Sobre Clarice Lispector...


               Conheci Clarice através de um professor, desde então não consigo ficar longe de seus textos, suas reflexões sempre profundas, inquietantes, provocadoras. Clarice sempre fugiu dos rótulos, nunca se preocupou com enredo, a linearidade das coisas. Ao contrário, exigia que o leitor se entregasse à aventura de ler se quisesse desfrutar da profundidade dos conceitos que nela se multiplicavam.
 
               Ler Clarice é mergulhar num mundo onde o entendimento é enigmático, desnecessário e fascinante. Sua concepção introspectiva e intimista da literatura e do mundo (uma vez que para ela ambos estavam intimamente ligados) fazia da palavra um meio de apreensão e revelação do mundo, fixando-se na crise do próprio indivíduo, em sua consciência e inconsciência, nas limitações e conflitos que em muitos momentos não se sabia ser dela ou de seus personagens.

               Sua escrita tinha o múltiplo sentido de desvendar, aprender, redesenhar, lembrar, entender, pensar, sentir, falar, dizer, procurar, atingir, descobrir, libertar-se, inocentar-se, vivificar, reconhecer, denunciar, enfim, para Clarice a realidade mais importante da linguagem é a fala; escrever é representar o mistério da significação procurando um entendimento que se faz pela própria linguagem: "escrevo pela incapacidade de entender, sem ser através do processo de escrever". 

               A ação clariceana de escrever equivale a ação de pensar: “Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreprodutível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador se não fosse a linguagem libertadora”. Esse pensamento imaginário quer alcançar os atributos e potencialidades de algo maior, além da própria consciência individual. 

               Clarice sabia da força que as palavras tinham e do risco que elas representavam se usadas de forma equivocada. Talvez por isso as usasse muito bem e extraísse delas o máximo de força e sentido que pudesse. Nesse sentido agia como uma bruxa, uma feiticeira que remexia expressões e idéias em um enorme caldeirão e dali extrair a palavra em forma de arte, uma arte que envolvia, encantava, enfeitiçava. Ninguém ler Clarice impunemente. 
               
               Ao ler sua obra somos convidados a mergulhar em seu misterioso mundo de discursos ditos nas entrelinhas, nos jogos de significações que ela usava para corrigir a fragilidade da própria linguagem incapaz de captar a imagem definitiva; para ela o significado era criado na intuição e na inspiração. 

               A literatura clariceana muitas vezes assumia um tom profético, anunciado na necessidade de um entendimento com a imaginação denunciadora e não com a razão. Para ela, a escrita era a descrição do aparente simbólico, sentido apenas pela intuição, capaz de conciliar as ambigüidades e a unidade de um passado dado e um futuro por se fazer, onde o tormento de procurar registrar o impossível presente é mera possibilidade de conhecimento na linguagem. 

               Escrever se transforma, para Clarice, em revelação dos segredos intuídos na intimidade significativa dos seres, na descrição do aparente simbólico com o sentido da intuição, no contar indefinidamente, no presente de uma narrativa que se quer linguagem em ação, os nomes são qualidades possíveis das coisas em sua interioridade. 

               Escrever é enunciar um presente de linguagem que é passado de existência e futuro de vivência. É pensar o mistério da realidade, o que a aproxima de uma realidade imanente: "Não estou brincando, pois não sou sinônimo - sou o próprio nome".

               Para muitos leitores e críticos, a escritora Clarice Lispector é uma esfinge perigosa, que devora a todos que tentam desvendar seus segredos. Hermética, bruxa, louca, brilhante, genial. Talvez isso se explique porque esta mulher que nasceu ucraniana e morreu carioca, criou personas e personagens que se intercomunicaram muitas vezes de maneira soturna, outras mais solares, mas sempre fustigando, sempre deixando no leitor um certo incômodo, uma inquietação.

          A verdade é que Clarice não cabe em definições, ultrapassa todas elas.

Ângela M Rodrigues O P Gurgel
Enviado por Ângela M Rodrigues O P Gurgel em 27/05/2007
Reeditado em 22/10/2009
Código do texto: T502727
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