LER PARA CRER

“Neste momento estou a ler um livro que li pela primeira vez quando tinha 14 anos. Fiquei bastante surpreendido porque o achei muito pior do que o que me lembrava, e cheguei mesmo a alvitrar a hipótese de haver dois livros com o mesmo título e do mesmo autor de qualidade completamente diferente. Já não consigo aceitar o que leio de uma forma tão crédula como costumava”. (Livro - Cérebro de Broca – Carl Sagan)

Afeito a leitura desde a infância, lendo tudo que surgisse a minha frente, desde bulas de medicamentos a panfletos religiosos, estive sempre antenado às transformações e acontecimentos ocorridos no mundo. A cada livro devorado, outro deveria ser lido, como se a literatura universal fosse escrita em capítulos e continuasse nos volumes posteriores. Li a Bíblia da primeira à última página umas três vezes. Li o livro dos Mórmons, os fundamentos da Umbanda, do Candomblé e seus orixás, enciclopédia Barsa, Delta, Larousse, e estudei por quinze anos quase todas as obras da literatura espírita. Os cinco livros básicos da codificação de Allan Kardec, perdi a noção de quantas vezes foram lidos. Li boa parte da literatura brasileira, com seus poetas, contistas, romancistas, cordelistas, cronistas, além de muitos autores estrangeiros, porém, nos últimos anos, influenciado por um amigo, interessei-me pelas obras dos grandes filósofos.

O hábito da leitura despertou-me o desejo de buscar a cultura excedente que não obtinha na escola, esclarecendo minhas dúvidas e questionamentos num período obscuro da humanidade por não oferecer as facilidades que dispomos hoje de informações instantâneas como na internet.

A cada obra lida, sentia-me elevado um degrau acima, alimentando minha sede do saber. O tema fervilhava por um tempo em minha mente, num desejo incontrolável de reescrevê-lo, adaptá-lo ou revisá-lo, acatando fielmente a ideia do autor como verdade verdadeira, inquestionável e única.

Com o passar dos anos a capacidade de assimilação e compreensão de texto expandia-se, culminando numa interpretação refinada capaz de esmiuçar o recôndito do pensamento do autor. O censo crítico agora mais apurado, mais seletivo, aferia de forma rigorosa o teor contido nos exemplares escolhidos, classificando títulos que poderiam oferecer boa leitura daqueles vazios de conteúdo. Lentamente adquiri embasamento suficiente para analisar criteriosamente obras e autores, até descobrir que a ideia abarcada numa obra elucubrava apenas o ponto de vista do escritor, existindo outras correntes de pensamentos, às vezes bem contraditórias, suscitando mais dúvidas que respostas. Confuso oscilava entre uma e outra, sem saber em qual acreditar. Na indecisão não conseguia esboçar um fio único de pensamento que norteasse a concepção do existir, numa sociedade banalizada e arraigada pela ignorância. Por que as pessoas não buscavam conhecimento, se o saber esteve sempre ali tão próximo e ao alcance das mãos, bastando apenas alguns minutos diários de leitura? No entanto, preferiam ser guiados por outras mentes que lhes impunham ideias, regras e limitações, algumas absurdas, fundamentadas basicamente em superstições e suposições cientificamente hipotéticas, aceitando docilmente e sem questionamentos o aguilhão desse axioma dominador. Mesmo quando fui prosélito de uma confraria, mantive-me pelos flancos, sem compartilhar inteiramente dos ideais do grupo, buscando sempre um paralelo com outras correntes de pensamento, provocando longas e intermináveis polêmicas. Alcunharam-me de rebelde, cético e visionário.

Graças à boa vontade desse amigo, convidamos algumas pessoas e criamos um singelo grupo de estudo de filosofia, reunindo-nos por algumas horas, um dia na semana, durante três anos. Dos participantes que iniciaram o estudo, somente três cumpriram o curso, os outros não suportaram a ausência de calor do rebanho, retornando ao confortável aconchego dos cobertores analgésicos da dor do pensar. Sentiam falta do afago no ego, que os titulava de criaturas divinas, dotadas de grande importância na seara do porvir. As rédeas do egocentrismo não tolerava qualquer insurreição que cortasse na própria carne os nódulos que os identificasse como parte integrante da grande massa de iluminados.

A filosofia abriu-me novos campos do pensamento, aumentando o potencial cognitivo, dando ensejo a novas fontes do saber, induzindo-me a reflexão e raciocínio até então desconhecido e inimaginável. Os novos mananciais jorravam de forma destruidora e ao mesmo tempo fascinante, arrasadora e revigorante, bombardeando o trivial para a reconstrução da essência. Nunca havia trilhado por caminho tão fértil e sedutor. Deslumbrado pelo novo horizonte que se descortinava à minha frente sentia-me como criança em meio a tantos brinquedos novos, sem saber qual escolher. Queria todos. Sentia um insaciável desejo de abocanhar tudo de uma vez. Mas não havia ainda no cérebro janelas que permitissem criar novos arquivos previamente preparados para armazenar informações tão avassaladoras e revolucionárias. Necessitava reformular a casa mental. Teria de demolir velhas construções em ruínas e retirar o entulho que impedia o livre trânsito dos operários que transportariam o material necessário para edificar um novo conceito de vida. Tive de contentar-me com a conquista de um a um dos brinquedos. Gradativamente, tijolo por tijolo, vi dia a dia o edifício se materializando, tomando forma e se estruturando numa base sólida capaz de suportar qualquer intempérie que o venha atingir. Hoje o vejo em fase de respaldo. Não tenho certeza se o concluirei ainda em vida. O manancial é incomensurável e os compartimentos cerebrais ficaram danificados pelo tempo que perdi bebendo em fontes deterioradas e contaminadas pelo sedimento da ignorância. Porém consegui restabelecer a equidade entre o ser vivente e o ser pensante que existe em mim. Se perguntarem se sou feliz, não saberia responder afirmativamente no contexto que definem a felicidade, mas asseguraria categoricamente que a insegurança, o medo, o sofrimento e a desventura foram desalojados de minha mente. Se tudo terminar no túmulo, morrerei feliz por ter vivenciado a liberdade e ter exercitado em vida a plenitude que um ser humano tem direito durante sua passagem pelo planeta Terra, que tão acolhedoramente propiciou todas as condições básicas para minha existência. Se a vida continuar, então poderei ver, num futuro que não consigo mensurar, a conclusão dessa obra grandiosa que é o conhecimento.

Ler para crer é um trocadilho que empreguei para intitular esse ensaio. A citação de Carl Sagan acima inspirou-me a escrevê-la. Ela resume literalmente o cerne dos percalços que a dúvida me envolveu na intrincada busca de respostas. Depois de muita luta, aprendi a ler. E para ler é preciso crer. Crer sem aceitar de forma crédula seu conteúdo. Crer na capacidade de elaborar suas próprias verdades, suas próprias concepções, extraindo de cada obra lida, seja ela coerente ou extremamente conflitante, a essência contida e às vezes escondida nas entrelinhas do pensamento de seu autor. Toda obra, todo autor é portador de alguma peça de um grande quebra-cabeça que você terá de montar. Eles provavelmente já montaram o deles, não existindo, portanto, uma única obra detentora da verdade absoluta. Habitamos um planeta e compartilhamos uma sociedade em constante transformação científica, tecnológica e social, onde a verdade de ontem já fora superada. Busque obstinadamente o conhecimento que lhe é de direito, senão não passarás de mera peça do quebra-cabeça dos mais espertos. Portanto, pratique a boa leitura e faça essa incessante coleta de fragmentos da verdade para edificar a concepção do seu próprio existir.

Genézio de Abreu Martins
Enviado por Genézio de Abreu Martins em 15/02/2016
Reeditado em 16/02/2016
Código do texto: T5543989
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