O direito à alimentação adequada e justa em tempos de pandemia

Com o avanço do novo coronavírus, a falta de acesso à alimentação adequada e justa tem se agravado para uma parcela significativa da população brasileira. Embora necessárias, as medidas de isolamento faz com que diversas famílias necessitam recorrer cada vez mais aos alimentos industrializados por esses serem considerados mais baratos, por durarem mais tempo na despensa e pela facilidade de serem consumidos a qualquer momento(1) .

O problema é que esses itens definidos como ultraprocessados – conforme demonstra o respeitável Guia Alimentar para a População Brasileira (2014) , tendem a ser excessivamente calóricos e menos nutritivos do que os alimentos in natura, além de causarem severos danos ambientais e sociais. Inclusive, essa “imitação de comida” produzida e comercializada pela indústria de alimentos - com o amplo apoio de setores do governo - pode contribuir a médio e longo prazo para o surgimento de graves problemas para a população, como as doenças crônicas não transmissíveis (DCNT).

O direito à alimentação adequada e justa da população não está assegurado, pelo contrário, está sendo ainda mais comprometido com o aprofundamento dos efeitos perversos da pandemia. A fome oculta e invisível (desnutrição) e/ou a fome aguda, como denunciava Josué de Castro (1980), gera prejuízos incalculáveis para aqueles que não têm o mínimo acesso a uma alimentação em termos de quantidade e qualidade. Essa situação de calamidade pública atinge tanto aqueles que vivem na cidade como no campo, principalmente pessoas sem renda mínima: uma parcela significativa da população negra, famílias rurais com acesso precário à terra, comunidades quilombolas, ribeirinhas e populações indígenas.

O agrônomo, escritor e ex-diretor da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura(FAO), José Graciano da Silva (2020), alertou que as doenças provocadas pela má alimentação podem ser consideradas uma das principais agravantes da Covid-19. Ele ainda afirma que a maior procura por alimentos ultraprocessados em supermercados tem prejudicado diversos agricultores familiares, pois muitos deles dependem de feiras livres, restaurantes e bares para obterem um maior rendimento. Com o menor movimento nesses espaços, vários produtores familiares temem não conseguir manter as atividades. Ultimamente, eles têm sido forçados a descartar frutas, verduras, legumes e outros alimentos.

Como uma forma de garantir maior proteção social, a alimentação de qualidade deve ser pensada muito além de interesses mercadológicos e critérios nutricionais reducionistas e/ou meramente técnicos estabelecidos pelo Governo Federal. O combate a insegurança alimentar e nutricional precisa ser articulado através de dimensões políticas, sociais, culturais, econômicas e ambientais. O bem viver e alimentar, para não se tornar apenas uma retórica vazia e desprovida de significado, precisa ser entendido de forma individual, coletiva e solidária, como um direito humano básico capaz de garantir o acesso permanente e regular aos alimentos, de maneira socialmente justa.

O sociólogo e combatente da fome Jean Ziegler afirma (2013) que o Direito à Alimentação, reconhecido pela ONU, é violado de forma constante e brutal em diversas partes do mundo, inclusive pelo atual governo brasileiro. Esse direito está relacionado a ter acesso, regular e permanente, a uma alimentação quantitativa e qualitativa de um povo, garantindo uma vida plena e satisfatória, livre de problemas causados pela falta de consumo adequado de calorias diárias.

Ainda, segundo os princípios e diretrizes do antigo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – CONSEA (2004), a alimentação adequada e justa perpassa diretamente por aspectos biológicos e sociais dos indivíduos, de acordo com o ciclo de vida e com as necessidades alimentares especiais, considerando e adequando, quando necessário, o referencial da tradição local. Além disso, precisa atender a princípios como: variedade, qualidade, equilíbrio, moderação e prazer (sabor), a dimensões de classe, gênero, raça e etnia e a formas de produção ambientalmente sustentáveis, livres de contaminantes físicos, químicos e biológicos e de organismos geneticamente modificados.

Agora, nesse momento crítico, a curto prazo, torna-se ainda mais necessário a valorização dos circuitos locais de produção e consumo, sobretudo através das feiras orgânicas e agroecológicas dos produtores familiares. Assim, se faz necessário criar mais iniciativas por meio de políticas públicas de curto e médio prazo para dar maior apoio à agricultura familiar e, paralelamente, assegurar o acesso da população à “comida de verdade”, produzida, sobretudo, de forma sustentável, que respeite a socio-biodiversidade. Junto a isso, esses alimentos de qualidade devem chegar de forma rápida e efetiva onde estão as pessoas, grupos e comunidades que estão mais vulneráveis, pois como dizia Betinho, “quem tem fome, tem pressa”.

Nesse momento da pandemia, torna-se ainda mais urgente que amplos setores da sociedade civil se mobilizem para barrar os retrocessos socioeconômicos do Governo federal e avançar no combate à fome e insegurança alimentar e nutricional, que assolam profundamente o país. Nesse sentido, a luta por justiça alimentar, na qual possibilite que um conjunto de propostas sejam implementadas em caráter emergencial nas esferas federal, estadual e municipal, é algo de suma importância para que a saúde e o direito à alimentação da população brasileira sejam, de fato, garantidos e respeitados.

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1 - Segundo um levantamento do IBGE (2020). após uma sequência de quedas registradas a partir de 2004, o número de pessoas que lidam com limitações de quantidade e qualidade da comida – em alguns casos passando até fome – voltou a crescer no país. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/podcast/2020/09/17/O-aumento-da-inseguran%C3%A7a-alimentar-entre-os-brasileiros>. Acesso 20 set. 2020.

Referências

BRASIL. MINISTÉRIO DA SAUDE. Guia Alimentar da População Brasileira. Brasília: Ministério da Saúde, 2014. Disponível em: <http://dab.saude.gov.br/portaldab/biblioteca.php?conteudo=publicacoes/guia_alimentar2014>. Acesso em: 20 set. 2020.

CASTRO, Josué de. Geografia da Fome: o dilema brasileiro do pão e aço. Rio de Janeiro: Antares /Achiamé, 1980.

CONSEA. <Disponível em: https://www.ipea.gov.br/participacao/images/pdfs/conferencias/Seguranca_Alimentar_II/textos_referencia_2_conferencia_seguranca_alimentar.pdf > Acesso em: 20 set. 2020.

SILVA, Graciano. Piora da alimentação na pandemia deixa população mais vulnerável à covid-19, diz ex-chefe da FAO, 2020. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52626216> Acesso em: 20 set. 2020.

ZIEGLER, Jean. Destruição em massa: Geopolítica da fome. São Paulo: Cortez Editora, 2013.