Desabafo Pitoresco de um Sonhador

De tanta iniquidade o homem já não satisfaz sua essência. De posse da terra, dos mares, das montanhas, do céu e de tudo que lhe caia às mãos, na sua medida, e que só ele sabe atribuir valor, a vida já não mais responde. Tudo é vazio, tudo é oco como a árvore tomada pelo cupim. Eis a pedra fundamental, eis, a triste figura do sonhador, daquele que se debruça sobre o cotovelo e joga cinzas de cigarro pela janela. O que pensa ele senão na triste caminhada a que se dispôs seus antepassados?

A lucidez já não mais lhe toca à razão. Debruçar-se na poesia, na música, nas artes? Mas e Van Gog, por que decepou sua própria orelha? Teria sido sua insatisfação para com aquela parte do seu corpo, ou teria sido para não mais escutar os gritos da humanidade que pedia socorro. E Nietzsche? O que o teria levado ao niilismo mais filosófico senão sua quase absoluta descrença na raça humana. Sua Vontade de Potência não é um grito para que outro homem renasça? Eis o enigma! Eis a frágil porcelana sobre a mesa, eis a criança correndo no jardim sem flores. Abandonado. Somos seres abandonados em nós mesmos. Deus está morto! Deu-se a sentença. Deu-se o ponto final para essa história de mitos e deuses vingativos. Deu-se o dilúvio, o Vesúvio; deu-se.

Na parede branca retratos antigos apontam seres que já não mais existem. Tudo é passado, tudo passou como se o tempo não quisesse deixar testemunho que esteve ali.

Beber um copo de café? Pode haver poesia num copo de café? Ou, quem sabe, pode-se filosofar com um copo de café?

Os encontros não são por acaso. O acaso é a desculpa que se dá quando não se reconhece o desejo de vontade. Negar a vontade, negar a intenção é o que liberta o culpado pelo crime.

Edward Monk deu seu Grito. O grito que ele nos deixou adentra por nossas entranhas; nos invade como a avalanche montanha à baixo. Não há abrigo que nos proteja. Monk Grita a dor do mundo. Um mundo que já não mais responde gentilezas; tudo é número, tudo é mais-valia, tudo é mercadoria.

As flores no jardim não tem cores. Os pássaros e as abelhas já não mais lhe sugam o néctar, e o mel é ácido. Eis o quadro. Eis a terra seca, a lágrima seca, a lavoura seca. Tudo é deserto, tudo é apenas a triste lembrança do que um dia foi.

Me permite essa música?

Os primeiros acordes rompem o silêncio. Ninguém se atreve uma única sílaba. Todos, quietos e cabisbaixos, ouvem e choram; lembram que um dia foram felizes, lembram que um dia sorriram, se abraçaram, amaram. Lembraram do pega-pega, pique esconde. Lembram que a vida escorreu pelas mãos como a água na pia da cozinha. A fluidez se estabeleceu como nova ideologia. Tudo é efêmero. Tudo dura o mínimo tempo de um segundo; fumaça de cigarro jogada ao vento, eis a semelhança, eis a indiscutível semelhança. Quem dá mais?

O leiloeiro anuncia outra obra. Alguém levanta a mão. Cinquienta milhões! Vendido para o nobre senhor; aplausos, fotos e falsos sorrisos. Do outro lado da rua uma criança pede esmola, mais adiante, um velho dorme coberto por papelão. Van Gog sem orelha não escuta o frenesi no salão, e passa pela criança que estica a mão. Van Gog repousa na tela; Van Gog deveria ter arrancado seus olhos.