ESCRITOS NÃO SAGRADOS - CRÍTICA À RELIGIÃO

Escritos não Sagrados

(uma exegese leiga e quase pura)

por Luciano F. Silveira

Todo mundo tem razão: este me parece um quase axioma. Não sei até que ponto pode ser razoável dizer isso, mas até o momento esta espécie de aforismo que – talvez por pura inocência – considero como sendo de minha autoria, tem sido meio que um norte para mim.

É que tem meu negócio com Yeshua. Jesus me pegou menino e me ensinou a forçar a barra até o máximo possível a um ser humano para ser bom. Bom no sentido passivo da palavra – vim saber outro dia pela filologia que o sentido em latim para bom(bônus) tem mais a ver com bravo que com pacífico e passivo. Sei que não tenho e nunca tive o tal amor proposto pelo cristianismo. E sei também que nunca vou ter. E, me parece que, na verdade mesmo, ninguém nunca teve ou terá. Paulo, por exemplo, diz na Carta aos Coríntios que uma pessoa pode entregar o seu corpo para ser queimado, e, ainda que tenha feito tal sacrifício, se não houver sido com amor, de nada terá adiantado. Pense bem nisso. Como se faz para sentir amor com o corpo começando a arder em chamas? Bem; analisando a atitude dos homens-bomba fica um pouco mais claro como alguém pode se entregar à morte só para se aparecer – para os homens, e, em última instância, para Alá; sempre com uma segunda ou terceira intenção.

Era exatamente isso o que eu pretendia quando menino, quando adolescente e não sei bem até que ponto da minha vida: mostrar às pessoas à minha volta que eu possuía amor. E um amor muito próximo ao de Jesus Cristo. Yeshua. Talvez o personagem central da novela de minha vida. Minha cristandade pessoal parece totalmente arruinada. A neblina intransponível de nossas histórias – a minha e a dele – teima em não cessar. E tem sempre algo, um fato cultural e, principalmente literário a espessá-la. Às vezes a própria literatura capenga bíblica – fascinante, mas capenga - , uma canção de Raul Seixas, uma inserção em Nietzsche ou nas páginas da revista Super-interessante. Mas o meu menino, esse era um pouco diferente. Fingia tanto amor que acabou por ensinar, sem querer, o homem de hoje a amar da forma mais cristã tolerável por um cidadão com privações (apesar dos inúmeros tropeços e sujeiras). Muito embora esse homem meio cristão confesse não amar a Cristo.

Yeshua nada escreveu – nada que se saiba. Mas Paulo... Esse escreveu pelos cotovelos e com os pés nas costas. Usou seu pistolão para publicar, de forma voluntária ou não, para toda a eternidade seus escritos. Este, o maior negócio editorial de todos os tempos. Nem o Paulo Coelho (olha que coincidência!) foi tão bom marqueteiro. Paulo, o antigo, teve, inclusive, o privilégio de morrer decapitado, como nobre cidadão romano que era. Paulo foi quem possibilitou que Jesus se tornasse famoso, mas fica-me a impressão, em dados momentos, que Jesus não iria gostar muito do que Paulo, garoto propaganda por excelência, escreveu a seu respeito. Paulo, contrariando Jesus, é um dos pais da histeria evangélica. Enquanto Jesus subvertia a ordem vigente com sua revolução silenciosa de pregação do encontro do homem com o Deus; com o Deus mais íntimo; mais pessoal; pregando a oração solitária, como ensina no "sermão da montanha"; Paulo, em certo ponto, meramente restabelecia os cultos em seu caráter formal, falando por exemplo, sobre como poderiam ser faladas "línguas" nos cultos ou pedindo que as mulheres ficassem sempre caladas. Triste também é o fato dele ter desaconselhado o casamento, pregado o celibato e pedido aos pais que preservassem suas filhas virgens – tudo isso por que julgava estar vivendo o limiar do fim do mundo. É claro que jamais pode ser descartada a hipótese de que tivesse problemas sexuais.

Assim como Paulo, o meu menino foi pretensioso demais. Só que longe do mundo pop das Escrituras. Aliás, tudo em mim me parece incipiente. Sou uma mola encolhida, como na canção do Lulu Santos. Tenho muito a dar, mas estou preso na cápsula da pobreza monetária, que restringe todos os hippies de quarto e sala como eu. Revolucionários que não dão as caras na rua. Que mantém seu empreguinho medíocre por temer os riscos. A paternidade é o fim de qualquer revolução. Tenho visto poetas, músicos, almas sensíveis escondidas atrás de uma obediente farda de policial militar. Não existe revolução poética ou musical com a barriga vazia; a nossa barriga e as das nossas crianças. Mudar a sociedade, mesmo que num campo cultural de superfície, não me parece tarefa fácil. Qual o seu plano, ratinho cientista do desenho animado? “– Dominar o mundo”. E o seu, escrevedor habitante de casa alugada? “– Publicar um livro de altíssimo nível”. Deixa pra lá...

Mas penso que sou merecedor de perdão. Assim como todos merecem. Paulo merece por sua enorme pretensão de fundar uma religião universal – até mesmo por que conseguiu. O assassino também merece perdão – desde que dentro da cadeia, obviamente. O adúltero – só não somos todos adúlteros por uma imposição cultural(e, dentro da cultura que criamos, eu diria... muitas vezes, por uma restrição financeira) . O ladrão – atire a primeira pedra quem nunca roubou nada: - Não me diga que não; sei tudo sobre você, Zebedeu. Jesus também merece perdão por não ter conseguido deixar nada por escrito; nenhuma página. Mas não sei se poderei perdoar Moisés por ter quebrado aquelas pedras. Espere aí. Pensando bem, se Jeová o perdoou, dando a ele novas tábuas contendo o decálogo, eu, o cachorro, o verme, a escória cultural humana, acho que devo perdoa-lo também.

Somos todos notoriamente ignorantes sobre a profundidade de qualquer coisa. Tudo o que estudamos e analisamos está sob a lente velha, fosca e tosca da cultura. Isso sem contar o fato comprovado por Einstein de que tudo é relativo, dependendo sempre de pontos de observação. Jamais a cultura humana conseguiu separar completamente poesia e ciência. A cultura é uma puta e somos filhos dela. É uma puta cara que não pode ser paga com o dinheiro de um só homem. Grupos inteiros de homens juntam suas reservas para come-la. E da união dos semens de seus antepassados ela é concebida. Toda culpa é impessoal. A culpa não é da Dadá. Toda a culpa é da cultura.

No epicentro do furacão cultural estou. No turbilhão de dúvidas a rolar no bucho do dragão. E se nenhuma palavra é sincera, sinto-me redimido pela mentira por mim proferida sob as nuvens deste céu de Carl Sagan. Embora busque o máximo de verdade, a mentira subjaz; transcende qualquer análise atual, que estará sempre apoiada na bengala da palavra, sobre o arenoso solo da história dos costumes humanos. E redimo a todas as criaturas.

Redimiria o Diabo?

Como não redimir este ser irreal?

Vamos hipotetizar um negócio: digamos que o Diabo bíblico exista. Ele tem mesmo culpa de alguma coisa?

No Héden perdido na Mesopotâmia, na Terra pura, inocente e paradisíaca estão Eva e Adão. Adão, o homem perfeito ( - Perfeito mesmo? ou programado para pecar?). Eles não são os únicos seres inteligentes a habitar a Terra, que também tem como morador Lúcifer, que houvera sido expulso do céu. Motivos de sua expulsão: sua astúcia, inveja e vaidade. Mas, neste momento da história bíblica ele trafega com liberdade entre o céu e a terra paradisíaca. Deus, que sabe, segundo a Bíblia, de todas as coisas, coloca-os, Adão e Lúcifer(este encarnado pela serpente), para confrontar-se. Deus está cansado de saber da astúcia do anjo mau, mas ainda assim nada faz para evitar o encontro entre as duas criaturas(Adão e Lúcifer). Deus bem sabe da influência da mulher sobre o homem e que esta o faria cair em tentação e, ainda assim, prossegue seu plano. Plano? Se houve mesmo um plano Superior, como se pode culpar alguém?

Tentarei, mais ou menos, ordenar esses eventos e, ainda, acrescentar outros conseguintes numa grosseira análise bíblica:

Deus vive no céu com Jesus – seu primogênito – e com seus anjos, criaturas suas. E, entre estes, Lúcifer.

A primeira questão proposta é: -Foi mesmo uma boa idéia Deus ter dado tanta beleza, astúcia, poder e livre arbítrio para Lúcifer, até então sua mais perfeita criação?

Deus inicia, então, a criação de "céus" e Terra. E cria as plantas, os animais e o Homem – Adão, sua nova obra-prima; alguém feito à sua imagem e semelhança. Logo, alguém que não poderia decepcionar como Lúcifer viria a fazer.

Na seqüência, Adão é tentado por Deus – sim, tentado primeiramente por Deus. Explico: se Adão é igual a Deus, é então dotado de inteligência e espírito criador. É claro, espírito criador; senão o homem não passaria de um animal comum ou um boneco inanimado (mas não; o homem torna-se homem quando é dotado de espírito criador, feito de desejo de inventar coisas, movido sempre pela melhoria de vida e pela "curiosidade"). Outro detalhe é que se jamais se soube a aparência física de Deus – pois "nenhum homem jamais viu a Deus"- , a "imagem e semelhança" a que se refere o Gênesis não poderia ser em sentido literal, no aspecto físico e plástico.

Se Deus sabe de tudo, ele sabia o que Adão sabia. Sabia então que Adão era curioso. Então, quando disse a Adão para não comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, ele nada mais fez que tentar o coitado, já sabendo, mais que o próprio Adão de sua curiosidade humana.

Tomemos o pecado original : Adão é tentado pela serpente, que personifica o – ou é o próprio – Diabo. Incentivado por Eva, come a fruta da ciência e torna-se mortal.

Uma pergunta pertinente – e impertinente para os religiosos – é: -Sabia Deus que Adão O iria desobedecer? Se a resposta for "sim, sabia"; isso inocenta a humanidade de pecado, pois o Criador teria insistido em uma criação que não daria certo, passando a ser Ele o primordial pecador. Se a resposta for "não, Deus não sabia dos eventos que se sucederiam com o pecado original"; fica então a idéia de que estamos submetidos a um Deus incapaz de prever acontecimentos. Sobre a questão do livre arbítrio, é provável que eu venha a tratar mais tarde.

Após o pecado original, toda a raça humana se vê imersa em um mundo de sofrimento e dor. Quando o pecado humano torna-se algo insuportável para Deus, Ele se entristece profundamente e arrepende-se de ter criado o homem. Mas, é mesmo concebível alguém se arrepender de algo que tenha realizado com perfeição? Quando o Gênesis diz "Deus se arrependeu da criação", ou "Deus deplorou ter criado o homem", está dando uma sentença subliminar: - Deus falhou.

Em sua benevolência, o Criador decide dar à humanidade uma nova chance. Com o dilúvio mundial Ele varre a vida da superfície do planeta e concede ao patriarca Noé a oportunidade de juntamente com sua família reconstruir a Terra e torná-la finalmente um paraíso, depois da tentativa frustrada com Adão.

Noé, bom homem - porém dado ao vinho - , não consegue dar a todos os seus filhos uma boa educação. E estes, não tardariam a pecar – muito embora seus filhos não poderiam ser culpados pela nudez do pai embriagado. Teria Deus mais uma vez errado em seus cálculos? Se a resposta for "sim", isso demonstraria que Deus definitivamente não é um bom estrategista. Se a resposta for "não, Deus sabia o que fazia ao destruir a vida na Terra e apostar em Noé para a reconstrução de um novo mundo, que novamente se povoaria com pecadores"; esta opção assinalaria o desejo do Criador ou sua passividade omissa diante da possibilidade de ver o mundo regido pelo pecado e, por conseqüência, cheio de sofrimento e dor. Difícil é, depois disso, pôr a culpa em Satanás ou dizer "Deus é bom". Ao crente resta a desculpa do livre arbítrio para tentar explicar estas questões. Ainda que não venha a ser uma desculpa tão cabal.

Um parênteses relevante:( Porque Deus precisaria testar a fé de Abraão no caso do sacrifício do filho Isaac sendo Ele onisciente? Se Ele sabia do coração se Seu servo Abraão, qual a razão de tal teste?)

Voltando ao Diabo. A essa altura o futuro anjo caído tem livre acesso entre Céu e Terra. Teria ele então corrompido toda a descendência de Noé, assim como tinha feito com Adão? Pobre Diabo; sempre o culpado. Mas nem sempre a Bíblia o culpa. Muitas vezes a culpa é atribuída ao homem mesmo – "de que se queixa o homem?: de sua própria concupiscência".

O livro de Jó. Aqui Deus usa Lúcifer. Em seu trono, Ele recebe o Diabo e, com bastante intimidade, os dois conversam sobre a vida de Jó. Lúcifer propõe uma espécie de aposta com Deus, que é aceita. O Diabo aposta que se Jó perder todos os seus bens, assim como seu rebanho e sua família inteira, ele, Jó, irá negar o seu Deus. Deus aposta que não. Aposta feita, Deus permite que o Diabo tome tudo de Jó. Então, tudo acontece, desta vez, como Deus esperava: Jó perde tudo, até seus entes queridos, e não deixa de ser fiel a Jeová. Então Deus vence a aposta e, com isso, prova ao Diabo que podem existir homens de inabalável fé. Em retribuição, Deus recompensa Jó com o dobro de tudo o que perdera. Jô, ao que parece, conclui que valeu a pena perseverar na fé.

Mas que tipo de intimidade é essa que Deus e o Diabo mantém, a ponto de firmarem uma aposta? Que importância tinha para Deus a vida da família de Jó? Será que é costumeiro Deus submeter as pessoas a este tipo de situação? Se for; isso se enquadra no conceito que toda a humanidade formou sobre o que venha ser infinita bondade?

A barbárie cometida contra Jó, em que ele e toda a sua vida viraram brinquedos de um Deus teatral, não é a única do Antigo Testamento. Livros como Levítico e Deuteronômio trazem leis bárbaras, ditadas por Deus a Moisés – "E disse o Senhor a Moisés..." é a frase que inicia muitos capítulos e versículos. Os mandamentos citados são centenas; de certo, mais de trezentos só no Pentateuco. Entre os Dez Mandamentos – que são apenas os dez mais populares dentre as centenas de leis que existem espalhadas pelos livros do Antigo Testamento – está o mandamento "não matarás". Mas o próprio Deus instituiu a pena de morte. Existe na Bíblia lei para matar apedrejada a mulher adúltera – o marido traído atira a primeira pedra - ; há lei para matar quem realizar qualquer trabalho em um dia de sábado; lei para apedrejamento dos filhos preguiçosos, beberrões e comilões, até que morram, para que se "elimine o mal"; entre outras leis escabrosas.

Apesar de todas as atrocidades cometidas com a permissão de Jeová, os crentes ainda acham que o Deus bíblico é bom. É como se tudo de ruim que aconteceu e ainda acontece com os seres humanos durante sua estada no planeta não tivesse importância – o que vale é o que virá a acontecer de bom na vida futura e eterna, no paraíso onde Deus porá os justos (no caso, os cristãos).

(Não é nada fácil resumir em poucas linhas os eventos bíblicos. Tampouco me proponho a tal tarefa. Essa dissertação ensaística nada acadêmica, mas muito honesta e sincera – apesar de uma aparentemente maldosa ironia da qual nenhum de nós está livre – , é fruto de uma superficial, porém sincera e bem intencionada, investigação acerca de fenômenos bíblicos no que concerne à existência ou não de uma onipotência e onisciência Divina. E como isso é base para a fé cristã, eu não acho que sejam palavras irrelevantes as que escrevo.)

Tratemos agora do Novo Testamento.

Jesus. Ou Yeshua para os arqueólogos e filólogos. O que eu penso de Jesus? Vou dizer. Mas vou dizer minha opinião pessoal sem qualquer base científica além das coisas que li em jornais e revistas – que trazem também bastante ciência, claro. É a opinião que venho construindo e que, obviamente, não está consolidada. Mas tenho que narrar, primeiramente, como se estivesse resumindo a história contada pela Bíblia, da forma como tenho feito nos parágrafos anteriores. Não quero fugir, por enquanto, a esse padrão. Depois eu digo, de forma mais direta, o que eu penso de verdade; conclusivamente.

Deus envia para a Terra o seu filho primogênito. Isto faz parte de seu plano final para varrer o mal do mundo e derrotar, finalmente, o Diabo. Jesus poderia ter sido considerado apenas mais um profeta; apenas mais um candidato a messias como diversos outros de sua época, não fossem alguns detalhes: tinha em sua árvore genealógica ancestrais como o patriarca Abraão e o Rei Davi – embora, curiosamente, estes grandes vultos da história hebraica sejam ancestrais diretos de José, seu "padrasto", não de sua mãe Maria;

nascera em Belém, a mesma cidade natal de Davi, conforme profecia sobre o nascimento do vindouro messias; realizou milagres até então jamais vistos, incluindo ressurreições; optou por um ministério pacífico em vez de uma invencível, inviável e impraticável luta armada contra Roma, como muitos desejavam e até mesmo tentaram em vão; com sua oratória exemplar, conquistou muitos adeptos, inclusive os que se tornaram seus apóstolos pregadores; teve uma morte espetacular – não pela crucificação, que era corriqueira na época, mas pela ressurreição de seu corpo, que sumiu do túmulo e, segundo testemunhas, ascendeu ao céu (nos instantes finais de sua vida, na cruz prestes a morrer, o céu de Jerusalém escureceu e houve tremores de terra que fizeram com que as sepulturas dos "santos" rachassem. Eles levantaram de seus sepulcros e foram vistos andando por toda a cidade); teve grandes colaboradores mesmo depois de morto, como Pedro e Paulo; este segundo, cidadão romano de grande prestígio e influência junto ao império – sua conversão, fez com que muitos cidadãos romanos prestassem atenção à nova doutrina. Antes de morrer, deixou inúmeros escritos pregando a doutrina de Cristo. Dentre elas as "cartas" que viriam a ser escolhidas pela futura convertida Roma para constar no cânone do Novo Testamento.

Questiona-se: se Jesus foi concebido sem a participação de pai biológico, por que motivo seria incluído, por Mateus, na descendência da genealogia de José, a ponto de ser chamado de "filho de Davi"(Davi, ancestral de José)? Faz parecer que foi mais interessante para Jesus divulgar a seus conterrâneos que tinha uma descendência nobre, que vinha de uma família de reis e patriarcas, do que enfatizar o fato de não ter sido concebido com o sêmen de José (fato, obviamente, impossível segundo as leis naturais e que só surte efeito diante de uma postura de fé – como se faz necessário que ocorra com toda a interpretação religiosa da Bíblia). A idéia da ancestralidade de uma família de notáveis o tornaria mais respeitável do que insistir na propagação da idéia de uma concepção mágica entre o Espírito de Deus e a moça Maria – algo que rapidamente seria tomado pelo povo como piada ou blasfêmia(isto poderia encurtar seus dias para efetuar sua missão; ou, executar seu plano). É claro que nos últimos anos de seu ministério ele seria mesmo acusado de blasfemador, mas em algumas situações ele evitava motivos para esta acusação; como fez quando disse que não veio modificar nenhum dos mandamentos deixados por Moisés – todo cristão sabe que, na verdade, Jesus pretendeu erradicar as antigas leis, sim.

Há especulações de arqueólogos e exegetas bíblicos mais ousados de que a idéia do nascimento em Belém teria sido forjada para que se cumprisse a profecia que diz que o messias nasceria na mesma cidade do rei Davi. Aliás, muitos eventos podem ter sido mesmo tramados para coincidirem com profecias do Antigo Testamento. Coisas como "a entrada em Jerusalém montado em um burrinho" (uma das profecias cumpridas) não seriam tarefas difíceis de realizar.

Jesus morre e ressuscita. Seu corpo – sua carne – ressuscita. Ele caminha pelas ruas com seu corpo físico. Físico mesmo; tanto que Tomé o toca com a mão. Depois de encontrar-se com os discípulos ele sobe ao céu. Ora, que céu? O paraíso, ao lado do Pai? Mas com seu corpo físico de homem? Um homem com seu corpo de carne e osso ficar sentado ao lado do Todo-Poderoso seria algo concebível mesmo para um crente? E a bíblia não diz que Jesus ascendeu em espírito – foi seu corpo mesmo, segundo o relato bíblico, que levantou do túmulo e subiu ao céu.

Consumada a morte de Jesus; Deus, após uma batalha liderada por seu anjo Miguel, expulsa definitivamente do céu o oponente Lúcifer, que deixa de ter livre acesso entre céu e Terra. Ele, Lúcifer – agora Satanás – passa a residir na Terra junto com seus anjos do mal, para os "ais" dos habitantes do planeta. Aqui, Satanás inferniza, a partir de então, como nunca antes, a vida dos homens, até que o plano de Deus de resgatar os eleitos seja concretizado.

Pronto. Bíblia resumida.

Precisamos considerar: quando Deus deu livre arbítrio para Adão, sabia, de antemão, que o pobre homem iria pecar e, com isso, desgraçar toda a humanidade posterior(isto se Deus sabe de tudo: a Bíblia declara que sim). Sendo assim, esta liberdade dada a Adão pode mesmo ser considerada uma atitude de amor? Alguém daria liberdade para um filho curioso arriscar sua vida? E ainda sabendo que ele iria de fato morrer? Ou a curiosidade de Adão seria um tipo de "defeito de fabricação" na obra-prima do Criador? Culpar a serpente é fácil demais – mas não dá pra imaginar que a serpente pudesse ser bem sucedida se Adão fosse um ser predestinado à perfeição. Agora, suponhamos que Adão não tenha sido predestinado à perfeição, mas sim ao erro. De quem seria o erro? De Adão, a criatura fraca? Ou do Criador que o predestinou a falhar? Parece que a Bíblia depõe contra o mesmo Deus a quem ensina- nos a adorar.

A questão do mal – a Bíblia relata como sendo manifestações do mal, e conseqüências do pecado original, coisas "ruins" como o trabalho como gerador de alimento; a dor; e a morte. "Comer do suor de seu rosto" é um dos castigos impostos pelo Criador a Adão – como podemos imaginar uma vida sem trabalhar a terra e plantar para se colher? E quanto à dor? É ruim sentir dor: depende. Depende de como se entende a dor. Se pensarmos na dor como uma resposta físico-sensitiva a um estímulo cerebral que nos orienta como controlar nossos movimentos através do tato, ela deixará de ser considerada uma praga sobre os homens – ao contrário, será tida como uma grande bênção; um dispositivo que impede que nos firamos constantemente. Mas a morte, esta jamais poderá ser encarada como bênção. Mas é uma lei natural irrefutável. Acontece com todos; ninguém está sozinho nessa. A morte está presente não só entre os homens; não só entre os animais; os vegetais morrem. Até os astros e seus sistemas têm seu início e seu ocaso, transformando-se sempre em novas coisas. É melhor pensarmos que somos parte de um inimaginavelmente grande sistema de coisas lindas e mutáveis do que ficarmos chorando por não possuirmos uma vida eterna ou mendigando uma vaga em um hipotético paraíso onde não haverá trabalho, nem dor, nem morte – em suma: não haverá vida como a concebemos.

* * *

Caberia-me agora, após ter escrito tantas coisas que podem ser consideradas hereges, um pedido de desculpas. É claro que soariam hipócritas tais desculpas. Pois, se desejo de fato desculpar-me, que retire eu então as palavras; que deixe de querer publicá-las, não é mesmo? Mas o fato é que não sinto, no momento, nada que se pareça com arrependimento no tocante a elas. Tenho, isto sim, um receio de que elas sejam mal interpretadas ou mal absorvidas por pessoas de mente fraca – pessoas que ainda pertencem àquele grupo dos que só respeitam quando temem, e que são capazes de praticar crimes se duvidarem da existência de um Deus punidor ou de um Inferno.

Sei também que um livro nem sempre é apenas um livro: ele pode ser uma semente. O que posso dizer é que desejo, do fundo de minha alma, que meus escritos sejam sementes do bem. Pois, embora não sagrados, são sinceros e puros. E se não exaltam a sacralidade, não é porque eu não dê valor a coisas sagradas – eu mesmo posso ter muitas, às quais devo reverenciar sem ter plena consciência – , mas deve-se, sim, ao simples fato de não ser esta a minha proposta neste instante de minha história. Reconheço a importância dos ritos para a psicologia humana, e não gosto de ser irônico quando me refiro a eles. Se trato assuntos desta categoria com o uso de ironia, é porque está em mim o impulso de dar algum grau à descrição das coisas, que nunca são neutras aos meus olhos: sempre haverá uma visão irônica, poética, melancólica, solene, etc. Só não vejo como parte do meu ato de falar ou escrever, o sarcasmo. Ironia, sim. Não sarcasmo.

Mas pretensão não me falta. E agora mesmo, acabei de pensar em um tema que serviria para o desenvolvimento de uma teoria: "a religião sofrerá profundas mudanças nas próximas décadas. No próximo século provavelmente ela nem exista mais. Mas a humanidade terá extraído das religiões o que for de mais importante, mais prático na busca do bem estar coletivo, e que também seja menos conflituoso com as vindouras verdades científicas". Isso foi uma profecia (ou o que os antigos chamariam de profecia). De qualquer forma, é pretensioso – ou tolo, sendo o tema já tão batido.