A FORMIGA TRABALHA PORQUE NÃO SABE CANTAR

Diante do monitor do computador, enquanto escrevo minhas crônicas, ouço música no fone de ouvido durante a digitação. Gosto muito de ouvir Raul Seixas. Faz-me reviver a adolescência, período de autoafirmação e descobertas, quando curtia apenas a melodia e seu jeito extravagante de cantar, sem compreender o conteúdo filosófico de suas canções. Fixado no tema em desenvolvimento ouço o verso: "A formiga só trabalha por que não sabe cantar". Já ouvira milhões de vezes, mas agora resolvi produzir um texto sobre o tema.

A fábula da formiga e a cigarra nos passa a ideia de sermos previdentes dos percalços da vida humana, abastecendo os celeiros enquanto podemos, através do trabalho, como forma de garantirmos a sobrevivência durante o inverno da existência. Nada contra a moral da história, mas há tempos a sociedade deixou de ser formada de colonos que tiram de pequeno pedaço de terra o sustento de suas famílias. O camponês mudou-se para os centros urbanos e as áreas rurais passaram a ser administradas por grandes produtores que, implantando um sistema empresarial, transformou o campo num agronegócio, inviabilizando qualquer possibilidade de cultura de subsistência, prevalecendo apenas os grandes monopólios. O capitalismo, por sua vez, não permite investimento a fundo perdido e obriga a produção agrícola a se tornar um negócio rentável, visando apenas e unicamente o lucro.

Os aglomerados urbanos exige que o cidadão seja suficientemente produtivo, condicionando-o a trabalhar de sol a sol, tal operário de grande fábrica multinacional, como única forma de angariar recursos capazes de custear suas necessidades. Na cidade o que se usa ou consome depende do vil metal. Não existe nenhuma possibilidade de produzir algo para o consumo. Tudo depende de dinheiro e dinheiro só se adquire com trabalho, salvo os corruptos e especuladores.

Atualmente não faz diferença viver no interior ou na metrópole, pois a cultura do consumismo, esse monstro do Capitalismo, predomina em todo lugar, principalmente por influência da mídia nesse período de globalização da informação proporcionada pela tecnologia eletrônica, como a internet.

É preciso saber viver e viver custa caro, principalmente na atualidade, quando somos obrigados a suprir necessidades básicas de consumo que estão disponíveis no mercado, como eletrônicos com sinal digital, aparelhos de comunicação de última geração, sistema de segurança com imagens em HD, veículos automotores sofisticados, quase totalmente automatizados, medicina ultramoderna com alta tecnologia em diagnósticos e tratamento, além de tantos outros pequenos produtos de uso diário.

Recentemente, enquanto tomava uma cerveja num happy-hour com um amigo biólogo, quando levantei a questão da fábula da cigarra e a formiga numa prosopopeia da vida humana, rebateu-me afirmando serem espécies diferentes, a desempenhar atividades na natureza conforme a evolução, sem possibilidades de comparações, e que o homem, dotado de inteligência, se quiser, tem a capacidade de mudar essa realidade dependendo apenas de sua vontade.

A ciência classifica o homem como animal entre as espécies que vivem na terra, diferenciando-o pela capacidade racional que possui, sem deixar de ser animal. Nos primórdios da evolução, não trabalhava, apenas coletava na própria natureza o necessário a sua sobrevivência. A partir do momento que passou a viver em comunidade, precisou cultivar seus alimentos e produzir seus próprios utensílios. Daí em diante, sua "inteligência" foi escravizando-o cada vez mais ao trabalho. Aos cinco anos de idade matricula-se a criança na escola, algumas em tempo integral, estudando por quase vinte anos e tendo como único objetivo a capacitação profissional para o mercado de trabalho. Antes da diplomação, exercita como estagiário na especialidade de seu curso, para a devida adaptação à profissão que irá desempenhar por mais de trinta anos de sua existência. Tal um PC, teve seu intelecto moldado a desempenhar apenas a função específica da formatação. O conhecimento unilateral não o preparou para viver intensamente sua vida. Tem os sentimentos, as emoções, os prazeres, as aspirações e os sonhos direcionados unicamente na realização profissional. Busca diariamente e a qualquer preço, a prosperidade, a evidência, o poder, a notoriedade, anulando seu maior bem, que é o amor pela vida, pelas pessoas. Na rua, no supermercado, no Shopping, na faculdade, na balada vivemos rodeados de gente e, no entanto estamos sós. Cuidamos somente de nós, de nossos negócios, do que nos interessa sem nos preocuparmos com quem está ao nosso lado, sem ao menos olhar em seus rostos, evitando qualquer tipo de contato ou aproximação na intenção de nos preservarmos de um consequente contratempo que essa atitude possa provocar.

Não faço apologia à vadiagem e a vagabundagem. No atual contexto da sociedade humana, é impossível viver sem trabalho. Seria utopia acreditar nessa possibilidade e um retrocesso na evolução da raça humana. Se a formiga só trabalha por não saber cantar, penso que deveríamos reaprender a cantar, ao menos no banheiro, como no princípio da civilização.

Genézio de Abreu Martins
Enviado por Genézio de Abreu Martins em 16/02/2016
Código do texto: T5545627
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2016. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.