ABORTO: DIREITO À VIDA! MAS DE QUAL TIPO DE VIDA ESTAMOS FALANDO?

“Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes”.¹

Este é o caput do artigo 5º da nossa Constituição Federal. O direito à vida é segurado pelas leis e Estado. Mas, o que aparentemente é simples, não é tão simples quando nos predispomos a uma análise mais aprofundada.

Antes de mais nada, desculpo-me com os caros leitores pelo tamanho deste artigo. Todavia, ele é estritamente necessário, pois, ao tratar de tema de tamanha relevância, tenho de me debruçar sobre as leis que o envolvem. Por tal razão, o volume textual pode aparentemente parecer uma verborréia que acometeu a cara ensaísta. Minhas considerações sobre o tema iniciar-se-ão apenas após a exposição das leis que criminalizam o aborto, e, as exceções previstas em lei. Para quem já as conhece, desculpo-me. Mas meu intento aqui é ser o mais didática possível, portanto, privilegiarei os que nunca tiveram uma aproximação do nosso código máximo. Sem mais delongas, ei-las:

“Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento. Art. 124. Provocar aborto em si mesma ou permitir que outrem lho provoque. Pena-detenção, de um a três anos”. ²

“Aborto ou abortamento é a interrupção da gravidez, da qual resulta a morte do produto da concepção. É com a fecundação que se inicia a gravidez – a partir de então já existe uma nova vida em desenvolvimento, merecedora da tutela do Direito Penal. Há aborto qualquer que seja o momento da evolução fetal – a proteção penal ocorre desde a constituição do ovo ou zigoto até a fase em que se inicia o processo de parto, pois a partir de então o crime será de homicídio ou infanticídio. O aborto pode ser: a) natural; b) acidental; c) criminoso; d) legal ou permitido; e) eugênico ou eugenésico; f) econômico ou social”.³

“Aborto provocado por terceiro. Art. 125. Provocar aborto, sem o consentimento da gestante: Pena – reclusão, de três a dez anos.

Art. 126. Provocar aborto com o consentimento da gestante: Pena – reclusão, de um a quatro anos.

Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência”.4

“Art. 127. As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em consequência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém à morte”.5

“Art. 128. Não se pune o aborto praticado por médico:

Aborto necessário

I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

Aborto no caso de gravidez resultante de estupro.

II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de conhecimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

Aborto necessário ou terapêutico: conflito de valores fundamentais, que determina a prevalência da vida humana; aborto sentimental: dignidade da pessoa humana.

Ambos devem ser praticados por médico (este não precisa de autorização judicial para realizar o aborto necessário e sentimental).

Aborto legal ou permitido: O dispositivo arrola duas causas especiais de exclusão da ilicitude – o aborto necessário e o aborto no caso de gravidez resultante de estupro. Em ambas, o aborto deve ser praticado por médico. O aborto necessário ou terapêutico depende de dois requisitos: 1) que a vida da gestante corra perigo em razão da gravidez; e 2) que não exista outro meio de salvá-la.

Aborto sentimental, humanitário, ético ou piedoso: autorizado também se a gravidez decorrer de estupro de vulnerável.

O aborto em caso de gravidez resultante de estupro (aborto sentimental, humanitário, ético ou piedoso) deve ser praticado por médico e exige-se o consentimento válido da gestante ou de seu responsável legal, se incapaz. Todavia, se for realizado pela gestante ou por outra pessoa, que não um profissional da medicina, o fato será típico e ilícito.

Aborto eugênico: o ordenamento pátrio não prevê regra permissiva. Graves anomalias físicas ou psíquicas, ou mesmo características monstruosas não autorizam o aborto (deve ser provada a impossibilidade de natural vida extrauterina).

Aborto eugênico ou eugenésico: O direito brasileiro não contempla regra permissiva do aborto nas hipóteses em que a criança nascerá com graves deformidades físicas ou psíquicas (aborto eugênico ou eugenésico). O fundamento desta opção é a tutela da vida humana no mais amplo sentido.

Tratamento jurídico-penal da anencefalia: Anencefalia é a má formação rara do tubo neural acontecida entre o 16º e o 26º mês de gestação, caracterizada pela ausência total ou parcial do encéfalo e da calota craniana, proveniente de defeito de fechamento do tubo neural durante a formação embrionária. O Conselho Federal de Medicina (CFM) considera o anencéfalo um natimorto cerebral, por não possuir os hemisférios cerebrais e o córtex cerebral, mas somente o tronco. O CFM editou a Resolução nº 1.989/2.012 , disciplinando a atuação prática dos médicos no tocante à interrupção da gravidez baseada na anencefalia do feto, independente de autorização do Estado. Consequentemente sua eliminação em intervenção cirúrgica constitui-se em fato atípico, pois o anencéfalo não possui vida humana que legitima a intervenção do Direito Penal. No di 14 de maio de 2012, no julgamento da ADPF 54/DF (Associação Nacional dos Delegados de Polícia), ajuizada pela CNTS (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde), o Plenário do Supremo Tribunal Nacional declarou a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo seria conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal. Desta forma, a Corte reconheceu o direito da gestante de submeter-se à antecipação terapêutica de parto na hipótese de anencefalia, previamente diagnosticada por profissional habilitado, sem estar compelida a apresentar autorização judicial ou qualquer outra forma de permissão do Estado. Se a gestante ou terceiro praticar manobras abortivas no sentido de eliminar o feto anencéfalo, estará caracterizado crime impossível, em razão da impropriedade absoluta do objeto material, nos termos do artigo 17 do Código Penal.

Aborto econômico, miserável ou social: não está previsto no ordenamento. Se praticado, caracterizar-se-á crime de aborto.

É a interrupção da gravidez fundada em razões econômicas ou sociais, quando a gestante ou sua família não possuem condições financeiras para cuidar da criança, ou até mesmo por políticas públicas baseadas no controle da natalidade. Há crime, pois o sistema jurídico em vigor não autoriza o aborto nessas situações”.6

Agora, estando a par das devidas leis permissivas e punitivas começarei minhas elucubrações...

Não me estenderei em demasia sobre o aborto necessário ou terapêutico e o aborto sentimental ou humanitário. Até porque seria deveras absurdo não concedê-los dentro da forma da lei quando a gestante sofre risco de morte com a vinda do nascituro ou quando a mesma traz em seu ventre o fruto de um estupro. Proibir tais ditames legais seria um ato de extrema desumanidade.

Porém, atentar-me-ei neste artigo sobre o aborto eugênico e o social. O aborto eugênico é permitido em casos de anencefalia. Também é irrelevante tratar desta exceção à lei no aborto eugenésico: o feto é natimorto cerebral que não tem condições de sobrevivência.

O aborto eugênico não tem respaldo legal de isenção de culpabilidade em casos de gestação de fetos com graves deformidades físicas ou psíquicas. Antecipadamente, esclareço-lhes que não sou uma nazista que apoia o extermínio de crianças com deformidades tanto físicas quanto psíquicas. Contudo, a meu ver, o ponto crucial da questão sobre o aborto é: qual aborto é preferível? Os leitores podem não estar entendendo, pois só conhecem dois tipos: o legal e o ilegal. Em geral, o aborto é ilegal, salvo em determinadas exceções muito bem exemplificadas e fundamentadas no nosso código de leis federais. Mas existe outro tipo que também é permitido, também é legal: o aborto indireto.

Aborto indireto é aquele praticado pela progenitora e progenitor (não uso os termos “mãe” e “pai” porque adiante os leitores saberão a razão); pela família em geral (avós, tios, primos etc) e pela sociedade como um todo.

Iniciarei pelo aborto indireto cometido pela sociedade em geral. Para isto, recorro, novamente, ao auxílio da nossa Constituição Federal:

“Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

Art. 7. São direitos dos trabalhadores rurais e urbanos, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

IV – salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim”. 7

As leis federais e a sociedade assumem certas responsabilidades ao nascimento de um novo indivíduo. Legalmente é de dever das três esferas de poder (executivo, legislativo e judiciário) zelar pelos direitos básicos deste novo cidadão. A sociedade também tem seus deveres para com ele. São no todo uma família em macrocosmo, uma extensão da família consanguínea (microcosmo). Todos devem assegurar, em conjunto, nos termos da lei, que este novo cidadão tenha acesso à educação, à saúde, à alimentação, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à infância, à assistência aos desamparados. O que todos sabemos que, muitas vezes não ocorre, ou acaba acontecendo muito primariamente – isto para não dizer porcamente, numa política pública e social de tapa-buracos.

A preocupação com a seguridade da vida de um feto é quase que consenso, uma das poucas quase unanimidades absolutas de uma questão. A maioria se mostra chocada e indignada com a possibilidade de aborto, afinal, o feto tem segurado seu direito à vida! A preocupação mostra uma sociedade preocupada com o indivíduo antes mesmo de seu nascimento, uma sociedade de valores éticos justos e igualitários, uma sociedade humanitária. Tudo isto é muito bonito de se ver, é admirável, entretanto, ao pararmos por um tempo, olharmos mais de perto com mais calma e atenção acurada, notamos que o aparente senso de ética, justiça e igualdade oculta em seus meandros e, mais profundamente, o cerne da hipocrisia.

A preocupação da sociedade em geral cessa no instante em que o nascituro sai do ventre da mãe e exprime seu primeiro berro pueril. Todos os direitos previstos em lei - que, claramente, mostram os deveres desta sociedade para com este novo indivíduo – não se mostram efetivas, são leis “para ingleses verem”. Do lado de cá da vida intrauterina, todos que levantam bandeiras pelo direito à vida do feto, deixam de se importar se este novo indivíduo terá uma educação de qualidade que o forme como cidadão e ser pensante ou mesmo se terá acesso a qualquer educação, mesmo que uma educação minimamente capacitada; deixam de se importar se este indivíduo terá acesso a uma saúde de qualidade quando ele vier a adoecer e precisar recorrer a hospitais públicos, clínicas, postos de saúde, ao sistema único de saúde (deixam de se importar se ele morrerá em corredores lotados ou se morrerá à espera de um exame em filas imensas ou, ainda, se morrerá com o atendimento de um mau profissional de medicina que mal lhe olha e muito menos lhe faz um exame de toque); deixam de se importar se este indivíduo morrerá de fome ou terá que se alimentar de restos vasculhados em lixos; deixam de se preocupar se este indivíduo terá um trabalho para se manter e poder viver dignamente pagando seu aluguel, seus estudos, seu plano de saúde, seus itens de higiene pessoal, seu vestuário, seu transporte público se dele precisar, sua alimentação, seu lazer e sua previdência social para que possa se aposentar com uma renda de aposentadoria digna e eficiente; deixam de se preocupar se este indivíduo terá onde morar, se poderá comprar/financiar sua casa própria ou pagar aluguel ou se ele terá de morar em barracos em encostas de morros que podem desabar e causar um alto número de mortes ou pior, morar nas ruas passando frio, fome; deixam de se preocupar se este indivíduo terá acesso a lazer como forma de recreação e cultura (acesso a parques, espetáculos, teatros, cinema, bares, boates, viagens etc); deixam de se preocupar se terão acesso à segurança, se precisarão viver em mansões com câmeras de vigilância, seguranças, cercas elétricas, alarmes, carros blindados ou se sucumbirão no caos com uma polícia que, muitas vezes, - ao invés de proteger a população - extorque, rouba, mata uma população carente, pobre, que não tem meios de se defender; deixam de se preocupar se este novo indivíduo será espancado, abusado sexualmente ou obrigado a fazer trabalho infantil; deixam de se preocupar se este novo indivíduo - no caso de ser alguém desamparado no futuro - possa ser acolhido e auxiliado por esta sociedade que lutou tanto para seu nascimento, mas, que o deixa abandonado depois de nascido.

Este é o aborto indireto social. E por si só já nos faria repensar a proibição do aborto social. Proibir uma progenitora de abortar uma criança que ela não terá condições de criar dignamente, que passará por necessidades físicas, por fome é um contrassenso para os tão preocupados com o mesmo indivíduo antes dele nascer. Proibir uma progenitora de abortar porque ela já tem muitos filhos e, mais um, é impossível para aquela família, é cruel. Às mães que tem um número maior de filhos e passam por muitas e severas necessidades, mas que mesmo assim não abdicam de seus novos filhos nos seus ventres, a nossa admiração é merecida. Entretanto, esperar que todas as que passam pela mesma situação ajam assim é um disparate porque cada família, cada progenitora sabe como será a vida daquela criança, sabe se terá ou não condições materiais e psicológicas de criar este novo ser. O absurdo é que elas sejam responsabilizadas legalmente, punidas pelo crime do aborto. Uma punição que pode vir através das leis ou da própria vida. As mulheres que passam pelo abortamento e sobrevivem correm o risco de serem presas se descobertas; as mulheres com mais poder aquisitivo, ao contrário, podem ter uma gravidez indesejada, pagarem os melhores médicos e enfermeiros em sigilo e depois irem descansar em spas ou fazerem uma viagem ao exterior da qual voltam com mimos e recordações depois de suas temporadas em repouso - tudo isto sem serem punidas pela lei como as outras; as mulheres que não são punidas pelas leis podem ser punidas com a própria vida que lhes é retirada num açougue clandestino por péssimos profissionais de saúde que só pensam em se aproveitar da fragilidade dessas mulheres desesperadas. Não vejo preocupação e comoção social pela vida ceifada dessas mulheres que apenas tiveram o azar de não terem nascido ricas como as outras.

A mulher que aborta e é pega cometendo o abortamento é endemonizada. A culpa, julgamento e punição da sociedade lhe açoitam. Ela é vista como má, cruel, desumana. No entanto, ninguém discute o abortamento masculino. Ora, ela não se fecundou sozinha. Ela precisou do espermatozoide de um homem. Logo, a responsabilidade pelo resultado daquela transa (que pode ser casual ou não) é de ambos. Quando o homem não se interessa pela gravidez e desaparece sem querer saber da gestante e do feto ele também está abortando. Este é o abortamento masculino. O homem pode se isentar de quaisquer responsabilidades e não é julgado por isto: nem preso nem endemonizado pela sociedade. Como sempre, o mito cristão do gênesis se repete e a mulher é a eterna Eva que levou à perdição seu companheiro, sua descendência e toda a humanidade por consequência. A culpa cristã recai sempre sobre a mulher.

O aborto indireto familiar é aquele que acontece diariamente quando progenitores renegam os filhos que tiveram. Ele acontece quando os filhos deixam de ser os seres “perfeitinhos” que eram no ideário desses progenitores. Existe a hipócrita resposta que progenitores dão à pergunta -“Você quer o que para seu filho ou filha? – e sempre se ouve, em seguida, “Quero apenas que tenha saúde”.

Não é bem assim, além de desejarem que a criança nasça sem nenhuma doença grave congênita, nenhuma deformidade física ou psíquica, desejam que a criança não seja homossexual, lésbica, bissexual, travesti ou transexual, feia, gorda, burra, alcoólatra, dependente química etc. Se o filho acaba fugindo dos sonhos idealizadores dos progenitores, neste mesmo momento, todo aquele amor incondicional, toda aquela consideração, preocupação e zelo se dissipam. Querem mudar as essências de seus filhos, querem convertê-los, querem consertá-los como se eles fossem brinquedos defeituosos e, se não obtém sucesso, passam a ter vergonha de seus filhos, querem escondê-los, passam a tratá-los com indiferença e frieza. Em casos mais extremos - mas que nem por isto são exceções ou raridades, muito pelo contrário, são a grande maioria – passam a maltratá-los de tal modo que se começa uma tortura (física, com espancamentos, e, psíquica, com agressões verbais, inferiorizações, atos de renegação) diária, que fere fundo no âmago, que deixa marcas inapagáveis pelo resto da vida. A tortura pode chegar ao nível das expulsões de casa.

Segundo a Constituição Federal:

“Art. 5º, Inciso III – ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante”. 8

“Art. 5º, Inciso XLIII – a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes ou drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podem evitá-los, se omitirem”. 9

A tortura praticada por um criminoso ou por um membro militar é crime inafiançável ou insuscetível de graça ou anistia, entretanto, a tortura cometida por progenitores ou por familiares é algo velado, de certa forma permissiva e totalmente justificável. O absurdo da situação é que houve tanta defesa da vida daquele feto que passa a não importar depois de nascido. Abortar um feto é crime, abortar um filho vivo ou um neto, sobrinho, primo vivos é considerável aceitável em nossa sociedade. Por isto, me refiro aqui ao termo “progenitores” e “pais”.

Progenitor é o homem que com seu espermatozoide fecunda o óvulo da progenitora gerando o zigoto. É todo aquele que não tem um afeto mais direto, uma aproximação com seu fruto. O progenitor pode apenas ser aquele que fecundou ou pode ser aquele que apenas paga pensão sem nem se importar com a criança ou pode ser aquele que dá tudo de material para seu filho, mas que, não lhe dá o principal: o “Amor”.

E é o “Amor” o que diferencia progenitores de pais e mães. Pais e mães se importam e zelam por seus filhos tanto materialmente (ou não, há muitos pais e mães que não tem condições econômicas de propiciar o básico a seus filhos, que moram nas ruas, passam frio e fome, mas lhes enchem de afeto, amor) quando afetivamente.

Os progenitores renegam seus filhos se eles nascem gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais, com alguma deficiência física (cegos, surdos, com algum tipo de paralisia) ou com alguma doença psíquica (esquizofrenia, síndrome de Down, autismo etc) ou doença psicoemocional (depressão, síndrome do pânico, distúrbios de ansiedade, algum tipo de neurose ou psicose, transtornos de personalidade – limítrofe (borderline), esquizoide etc) ou se forem alcoólatras e dependentes químicos ou vierem a se tornar criminosos.

Mães e pais amam seus filhos independentemente de deficiências físicas, doenças psíquicas e psicoemocionais e de suas respectivas sexualidades ou identidades de gênero, independentemente de terem vícios (doenças) ou de se tornarem criminosos.

Para os progenitores, deficiências ou doenças psíquicas de seus filhos são problemas, obstáculos, erros de formação genética, seus filhos são eternos “fardos”, “estorvos” que eles como “pais” serão obrigados a carregar pelo resto de suas vidas, penando como mártires. Para eles a sexualidade ou identidade de gênero de seus filhos é algo errado, pecaminoso, algo nocivo, que precisa ser modificado.

Para mães e pais, deficiências e doenças psíquicas de seus filhos se tornam motivação para superação, as deficiências se tornam eficiências. A sexualidade e identidade de gênero de seus filhos é algo que deve ser respeitado, entendido, compreendido como algo inerente a eles, algo indissociável e que é mais um motivo para apoiar e amar a individualidade daqueles seres originados deles. Estes pais e mães não julgam, não condenam, não querem mudar nada porque seus filhos são perfeitos como são. Isto é o que gera a verdadeira maternidade e paternidade: o “Amor”.

Progenitores torturam seus filhos diariamente com desprezo e indiferença, espancam seus filhos, expulsam seus filhos de casa por serem diferentes.

Mães e pais apoiam e dão todo o suporte para seus filhos enfrentarem o mundo fora de seus lares, lutando para serem aceitos neste mundo tão preconceituoso e segregacionista. Educam, amam, apoiam e lutam lado a lado.

Progenitores não se preocupam se o filho expulso de casa tem onde morar, se mora nas ruas, embaixo de um viaduto; se tem o que comer, se come restos recolhidos de lixos; se está doente, com febre ou morrendo com alguma enfermidade.

Mães e pais se preocupam se chove e seus filhos ainda não chegaram seguros em casa; se seus filhos deixam de comer, por alguma indisposição de estômago, já tratam de dar um remedinho, levar ao médico ou, simplesmente, fazer o prato favorito deles para ver se deste modo despertam novamente o apetite; se seus filhos ficam indispostos já fazem alguma receita com chás, aferem temperatura com o termômetro, conferem a evolução do estado dos filhos em intervalos regulares de tempo, se preciso for, levam ao médico e ficam ao lado de seus leitos, quando eles estão internados, fazendo vigília e orando por suas respectivas melhoras.

Progenitores não se importam com o destino de seus filhos depois que os renegam.

Mães e pais jamais renegam seus filhos e se preocupam para sempre com eles.

Progenitores deixam de “amar” seus filhos porque eles não corresponderam a seus planos e expectativas. Isto não é amor: é interesse. Quando a pessoa deixa de ser como eu quero, ela perde o interesse para mim – começo a ser frio e deixo de “amá-la”. Interesse é sinônimo de egoísmo. Egoísmo não é amor.

Mães e pais não têm interesse em seus filhos, apenas lhes desejam o melhor e o que realmente importa para eles é se seus filhos são educados; respeitadores; honestos; íntegros; justos; têm caráter, hombridade, empatia e solidariedade; se são puros e bons de coração e se sabem amar. Isto é amor: amor verdadeiro. E o amor verdadeiro é altruísta.

Progenitores não sentem culpa por desprezar seus filhos, renegá-los, espancá-los e expulsá-los de seus lares, deitam suas cabeças em seus travesseiros (totalmente desprovidos de culpa ou remorso) e dormem pesadamente sem nem pensarem em como seus filhos estão.

Mães e pais nunca renegam seus filhos, nem espancam e nunca expulsam seus filhos de casa. Mesmo quando corrigem seus filhos na educação, sentem um leve aperto no coração, e, se perguntam se foram duros demais – a culpa surge levemente, mesmo sabendo que fizeram o certo. Elas e eles não dormem enquanto seus filhos não chegam a casa depois de terem saído com os amigos no final de semana.

Quando digo progenitores que não se importam abarco também os avós, tios, primos e o mesmo é válido quando digo mães e pais que se importam, abarco os demais familiares.

Em geral, são os homossexuais, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais que adotam as crianças que nasceram com “defeitos de fabricação” e que os progenitores abandonaram. Quando eles se dispõem a adotar uma criança, estão preparados psico-afetivo-financeiramente para isto. Os irmãos “perfeitos” deles não se dispõem a cuidar de seus progenitores, porque não querem “estragar” ou “atrapalhar” a ordem de suas vidas “perfeitinhas” cuidando de velhos doentes e decrépitos. E, assim, aquele que renegou se torna o renegado, aquele que foi renegado se torna o acolhedor.

As pessoas têm filhos sem se preocuparem com a importância deste ato de gerar uma nova vida. Muitos têm filhos porque se esqueceram de usar preservativos, pílulas anticoncepcionais; porque o preservativo estourou; apenas porque querem ter herdeiros para dar sequência à linhagem e ao nome da família. Porque para muitos ter um filho é um ato de excreção: assim como excretam urina, fezes, suor e vômito, excretam também espermatozoides e óvulos.

Vivemos numa sociedade que é contra abortar um feto; todavia, é a mesma que com suas leis abortivas renega ao indivíduo que nasceu os mesmos direitos que, na teoria, lhe são assegurados na forma da lei. Uma sociedade que se preocupa com a vida, a vida do feto; mas, o que acontece com esta vida depois de nascer, se este novo ser tem alimentação, moradia, saúde, segurança, trabalho é problema dele e nós – a sociedade – temos nada a ver com isto, ele que se vire. Uma sociedade que acha normal mães e pais renegarem seus filhos, abortá-los diariamente com indiferença, desprezo, falta de carinho, afeto, atenção e amor; porém, que acha inadmissível terminar com a vida de indivíduos que nem nasceram.

Qual aborto é preferível? Aquele que extingue a vida de um ser que nem nasceu ou o aborto diário de indivíduos que estão vivos e sentem e sofrem? Qual vida é aquela pela qual lutamos? Aquela vida que é idealizada e futurista para um feto ou a vida real, cheia de suas mazelas, vicissitudes, pela qual deveríamos lutar diariamente para modificar?

No dia em que as preocupações com a vida dos fetos se transpuserem para a vida dos indivíduos que já nasceram, neste dia teremos o início de uma grande mudança, de uma revolução. Neste dia, teremos menos legalismo, demagogia e hipocrisia. E, consequentemente, uma sociedade mais justa, ética e igualitária.

Antes de qualquer casal ter filhos (independentemente de serem um casal amoroso-civilmente ou apenas uma transa casual), antes de tomarem este passo deveriam fazer um exame de autoanálise: “se meu filho nascer com doenças e deformidades físicas eu o apoiarei e amarei incondicionalmente?”, “se meu filho nascer com doenças psíquicas e psicoemocional eu o apoiarei e amarei incondicionalmente?”, “se meu filho tiver uma sexualidade ou identidade de gênero diferentes eu o apoiarei e amarei incondicionalmente?”, “se meu filho vier a ser alcoólatra ou dependente químico eu o apoiarei em sua luta contra o vício?”, “se meu filho se tornar um criminoso eu lutarei arduamente para trazê-lo para o caminho da retidão?”. Se as respostas para estas questões forem “Não”, o casal não está apto a ter filhos, porque apenas serão progenitores e nunca virão a ser pais. Se as respostas para estas questões forem “Sim”, este casal é abençoado e agraciado com a dádiva da maternidade e paternidade.

Às vezes, a paternidade e maternidade percorrem caminhos estranhos. Os progenitores renegam a criança por quaisquer dos motivos que citei, todavia, materno-paternidades surgem no acolhimento dado pelos avós, tios, primos. E quando, nem progenitores nem suas respectivas famílias demonstram ter materno-paternidade, ela surge em alguma madrinha ou padrinho ou em amigos da família que acolhem esta criança renegada e abortada diariamente. Em casos mais raros - os mais mágicos e lindos de se notar - a materno-paternidade nasce, atua e se perpetua através de “estranhos” que demonstram que, numa sociedade tão marcada pela frieza, indiferença e, porque não dizer maldade e crueldade, a bondade e a pureza de coração ainda existem.

Muitas vezes a maldade não está lá fora nem na casa do vizinho onde o gramado é menos verde; ela, a maldade, está cá dentro de nossos lares e é assustador e imensamente triste concluir que ela age por meio de nossos “pais” e familiares.

Todavia, muitas vezes a bondade não está cá dentro, nos rodeando através de nossos pais e familiares; ela é mais difícil de encontrar e está lá fora esperando para acolher e amar pelo gesto humano e amoroso de um mero “estranho”...

GLOSSÁRIO:

* Verborreia = uso de uma quantidade excessiva de palavras e de enorme fluência, para dizer coisas de pouco conteúdo ou importância; verborragia.

* Elucubrações = meditação, reflexão profunda.

* Nascituro = diz-se de ou o ser humano já concebido, cujo nascimento é dado como certo

* Ditame = lei introduzida por autoridade superior.

* Acurada = marcado pelo cuidado, atenção, interesse.

* Meandro = aquilo que procede por vias sinuosas; volteio, desvio; emaranhamento, complexidade.

* Cerne = parte central ou essencial de; âmago, centro, íntimo.

* Pueril = relativo ou pertencente a criança; infantil.

* Ceifada = tirada a vida a; matada.

* Ideário = conjunto das ideias principais de um autor; imaginário.

* Âmago = parte central ou essencial de; cerne, centro, íntimo.

* Inerente = que só existe em relação a um sujeito, a uma maneira de ser que é intrínseca a este.

* Indissociável = que não se pode dissociar; inseparável.

* Decrépito = que tem muita idade, é muito velho ou usado (diz-se de pessoa, animal ou coisa); arruinado, caduco.

¹ BRASIL. Constituição (1988). Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais: Capítulo I – Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos. Constituição da República Federativa do Brasil. ed. ver., atual e ampl . Brasília, DF: Senado, 2013. p. 5.

² MASSON, Cleber. Código Penal Comentado. 2. ed. rev., atual e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014. p. 549.

³ MASSON, Cleber. Código Penal Comentado. 2. ed. rev., atual e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014. p. 550.

4 MASSON, Cleber. Código Penal Comentado. 2. ed. rev., atual e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014. p. 552.

5 MASSON, Cleber. Código Penal Comentado. 2. ed. rev., atual e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014. p. 554.

6 MASSON, Cleber. Código Penal Comentado. 2. ed. rev., atual e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014. p. 554-556.

7 BRASIL. Constituição (1988). Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais: Capítulo II – Dos Direitos Sociais. Constituição da República Federativa do Brasil. ed. ver., atual e ampl . Brasília, DF: Senado, 2013. p. 7.

8 BRASIL. Constituição (1988). Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais: Capítulo I – Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos. Constituição da República Federativa do Brasil. ed. ver., atual e ampl . Brasília, DF: Senado, 2013. p. 5.

9 BRASIL. Constituição (1988). Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais: Capítulo I – Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos. Constituição da República Federativa do Brasil. ed. ver., atual e ampl . Brasília, DF: Senado, 2013. p. 6.

Frida Pascio Monteiro
Enviado por Frida Pascio Monteiro em 25/02/2015
Reeditado em 17/05/2015
Código do texto: T5149308
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