Tu, só tu, piniquim...

Sempre vivera na merda sem purpurina, já que de todos dourados que vira só uma vez não fora urina. E como era loira - de fato - aquela menina. Ou seria albina? Mas o que aqui vale, é contar, dele, a sina.

Falo do modesto, presto, e honesto: o urinol. Por outros nomes fora chamado, sendo penico o mais falado - e odiado. Entretanto, na sua

função nobre, não poderia nem ao menos ser de cobre, deve ser bem esmaltado - e manejado a todo cuidado. Já teve também a inglória de ser tratado, de forma derisória, de bispote, por alguma mente finória.

Hoje, furado, abandonado, num lote baldio jogado, padece de violento desvario ao receber violenta pedrada certeira que ao trincar o esmaltado, fica por minutos sem fim naquele repinicado - enquanto vai-se esboroando seu colorido esbranquiçado.

Pedradas sucessivas, descascam-no da última capa de alvo pudor. Tudo o que resta é aquele corpo contorcido, metálico nu e jururu, só a asa é que se preserva na cor original ao cabo da lapidação cruel daquele bando de pequenos facínoras.

E de pensar que já foi feliz, que teve na calada da noite o apoio, a compreensão a tanta nádega ciosa de seu conforto, de sua discrição, de sua capacidade de tudo compreender, sentir e, mesmo no escuro, sem ver, tanta utilidade ter. E nenhum despudor cometer. Numa

cumplicidade de arrepiar - e nem piar.

Tudo começou no dia em que reluzente, chegou à loja do Zé Big, na antiga Poços de Caldas e embora não tenha ido direto pra vitrina, foi

justamente mas mãos de uma menina - bem embrulhado e disfarçado - que ganhou um lar adotado. E não havia sido fácil para a garota sair de sua casa com aquela severa e impostergável encomenda da mãe. Comprar um penico?

Mas que idéia de jerico? Com que coragem ia chegar na loja, pedir aquilo? E se tivesse marmanjo por perto? E se o lojista fizesse alguma piada de mau gosto? Perguntasse pelo tamanho requerido do objeto? Pela destinação? Se botava na conta, ou recebia, ao contado, ali

no balcão.

Mas a menina, Ernestina, que tanto relutou e com a irmã Evangelina por causa dessa compra tanto brigou, por comprá-lo, sozinha, acabou. E um ponto final - no desconforto, botou. E foram anos de glória para aquele estranho objeto dos despejos.

Nunca a ninguém nada revelaria, mas o que sabia de anatomia... E

curiosamente, mais a feminina, pois aos meninos, já de tenra idade não são dados mais esses confortos soturnos, noturnos, com tanto quintal,

tanta moita, tanto matagal, e até mesmo passeios, muros...E pra natureza tudo se purifica se não é puro. Até que veio o furo.

Surgiu assim como do nada, quiçá originário de uma pequena pancada. Ou da uréia, intrigante, renitente e acumulada. E não parecia coisa de

nada, até que se perfurou a camada esmaltada, justo na quina, na dobrinha, entre o fundo e a forma. Uma esperança, entretanto havia, quem sabe, o bom e velho latoeiro Vicente, o soldava, de repente, ou o colava, ou no que era seu melhor palpite, lhe botava um arrebite e o velho criado esmaltado, em seu nobre uso fosse preservado.

E se encarregou o menino Nonato de lá ir, carregando, contrafeito aquele objeto útil e já com defeito. Mas não teve jeito: Dona Ana, a mulher do latoeiro, sabendo da procedência, reagiu enciumada num berreiro. E da forma que foi, com o rabo entre as pernas, regressa o jovem Nonato, no ato, nada feito, mas só de tá livre da gritaria, sem dor no peito.

Diante do impasse, pensou-se em destinação sucedânea para o infelicitado urinol. Acomodar umas mudas de camélia, guardar salitre do

Chile e até pregos velhos e tortos. Mas suasesperanças se desvaneceram no mesmo dia. De que raios um penico velho valia?

E foi assim que depois do bombardeio no lote vago, algo mais grave o esperava, a suprema desventura: como o mês era junho de tantas

fogueiras, a criançada já acendia o estopim de uma potente bomba pra fazer, feito o sputinik, fazer sua festa de arromba.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 25/10/2015
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