CATALÉPTICOS

Sob a sombra de um dendezeiro, pernas esparramadas na grama rala, o pensamento embaçado pelo tempo traz a imagem de um Arauto Celestial na longínqua noite plúmbea, tinindo escandalosa trombeta na minha janela, com uma Ordem Divina: “Defiro a Medida Protetiva, mantenha-os distantes 30 km.” Excitou-me a nomeação para exercer o cargo de guardião dos sentimentos alheios, os de Écio contra os de Berenice, ainda sequer conhecida, incognitude que me fez caricato vigilante de bairro abstrato, percorrendo ruas com o vigiado preso às tranças das poesias que eu tecia, evitando sua fuga ou a insuspeita presença dela, imaginada como uma hermética embalagem de desejos.

Em uma clara manhã, em uma rua de barro, de raras casas, altiva, ela surgiu diante dele, superando a imaginação. Ficaram ali hipnotizados, não fossem os toques das mãos, quase monásticos. Diante dessa invasão não consentida, da ameaça persuasivamente rechaçada e a inconvincente conformação estampada nos seus rostos, realçada por manifesta barreira, expressada pela vida que cada um vivia, vitorioso, depus as armas, comemorando a incolumidade dos domínios daquela órbita sentimental.

Significativas circunstâncias da vida mantiveram essa distância por longo tempo viva no limbo das suas inconsciências, vislumbrando lampejos desse predestino e imaginando venturas inauditas. Era como se na prova da vida dela, houvesse uma questão não respondida, já na segunda metade do tempo de escrutínio. Sentimentos em estado cataléptico, recusando qualquer catarse para superar a mútua ausência. Desejavam-se sem medo, anelavam uma regressão nos recônditos das suas memórias, resgatando parcos, mas indizíveis instantes desse arrebatamento. Ele era a resposta da questão em branco, o giz da lousa dela. Ela era a adrenalina, o entorpecente predileto dele.

Eu tinha cumprido a Ordem Divina com sobejos, até dilatando a distância determinada mas, em uma clara tarde, em uma rua de barro, de raras casas, o reencontro. A adoração antes em penumbra, revelou imensa felicidade, o enigma reluziu pleno nos olhos, nas faces, inundando todos os espaços do ambiente, ressurgindo ecos quase perdidos, intactos, proibidos, acalentados com a paciência de um monge budista tibetano...

Vencido, depus as armas, pela cristalina violação da incolumidade dos domínios daquela órbita sentimental, quando a voz Dele bradou: - Onde estão? reprise da bíblica pergunta, respondida no contexto: - Porventura sou eu seus guardadores? Replica: – Dos sentimentos, sim. Recrudesci a vigilância urdindo infalível estratagema, tramando injuriosamente com os que habitam nos insondáveis subterrâneos da maldade. Novamente catalépticos. Contra si lutaram e esse foi o equívoco. Medo de esticar os braços e abraçar o nada, de procurar em vão na miríade do céu a estrela favorita, que se escondeu...

JOSE ALBERTO LEANDRO DOS SANTOS
Enviado por JOSE ALBERTO LEANDRO DOS SANTOS em 29/11/2016
Reeditado em 06/02/2019
Código do texto: T5838594
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