A donzela "roubada"
 
          A manhã daquele domingo 19 de outubro de 1975 surgiu com sua áurea inundando de magnificência a beleza do amanhecer, e com ele o surgimento da pomposa esperança advinda nas aureolas de seu fulgor. Esperança de uma vida conjugal para o agatoide sertanejo e sua prenda cor de jambo. Aquela manhã que parecia contemporânea a tantas outras que passara ali no Pau-Ferro, tinha um algo a mais, um quê de diferente, talvez por ser o último alvorecer que passaria solteiro.

            Todos acordaram logo assim que o despertador do sertão cantarolou seu cântico em cima do mourão da cerca de arame farpado chamando os outros galos para cantarem o alvorecer daquele novo dia. Dona Bisanta, ainda meio que sonolenta, arrastando as alparcatas foi em direção do quarto de Maria e a chamou para ajudá-la no preparo do café matinal, enquanto Carlos e seu Denísio, como habitualmente faziam se levantaram, banharam o rosto, e após tomaram o desjejum seguiram assim para a roça. A lavoura de mandioca, fava, feijão de corda consorciado com o milho estava quão plena de fazer gosto aos aguçados olhos do sertanejo. Quincas foi o nome dado por dona Bisanta ao 'jegue serviçal” que os ajudava trazendo nos caçoás presos ao seu dorso, o milho, a mandioca, a catada de fava e de feijão de corda, todos para uso exclusivo e consumo da família.

            Ao regressarem do campo, logo tomavam a direção das cabras, pinicaram as raquetes de palma para alimentá-las, e buscavam água na cacimba para dar de beber, soltando-as em seguida no aberto campo da liberdade, somente à tardinha é que eles as recolheriam de volta ao chiqueiro. O domingo, que para muitos seria um dia de folga da rotina semanal, coisa que não existe para o homem do campo, fora um dia de labuta como outro qualquer. Transcorria o seu percurso de forma comum, sem nenhuma alteração ou contravenção. Quando chegou a noite, não acenderam a peculiar fogueira para aquecerem os corpos e espantar o frio, além de colocar a prosa em dia.

            O fato de ser uma noite de domingo, dia que antecedia ao dia de feira, todos precisavam ir para a cama logo cedo, pois também logo cedo teriam de acordar para desenvolver dos afazeres antes de seguirem para a feira na cidade de Frei Paulo.

          Dona Bisanta e seu Denisio adentraram na casa, apagaram o candeeiro da sala, foram até o pote da cozinha beberam uma caneca d’água cada um, e por fim apagaram o candeeiro, seguindo depois direto para seu quarto. O mesmo fez a jovem Maria e o bravo sertanejo Carlos, cada um em seu respectivo quarto, por enquanto. Além da fumaça do candeeiro fazer mal pra respiração, a escuridão da noite contribuía para conciliar o sonho. Passado alguns minutos depois de terem se deitado, já dava para ouvir os roncos, tanto de dona Bisanta quanto de seu Denisio que, estavam completamente entregue nos braços de morfeu.

          É na calada da noite que acontecem coisas!! Carlos e Maria fingiam dormirem deliberadamente, e até emitiam roncos para transparecer estarem em sono profundo, puro fingimento.

            O jovem sertanejo foi o primeiro a aperceber-se de que os pais de Maria estavam dormindo profundamente. Saiu na ponta dos pés do quarto na qual ele deveria está dormindo, indo até o quarto onde a sua bela amada estava. Quase estragou tudo, foi a muito custo que conteve a emissão de susto, quando ela abriu a porta no exato momento em que ele iria empurrar para ver se estava trancada por dentro. Os dois enamorados fugitivos saíram silenciosamente pela porta da cozinha, deram a volta por detrás da Casa de Farinha, e tomaram o rumo da estrada que os iria conduzir até a cidade de Frei Paulo. Não sabiam ao certo se era meia noite e meia, ou uma hora da manhã, talvez. O fato é que se encontravam num verdadeiro pandemônio emocional, entre o êxtase de felicidade e o nervosismo de serem descobertos, a qualquer momento com a “boca na botija”. E mesmo tendo pela frente cerca de dezoito quilômetros que teriam de percorrer a pé para chegarem até a cidade, não representava nada diante os seus propósitos em busca da tal felicidade.

            O dia ameaçava despertar no alvorecer quando, após longa e extenuante caminhada por dentre matas e aclives, por fim chegaram até Frei Paulo. Os primeiro transportes, ou seja, o Pau-de-Arara e a Kombi ainda estavam a se organizar, juntando passageiros daqui e dali para seguir viagem até Carira.

          O jovem casal tinha bastante pressa em sair logo dali e chegar o mais rápido possível em Carira. Estavam temerosos que viessem ao seu encontro quando derem por falta dos dois. Não se sabe se o acaso, ou mais uma vez a mão de Deus intervindo em seu favor, colocando em seu caminho um caixeiro viajante com seu próprio transporte. Carlos se aproximando dele perguntou se iria para Carira e quanto cobraria para levar ele e sua esposa.

– Entrem aí, e se não se incomodarem de irem junto à mercadoria, vamos embora. Lá você me dar uma gorjeta. – Falou o caixeiro para Carlos.

– Pode deixar seu moço, qui nois vamo se arrumar por aqui. Confirmou o jovem sertanejo adentrando dentro da Kombi, conduzindo a sua amada pela mão.

            Em meio às bugigangas de variadas espécies, redes, cobertores de retalho, cestos de cipó, e bacias de frande, o jovem casal seguiu dali até Carira dentro daquele cubículo apertado pelas mercadorias. Um péssimo local para passarem, o que seria as núpcias que não existiu, pelo menos naquele momento. E depois de muito sacolejo, daqueles que fazem o estomago revirar dentro da caixa do tórax, enfim chegaram até a feira de Carira.

            A cidade fervilhava com gente andando de um lado para outro, carroceiros em sua "louca correria" levando um frete, com olho em outro. Um verdadeiro pandemônio em meio a tantos transeuntes, mulheres com suas bolsas de palha, sempre pechinchando o preço das verduras e legumes, os feirantes gritando feitos loucos, mais preocupados em fazerem um bom negocio, de que qualquer outra coisa.

          A feira estava demasiadamente movimentada naquela segunda feira, 20 de outubro de 1975, Carlos e sua “esposa roubada” estavam a fazerem o que seria a sua primeira feira de casados, e assim faziam as compras como a "rapidez do relâmpago". Ele não pretendia ser pego em flagrante, com o “produto do roubo a tiracolo", e como no sertão as noticias se espalham feito rastilho de pólvora, aquela altura, Seu Denisio e Dona Bisanta já haviam se dado conta de que ele a tinha “carregado a jovem”. Agora digam, onde já se viu roubar alguém que quer ir junto? “Causos do sertão”.      Adquiriram na feira os suprimentos necessários que puderam comprar, para a subsistência do casal. Depois seguiram até o ponto dos caminhões, colocaram as bagagens e as compras em cima do primeiro "Pau-de-Arara", e ficaram aguardando à hora de partirem para a Pedra Grande.

          Quando arquitetou o plano de “carregar a beldade" que atendia pelo nome de Maria, o bravo curiboca teve o bom senso, de antes, ter deixado recado com seu José Francisco para que ele avisasse seu irmão Tequinha, deixando também, um acerto firmado com seu João Gonçalo, proprietário da Fazenda Pedra Grande, trabalho e moradia. Seu Gonçalo, um rico fazendeiro integrante de uma família com muitas posses, era de baixa estatura e media apenas um metro e sessenta de altura, e sua pele era quão clara quanto à neve. Sofria de uma pequena deficiência nas mãos que eram atrofiadas. Diziam que foi devido a um mau vento que passou nele quando era criança.      O acerto foi de trabalhar para seu Gonçalo em sua Fazenda Pedra Grande. Aliás, fora essa fazenda que originalizou o nome daquela comunidade” – desde que também tivesse uma casa onde morar.

          A casa cedida pelo Sr. Gonçalo ficava situada um pouco afastada da casa sede, mas localizada nas terras da própria fazenda, sendo que do lado oposto da Pedra Grande, contrário ao lado em que morou na casa cedida pelo Seu José Francisco. Não se podia dizer que aquela casinha oferecida pelo Seu João Gonçalo era bem uma casa propriamente dita, pois possuía apenas dois cômodos, divididos em quarto e sala. 

            Os poucos cruzeiros que a muito custo conseguira economizar, mal deram para adquirir alguns poucos móveis, e não seriam suficientes nem para construir um quartinho, o caso era se conformar e acomodar-se da melhor forma que pudessem. E no momento o melhor lugar do mundo seria ali, naquela casa minúscula, que apesar de sua aparência rústica e não parecer atrativa, a “casinha de tijolinhos de barro", untados a areia e cimento tarnar-se-ia o seu novo lar.

          A jovem flor morena que ainda mantinha pueril o seu nécta adentrou na casa e percebeu o quanto estava bem arrumada. Colocou a sua bagagem sobre um banco com pés de forquilha, abriu a porta dos fundos e a janela lateral para que o sol da manhã entrasse, e a brisa do sertão arejasse o ambiente. Na sala, além do banco, havia uma mesa feita de madeira de mandacaru, e quatro cadeiras, no quarto uma cama, a cozinha ficava fora, nos fundos da casa, o fogão constituía-se de uma trempe de três grandes pedras. A mobilha era singela, mas bem organizada e aromatizada com as fragrâncias do afável amor de Carlos, que se encontrava extremamente feliz nequela ocasião.

          E quanto à bela Maria, como será que estava se sentindo? Estaria ela se perguntando qual o próximo passo que o destino lhe reservava? Qual a sua idade? Vinte anos? Vinte e um anos? Ela não podia ter mais que vinte e dois anos, mas com certeza não se agastava com isso, estava convicta de querer viver na companhia do homem ao qual escolhera para ser pai de seus filhos. Iria se entregar nos braços de seu amado e dividiria com ele as alegrias, as labutas, os momentos de felicidade, e quanto às dificuldades, por ventura viessem bater-lhe a porta, driblariam como o jogador dribla seu oponente, e isso lhe bastava, coisa do amor. Quando se está apaixonada, deixa-se de ter o controle de sua vida, já que seu coração e sua mente pertencem á outra pessoa, neste caso, Carlos. Agora se encontrava ali, com seu amado naquela pequena casa de “tijolinhos”, dividida em apenas dois cômodos, e no meio dela, um canteiro plantado com as flores do coração, onde colhiam pétalas de felicidades.

          A noite de núpcias fora de grande intensidade deixando-os ofegantes, num barco a deriva no mar do amor, naufragando no infinito oceano da paixão. Quando o alvorecer do dia seguinte fora anunciado pelo cantar do galo, eles despertaram para a nova realidade, se levantaram ainda meio que sonolentos, banharam o rosto numa pequena bacia de alumínio que Maria havia comprado na feira de Carira, e trataram de cuidar dos seus afazeres, sabendo eles de que a vida não era feita só de amor, mas também existia o trabalho e a luta diária pela sobrevivência.  
 
         Carlos fora buscar lenha na mata ao lado da casa, enquanto Maria preparava a massa do cuscuz. Após deixar a lenha na trempe de pedra, ele deixou aos encargos de sua jovem esposa, a tarefa de acender o fogo e preparar o primeiro café da manhã juntos, seria o primeiro  desjejum de muitos e muitos anos juntos.


          O jovem sertanejo partiu para o primeiro dia de labuta na Fazenda Pedra Grande, exibindo um largo sorriso de felicidade tatuado em sua face, e uma ávida vontade de voltar logo. O dia não era um dos mais quentes, o que amenizava o desgaste e sofrimento do homem que trabalhava no campo. Carlos estava agora trabalhando de vaqueiro, e a primeira tarefa matinal atribuída ao vaqueiro era justamente prender os bezerros, para em seguida ordenhar as vacas. Ele, enquanto vaqueiro tratava no manuseio com o gado, sendo responsável pela boa alimentação dos animais, levando-os para beber água no açude, e para pastar nas verdes pradarias da Fazenda, sendo esse o seu cotidiano dali pra frente.
Marcos Antônio Lima
Enviado por Marcos Antônio Lima em 28/12/2017
Reeditado em 11/01/2018
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