HOJE EU TIVE UM SONHO

Despertei de manhã numa euforia sem precedentes. Radiante de alegria, impregnado de agradável sensação de bem estar e elevada autoestima, sentia-me feliz e amado pelos meus familiares, retribuindo-lhes a estima com muito afeto. Envolto nessa bruma de emoções à flor da pele, tal criança ao ganhar um brinquedo, tive o ímpeto de saltitar pela rua proclamando minha exaltação. Superando todas as metas do dia, a produtividade no trabalho foi excelente, bem acima da média, sem entraves ou estresse. Nutrindo a impressão de ter “lavado a alma” na noite passada, exorcizado todos os demônios e resolvido todos os problemas, procurei acessar na memória a lembrança de algum sonho bom, mas não consegui, permanecendo apenas os efeitos da bem-aventurança.

O ofício laboral que exerço permite ao intelecto uma liberdade capaz de engendrar esporadicamente conceitos e raciocínios filosóficos sobre a vida do ser humano. Deslumbrado pela incidência repentina dessa mudança brusca de humor, sem causa aparente, elaborei uma tese sobre o ocorrido vasculhando o cabedal de conhecimentos armazenado ao longo dos anos.

Michael Shermer em seu livro “Cérebro e Crença” elucida algumas ligações neurais ocorridas no cérebro. Vejamos: “Entre as várias funções desempenhadas pelo cérebro, a principal é fazer o corpo funcionar e ajuda-lo a sobreviver. Uma maneira de fazer isso é pelo aprendizado por associação, ou padronicidade. Por ela se dá a ligação dos potenciais de ações neuronais com a ação humana. O cérebro é constituído de cerca de 100 bilhões de neurônios de centenas de tipos, cada um deles contendo corpo celular, axônio, numerosos dendritos e terminais axônicos que se ramificam para outros neurônios em aproximadamente mil trilhões de conexões sinápticas entre essas centenas de bilhões de neurônios. Entre os neurônios há um espaço ou fenda denominada sinapse. Quando um neurônio é excitado, se utiliza de substâncias químicas transmissoras, disseminando através de conexões sinápticas, um processo eletroquímico de potenciais de ações neuronais. Quando o potencial de ação de um neurônio percorre o axônio e atinge as terminações, libera na sinapse minúsculas quantidades dessas substâncias. Uma dessas substâncias é a dopamina, responsável em produzir a sensação de prazer que acompanha a realização de uma tarefa ou de um objetivo, o que faz o organismo querer repetir o comportamento. Fundamental no sistema de recompensa no cérebro condiciona o corpo a querer repetir o comportamento para obter outra recompensa positiva. Na verdade, a dopamina parece alimentar o chamado centro de prazer no cérebro, que está envolvido na “euforia” derivada tanto da cocaína quanto do orgasmo”.

Penso que as conexões sinápticas ocorridas durante a liberação da dopamina estão associadas às sensações de felicidade, quando somos acometidos de grande regozijo e contentamento ao atingir um objetivo ou a conquista de algo muito desejado. Como os neurônios trabalham no sistema de recompensa, somos induzidos a uma busca constante de realizações e conquistas, na expectativa de receber um prazer no final. Pode se ligar. É só observar o comportamento das pessoas para a comprovação desse fato. Vivemos em busca da felicidade plena, mas como nem sempre é possível, nos satisfazemos com pequenos prazeres. O prazer da conquista da pessoa amada, a compra da casa própria, o carro zero quilômetro, o diploma universitário, a promoção tão esperada, e assim tantas outras que advém durante a existência. Alcançando um desses objetivos, o prazer é fugaz. A rotina do dia a dia lentamente o corrói, habituando-nos à conquista, perdendo assim o valor que tanto almejáramos. A pessoa amada já não é tão bela quanto à mulher do chefe, o carro do vizinho é mais moderno, a casa poderia ser num bairro nobre, e por aí vai... Rapidamente estamos insatisfeitos com os objetivos conquistados e entramos de cabeça na busca de outros. Lembrando que a essas conquistas geralmente vem embutido um pacote de problemas que só descobriremos posteriormente, e o que fora tão prazeroso, pode assim trazer problemas, e alguns muito graves.

A efemeridade da vida, a luta pela sobrevivência, doenças, problemas familiares como a irresponsabilidade dos filhos, às vezes na marginalidade, conflitos existenciais, falta de segurança, o bombardeio diário de anúncios do consumismo atingindo-nos com o objetivo de criar necessidades, tornam-se um fardo pesado demais para nosso psiquismo. Embora exista quem não sinta esses efeitos, todos, em algum momento da vida, uns mais outros menos, experimentam sofridas experiências causadas por tribulações aparentemente insolúveis. Quantas vezes circunstâncias intrincadas nos impeliram ao fundo do poço, sem esperança de encontrar uma tábua de salvação? Certamente esses sofrimentos se findam, assim como o prazer das conquistas, mas enquanto estivermos sem saída, nosso penar é muito doloroso.

A estrutura fisiológica do corpo humano é demasiadamente frágil para suportar o desgaste ocorrido durante a vigília. É necessário um período de descanso para repor as energias consumidas durante as atividades cotidianas. Por isso sentimos sono. A restauração ocorre enquanto dormimos, cessando as atividades fisiológicas, permanecendo apenas a manutenção das funções vitais. Não é possível evitar o sono, nem dominar ou impor-lhe regras. Cada pessoa tem seu relógio biológico que regula o horário e a quantidade de sono necessário. Há quem consiga protelar ao máximo, mas chegará o momento que sucumbirá diante da sonolência. Somos agraciados com essa bênção, pois a vida seria insuportável sem as benesses desse descanso. Se ficássemos 24 horas acordados com certeza impor-nos-iam um aumento em nossa carga horária de trabalho, obrigando-nos a aumentar os lucros e o patrimônio dos detentores do sistema.

Durante o sono, cessando as funções fisiológicas, o cérebro continua em atividade realizando um backup, repaginando ou alterando as configurações sobre os acontecimentos das últimas 72 horas. Como um computador, ele faz uma varredura na memória, deletando ou mandando para a lixeira arquivos insignificantes, salvando ou atualizando dados que julgar necessário e colocando na área de trabalho informações importantes e de fácil acesso.

Ansiedade, fracassos, frustrações, medo, perda, ira, ódio, rancor, falta de perspectiva, depressão, são algumas das nuanças que determinam o teor dos sonhos de uma pessoa. A instabilidade psicoemocional terá forte influência no tipo de atividade executada pelo cérebro durante o sono. Aí está, penso eu, a origem dos sonhos, sejam eles pesadelos ou bem aventurados, trágicos ou felizes, intuitivos ou premonitórios. Enquanto dormimos, os neurônios trabalham com mais liberdade para solucionar ou amenizar as consequências da aflição, mitigando o desconforto e aumentando a disposição e a motivação para o enfrentamento da crise que nos atinge. O velho ditado popular já dizia no tempo dos meus avós: nada como uma boa noite de sono para desligar-nos momentaneamente do problema e apontar a solução no dia seguinte.

Se a função primária do cérebro é fazer o corpo funcionar e ajuda-lo a sobreviver, após uma sequência de insucessos e decepções quando o desengano predomina em nosso psiquismo, o potencial de ação dos neurônios que trabalham no sistema de recompensa, brinda-nos com uma noite de sonhos benfazejos, liberando na sinapse a dopamina responsável em produzir a sensação de prazer, mantendo-nos temporariamente envolto nessa agradável euforia, amainando a carga deletéria dessa densa nuvem negra que paira sobre nossas cabeças, suavizando seus efeitos negativos, fortalecendo-nos e dispersando as sensações de impotência e frustrações para que possamos enfrentar a crise com mais ânimo. Funciona como um oásis em meio a um deserto, restabelecendo a força nessa casa de máquinas que é nosso cérebro.

Genézio de Abreu Martins
Enviado por Genézio de Abreu Martins em 19/02/2016
Código do texto: T5547949
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