeira parte da ética Spinoza vai contra toda a tradição filosófica e teológica de sua época e defende uma ontologia que aponta para um Deus imanente, que se confunde com a própria natureza; na segunda parte ele investiga os processos e os limites da mente, se preocupando com o que é possível e o que não é possível de ser conhecido; na terceira parte ele se preocupa com a gênese dos afetos do ser-humano, lançando novas ideias sobre o que seria a vontade; na quarta parte ele investiga o quão escravo somos dos nossos afetos e como podemos racionalizá-los, na quinta parte ele investiga a liberdade, que se daria por meio de uma razão desejante, capaz de reconhecer os próprios afetos não para guiá-los, como queriam os estóicos, mas para compreendê-los e abraçá-los. A filosofia de Spinoza se preocupou com assuntos muito importantes para a psicologia, e até hoje o filósofo levanta questões pertinentes no que tange aos questionamentos sobre os afetos, a vontade, os sentimentos e a liberdade da razão humana.

III. Os Empiristas: Locke, Berkeley e Hume.

John Locke(1632-1704) é um dos principais pensadores do contratualismo e o principal representante do empirismo britânico. Locke discordava diametralmente das ideias de Descartes e do racionalismo. Para ele não haviam ideias inatas ou a reminiscência da razão, para Locke o indivíduo nasce como uma tábula rasa. A mente humana surge como uma folha em branco sobre a qual a experiência através dos sentidos escreve o conhecimento que o indivíduo apreende. Locke desenvolve seu pensamento sobre a origem e a natureza do conhecimento humano em seu texto Ensaio Acerca do Entendimento Humano, onde apresenta também a ideia de que o entendimento se dá por dois principais processos, o da sensação e o da reflexão, onde a sensação refere-se a todas as informações que são captadas no ambiente através dos sentidos, enquanto a reflexão seriam as atividades mentais que processam essas informações captadas pelos sentidos. Em detrimento desses dois processos do entendimento, Locke formula dois conceitos, o das ideias simples e o das ideias complexas. Onde as ideias simples derivam da realização de sensações básicas e do processamento de reflexões simples, e as ideias complexas, por sua vez, seriam a junção de várias ideias simples com outras ideias complexas. Com tais conceitos, Locke cria uma significativa contribuição para a epistemologia e para a psicologia, suas reflexões sobre as ideias simples e complexas desenvolvem-se posteriormente através da teoria do associacionismo, e seu empirismo, que concebe o ser-humano como uma tábula rasa, moldado através das experiências com o meio externo, é algo que dialoga significativamente com a teoria do behaviorismo.

George Berkeley(1685-1753) foi um crítico de Locke, e, embora situado como empirista, Berkeley dialoga principalmente com os idealistas. Em sua principal obra, o Tratado sobre os Princípios do Conhecimento Humano, ele desenvolveu a ideia do imaterialismo, que defendia que o indivíduo não consegue perceber a matéria em si e portanto, não pode provar que os objetos apreendidos pela mente são, de fato, materiais. Berkeley sustenta que objetos familiares são apenas ideias da mente do indivíduo que os percebe e desse modo, postula que os objetos não podem existir sem serem percebidos. Posteriormente Berkeley publica o texto Um Ensaio para uma Nova Teoria da Visão, no qual ele discute as limitações da visão humana e postula a teoria de que os objetos apropriados da visão não são objetos materiais, mas formados por luzes e cores, o que contribuiria para a sua teoria do imaterialismo. O sacerdote anglicano argumentou ainda contra a doutrina de espaço, tempo e movimento de Isaac Newton em seu texto De Motu. Seus argumentos foram precursores de ideias desenvolvidas por Ernst Mach e Albert Einstein.

David Hume(1711-1776) foi não somente filósofo, mas também historiador, ensaísta e bibliotecário, tornou-se conhecido pelo seu empirismo radical e pelo seu ceticismo filosófico. Ao lado de John Locke e Berkeley, Hume compõe a famosa tríade do empirismo britânico, sendo considerado um dos mais importantes filósofos do ocidente. David Hume criticou a maneira como as filosofias teológico-metafísicas concebiam o espírito humano e buscou aplicar o método científico e experimental aos fenômenos da mente, seu pensamento teve influência profunda sobre Kant, que, segundo o mesmo, o fez acordar de um sono dogmático, assim como influenciou também a filosofia analítica, a fenomenologia e a epistemologia do século XX. Sua principal obra é o seu Tratado da Natureza Humana, que, embora mal-recebida em sua publicação, demonstrou ser uma obra fundamental posteriormente. O subtítulo da obra é: “Uma Tentativa de Introduzir o Método Experimental de Raciocínio nos Assuntos Morais” que diz muito sobre o intuito de Hume com seu texto; ele busca uma racionalização da moral e dos afetos, que até então eram assuntos que ficavam sob jurisdição da metafísica. Assim como Isaac Newton construiu uma sólida visão da natureza física a partir do método de observação e da experimentação, David Hume buscava aplicar tal método também à natureza humana, ou seja, também ao sujeito, não apenas ao objeto. Numa tentativa de percorrer esse caminho para fundar a ciência do homem em bases sólidas e experimentais, não mais em bases metafísicas e abstratas.