A Preparação para os Estudos

Si primo alphabetum discere contempsisses, nunc inter grammaticos tantum nomen non haberes[1]

(Hugo de São Vitor – didascalicon)

O ser humano possui uma capacidade natural e necessidade inata para o aprender, nosso sistema neural não tem paralelo no mundo animal, assim soa estranho quando ouvimos coisas como: esse aluno não quer aprender, ele não aprende; aqui seria interessante distinguir os verbos aprender de apreender, aquele trata de saber, entender, já este aprisionar, fixar, logo poderíamos dizer então que o discente não quer fixar, não quer apreender, porque ele aprende, possui a capacidade inata para isso, entretanto se não o faz, não percebe a perda, esse apreender que precede o aprender é um fenômeno privado, envolve questões singulares. Essas questões podem ser ocultadas, não raro, mesmo com nosso emocional abalado conseguimos canalizar nossa atenção, esse é o início, essa é a preparação necessária para os estudos.

Segundo Hugo de São Vitor, há três coisas necessárias ao estudo, ou seja, capacidade natural, exercício e disciplina. Essas três coisas não se excluem, sendo que na capacidade natural (natura) é considerado a facilidade de audição – no caso o sistema fonológico – como se retém o que foi apreendido. Já no exercício (exercitium) há o modo como o estudante cultiva essa capacidade natural através do esforço, da repetição e assiduidade. E, finalmente, na disciplina (disciplinum) como o discente conforma a sua conduta a ciência adquirida, ou seja, o aspecto moral.

Talvez o mais assustador, para os que estão acostumados com as diretrizes reinantes na educação, seja o aspecto moral, em menor proporção a questão da repetição e por fim a capacidade natural. Assim começaremos pelo que aparenta ser menos assustador, gradação necessária, e que revela outro princípio abandonado por muitos educadores, que é o de sair do menor para o maior. A primeira vista parece simples, afinal se fôssemos aprender a dirigir, por exemplo, nosso instrutor não nos conduziria a uma via movimentada, começaríamos com o carro parado, treinaríamos as marchas, nos adaptaríamos ao campo visual do motorista, etc. O mesmo acontece em várias interações de ensino aprendizagem, não começamos um instrumento musical já ensaiando uma peça de concerto! Em educação, sobretudo no Brasil, a coisa ficou diferente, deixou-se a capacidade natural ocupar um espaço maior, se somos programados para a linguagem, estamos rodeados de escrita em um mundo letrado, já há uma leitura do mundo anterior a leitura da palavra. Sim, se você cair de para-quedas na Polônia, saberá Polaco.

A compreensão faz parte do segundo componente da leitura, o primeiro é a decodificação, nesta reconhecemos o código e naquela interpretamos. Podemos dividir em dois os modelos principais bottom-up e top-down e um terceiro que seria a mistura dos dois citados. No modelo bottom-up iremos da parte para o todo e o top-down do todo para a parte. O que seria mais natural para o aprendizado? Qual respeitaria a capacidade inata de aprender? Aquela que a própria natureza nos mostra, quando acompanhamos o desenvolvimento dos animais? O modelo top-down é útil quando já se possui um repertório, por exemplo, alguém que estudou durante anos uma língua, abandona e retorna os estudos, não precisa começar do zero. No sistema seriado o bottom-up vem implícito, e.g.: os conteúdo do sexto ano não são repetidos no oitavo ano, logo há uma tentativa de anorexia, ou top-own de conteúdos, que são repetidos em todos os anos, com o uso de competências, habilidades e expectativas que também se repetem, a fim de não se aproximar de uma sistematização normativa, mais próxima do bottom-up.

Reconhecer, humildemente, que começar do zero não é algo negativo, perder a ansiedade, eis algo necessário na preparação para os estudos, que hoje não é comum. Muitos alunos gostam do desafio, mas não conseguem chegar nele, pois para chegar a alguns desafios é necessário atravessar o caminho das pedras, todavia o caminho das pedras já é negado durante o próprio processo de ensino-aprendizagem. Quando faz o aluno imagina que ele tem o todo nas mãos e poderá selecionar as partes, quando na verdade o que ele tem é uma sombra do todo. Assim a preparação necessária deve ser pensada pelo estudante em sua preparação, se estou com problemas em Matemática, há debilidade? Não raro mal sabe a tabuada! Muitos alunos não percebem problemas em matérias como História, porque há poucas cobranças, mas não conseguem ler um texto longo, não conseguem entender certos usos gramaticais essenciais, ou, o que é pior, ainda estão com problemas de decodificação no Ensino Médio!

Possuímos uma capacidade natural para a linguagem, mesmo com debilidades na dupla articulação, a criação de signos linguísticos é uma constante, essa capacidade natural desenvolve-se aos poucos, de forma que o indivíduo paulatinamente absorve os conceitos, os sons, os sinais que usará, por que no ensino tal não sucede? Atualmente o comum é a partir de um texto trabalhar os conceitos, mas não se defenestra assim o prazer estético? O texto deveria ser posterior ao conceito. Com isso haverá já um exercício, um preparo, ou retomando assim os passos formais de Herbart (1776-1841), os quais são: preparação, apresentação, assimilação, generalização e aplicação.

O exercitium também é negligenciado por nossa “moderna” pedagogia, que no Brasil se reduz a seguir apenas uma vertente, tão enraizada, que muitos professores sentem dificuldade de retirar os grilhões, isto é, quando percebem que o estão usando! Criaram um mito de que decorar é ruim, por que esquecemos, ora, mas tudo pode ser esquecido, inclusive nossa própria vida, assim nada estudaremos! Ou não viveremos? Aprendizagem significativa, pois o aluno guardará de forma passageira, mas acaba sendo apenas aprendizagem não substancial, sem poder de fazer o discente ir mais além, assim paulatinamente, nossos alunos vão se desmotivando, flor a murchar, que entra ainda com insipientes corolas na escola e sai de lá já sem pétalas.

Esse hábito que o exercício cria, será de validade para toda a vida, mas tal não vemos, a calma, temperança, ordem, são substituídas pela nervoso, ansiedade e pela indisciplina. Sem esse hábito, sem treinar o cérebro não há neuroplasticidade, sem semear, cuidar e irrigar não há pomares, sem trabalho o descanso vira ócio. Eis uma grande inimiga, criamos jovens ociosos, que não se envolvem no estudo e almejam a tudo que seja mais fácil, ou em um grau compensador nímio, ou status apenas. Não podemos culpá-los, pois a memória explícita requer repetição, elaboração e consolidação.

A Escola perde sua referência, o professor, deixa de ser mestre, o professor apenas é um auxiliar para entreter, pois se não há exercício e conteúdos a serem solidificados e que ano a ano abrirão portas desconhecidas, o desafio finda. O grande problema dos métodos ativos, quando amadurecidos por uma visão construtivista é justamente o de abandonar a sistematização do conhecimento, o exercício individual é substituído pelo trabalho coletivo em busca de solução de problemas que envolvem várias habilidades, ou poucas, a mensuração é subjetiva também, alguns professores colocam como forma de avaliação a mera observação dos alunos! Repetir exercícios, repetir conjugações viraram coisas revolucionárias em sala de aula, mas ao observarmos os jogos, vemos que há sim muita repetição, muito exercício para se progredir, é perceptível que o cérebro não nega a repetição, não é a repetição que gera o ócio, ou abandono escolar, como tentam arguir.

O decorar, que ocorre através do exercício e da repetição, tornou-se algo a ser execrado, com a progressão continuada, virou norma, e a culpabilidade pelos dados educacionais caírem, veio para machucar as vértebras do professor, que virou um Sísifo, ou um Prometeu acorrentado.

Por fim a disciplina (disciplinum), onde o estudo torna a pessoa melhor, melhora o juízo moral do indivíduo. O juízo moral é algo que faz parte de nosso ser, de nossa natureza, e paulatinamente perde seu caráter singular, aonde a criança vai manipulando o jogo com suas regras, com as regras coletivas, com novas regras, variando os estágios designados por Wallon entre centrípeto e centrífugo. Entender e manipular o jogo (centrípeto); perceber a existência do jogo e suas regras (centrífugo); aprender as regras, tentar usá-las para si, criar jogos imaginários semelhantes (centrípeta); não se percebe o abandono do ascendente ou bottom-up, o interacionismo que de fato ocorre, não redime o processo em seu decurso, um aluno que não aprende a decodificar, pode tentar ler a sua própria biografia e não perceberá a descrição de sua vida ali! O conhecimento prévio, interações ocorrerão em partes do processo, qualquer dos usados. Outro problema é criar o paradoxo do interpretante, ou seja, cada pessoa interpretará o texto de uma forma diferente, isto é, chegamos a sola singuli.

Retira-se a humildade do aprender, meus conhecimento prévios são suficientes, já sei isso, posso aprender isso rapidamente em sítios sobre o assunto. Um asceta pode ser mais sociável que um citadino, não é à-toa que o spleen não vem deles.

A debilidade na capacidade natural, exercício gera um problema de disciplina, basta percebermos como as questões de indisciplina chegaram a patamare alarmantes, sobretudo com o bullying, causando doenças nos professores: “Burnout”; há um problema moral, o abandono do juízo moral é mais uma devastação, herdada de uma influência niilista e Foulcaniana, aquela que afasta a religião, que acredita no indivíduo, não o vê como uma máquina imperfeita, a sociedade que corrompe, logo, vamos evitar sistematizar, vamos dar mais liberdade; já esta parte Foulcaniana fica na condenação da própria disciplina, vista como forma e poder, dominação e não de libertação do indivíduo.

O aspecto moral, atualmente, é substituído pela aceitação passiva daquilo que comumente chamamos de politicamente correto. A ONU já adentra nos currículos, aulas motivacionais, currículos flexíveis, tentam refrear um certo abandono interior que sentem os alunos, não dos professores, mas, possivelmente de si mesmo, a vida perde o valor, o momento é o tudo que navega sobre o nada.

Aqui não se trata apenas de retomar o conhecimento prévio e sim e moldá-lo, às virtudes, de que adianta conhecimento para uma vida desonesta, de que adianta ciência, se é para o mal da sociedade?

Essa disciplina que revela uma educação que nos torna melhores, tão longe de nossa realidade, é algo a ser almejado pelos conservadores, a escola é um ponto de transformação do ser, ou de restauração do ser, há um engano, quando se prega socialização, mas os resultados surgem em uma individuação hiperbólica, algo não está certo.

II

Acabamos de refletir sobre os três princípios necessários ao estudo, a saber, natureza, exercício e disciplina, como conclusão, farei mais algumas considerações, aproximando-se dos dez princípios do conservadorismo de Russel Kirk.

Se há uma ordem moral duradoura essa tende a ser algo natural no ser humano, o respeito aos nossos predecessores e as nossas convenções, requer uma ordem permanente, querer mudar nossa natureza, cria danos em nossas estruturas, mesmo em coisas aparentemente manipuláveis, vemos nossa pequenice, sair da parte para o todo, acaba sendo o melhor meio para educar, sem conhecer o alfabeto não conseguiremos ler, se tivermos dificuldade em tabuada, teremos posteriormente em situações de cálculo que exijam interpretar o cálculo. Na própria natureza percebemos o princípio do bottom-up.

Não há continuidade, se não entendermos o que se continua e qual o fim do caminho, ora, vimos que há uma tendência de se deixar o exercício enfadonho e repetitivo (criar uma noção inconsciente de que a continuidade é ruim?) para uma educação que se apoia no espontâneo, ou em socialização momentânea e não mudança substancial em aspectos volitivos do ser. Renegamos o saber e os valores morais que nossos antepassados nos legaram, caindo, não raro no vazio, e negando o vazio, pois o discente se acostuma a tudo negar, sobretudo o que desconhece.

Perde-se a humildade, acredita-se no conhecimento prévio, valoriza-se em demasia produções simples (não desmotivar o aluno), não se reprova (não desmotivar o aluno), não se cria maneiras de fazê-los refletir sobre seus atos negativos, uma educação permissiva. Sem disciplina.

Esses princípios educacionais levaram anos, Hugo de São Vitor ao refletir sobre eles, já está em uma exposição didática, ou seja, não surgem repentinamente no século XI, e a substituição deles também se deu de forma paulatina, mas ainda há resquícios, pois são naturais, professores, que lerem esse texto, até leigos verão, que, mesmo em latim, lá estão palavras que usamos até hoje como exercício e disciplina, mas que além de usar, geram problemas educacionais. Tal ocorre por que formas negadas, e nada de razoável ainda ocupou seu lugar, basta vermos nossos dados educacionais e de violência.

A Didática deve pensar no ensino, não centrar ora no aluno, ora no professor; deixar de lado aspectos ideológicos, quando se insiste em tudo que se pode imaginar que fuja a normalidade do exercício e da disciplina vira uma regra, há ideologia subjacente, querer o trabalho coletivo sempre, não seria uma forma de trazer um conceito de que só o coletivismo funciona? Não haverá senso de continuidade se não houver objetivo na direção, não adianta escondê-los, pois obscurece o próprio ensino.

Boa parte dessa tradição perdeu-se em razão de paixões, criaram uma verdade e mudaram abruptamente a educação, usando da paixão e do sofisma, retomar tais princípios talvez seja um passo mais recatado, mais singelo, porém se tivermos uma geração que esteja preparada para o estudo e educadores que queiram antes que seus alunos estudem para a vida do que para a ideologia que eles pregam, teremos talvez um país melhor e mais justo, um pais mais próximo da mente de Deus, ou melhor, da perfeição.

(Ricardo Gomes Pereira – 2020 )

[1] – Se primeiro o alfabeto tivesse desprezado, agora não estaria no estudo da gramática.

COSENZA, Ramon M. neurociência e educação: como o cérebro aprende trad.: Leonor Guerra – Porto Alegre: Artmed, 2011.

HUGO de São Vitor: didascalicon – sobre a arte de ler trad.: Roger Campanhiri – Campinas, SP: Kírion, 2018.

RICARDO, Pe Paulo: christo nihil praeponere: os dez princípios conservadores in:

https://padrepauloricardo.org/blog/os-dez-principios-do-conservadorismo acesso em 04/05/20.

KIRK, Russell: The Conservative Mind – Washington D.C., Regnery Publishing, Inc.: 2001.