A universalidade da semiformação e o barateamento da cultura

Segunda parte dos comentários ao texto “Teoria da Semicultura” de Theodor W. Adorno

Quando Adorno afirma, numa passagem já citada, que a semiformação se tornou em nosso tempo a “forma dominante da consciência atual”, é grande a tentação para acusa-lo de fazer, desse modo, uma generalização arbitrária que não condiz com o que se pode verificar na prática. Reconhecendo essa possibilidade e já antecipando a resposta a tal ressalva, Adorno diz:

"Tudo isso, certamente, é bastante ousado. Mas é próprio dos estudos teóricos que não coincidam imediatamente com os dados das pesquisas, que se exponham a isso, que avancem em excesso ou que — segundo a linguagem da pesquisa social — se inclinem para falsas generalizações [...]. Sem aquele ousado exagero da especulação, entretanto, sem o momento inevitável da falsidade na teoria, isso nunca teria se tornado possível: ela se contentaria a ser mera abreviatura de fatos, deixando-os inassimilados, aquém do científico. (1996, p.9 – tradução modificada)"

Evidentemente, Adorno não acredita em uma absoluta universalidade da semiformação como o modelo formativo de todo homem ocidental independentemente da sua classe, nacionalidade, instrução, etc. A universalidade da semiformação se dá de maneira diferente: mesmo não abarcando a totalidade da sociedade, a semiformação passou a ser o paradigma formativo do capitalismo tardio. Nas palavras de Adorno, essa universalidade diz respeito a “um espírito que determinaria a marca da época mesmo se tivéssemos que restringir quantitativa e qualitativamente o âmbito de sua validade” (Adorno, 1996, p.10 – tradução modificada). Trata-se portanto de uma universalização metodológica que não pode ser entendida como a afirmação de que a formação foi extinta e que agora a semiformação é a única realidade possível.

Uma outra ressalva que poderia ser feita às teses de “Teoria da Semicultura” é a de que o autor critica a divulgação em massa dos bens culturais (música erudita no rádio, livros de filosofia em edições de bolso, a ciência em revistas de curiosidades, etc.) por um viés elitista, negando o caráter democratizante dessa divulgação. Primeiramente, Adorno refuta essa ideia negando o dito caráter democrático da divulgação em massa e classificando-a como “uma ideologia comercial pseudodemocrática” (Adorno, 1996, p.18 – tradução modificada). A ideia é a de que por trás dessa “democratização”, os bens culturais são amputados de maneira substancial. O barateamento da cultura denegera a cultura. Os bens culturais já não têm mais valor por si mesmos, mas são cuidadosamente adptados ao “consumidor”. O caráter de mercadoria assumido pela cultura, sua transformação em fetiche, exaure-a de substância. A semicultura é isto: a cultura “apropriada pela metade”, que, quando absorvida subjetivamente como semiformação, acaba por bloquear o acesso à cultura em seu sentido pleno. Por isso a crítica de Adorno é apenas aparentemente elitista, porque o que ela busca é justamente mostrar que a dita democracia no acesso à cultura não só não corresponde a um fenômeno que se possa chamar verdadeiramente de democrático, mas também oferece, no lugar de uma cultura e formação propriamente ditas, apenas pedaços vazios e deformados destas. Não se trata, porém, de um sentimento nostálgico em relação a um passado idealizado no qual a Cultura tenha florescido em todo o seu esplendor. Para o Adorno o fundamental é que o pensamento não se acomode à pseudodemocratização e esforce-se por compreender também o caráter regressivo que o fenômeno comporta.

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor W. “Teoria da Semicultura”. Tradução de Newton Ramos-de-Oliveira,

Bruno Pucci e Cláudia B. M. de Abreu. Revista “Educação e Sociedade” n. 56, ano XVII, dezembro de 1996, pág. 388-411. Tradução revista por Verlaine Freitas, inédita.

FREITAS, Verlaine. "A dialética negativa da cultura". Inédito.

FREUD, Sigmund. “Psicologia de grupo e análise do Ego”, 1921. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 18, 2006.

FREUD, Sigmund. “Sobre o narcisismo: uma introdução”, 1914. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 14, 2006.