ANÁLISE DO CONTO A CAUSA SECRETA DE MACHADO DE ASSIS - EM FILME E EM QUADRINHOS

ESTUDO COMPARADO PELO DIFERENCIAL DO CONTO A CAUSA SECRETA DE MACHADO DE ASSIS COM O FILME DE SÉRGIO BIANCHI E A HISTÓRIA EM QUADRINHOS DE FRANCISCO S. VILACHÃ

Maurício Cardoso Garcia

“Em nossa época ameaçada pela dominação de uma linguagem única

é bom lembrar que possuímos um antídoto contra esse perigo:

a escrita literária.”

Ute Heidmann

O corpus escolhido heuristicamente para nossa pesquisa é o conto A Causa Secreta de Machado de Assis; obra esta que teve adaptações para filmes, minisséries e versões em quadrinhos. Assim sendo, este corpus escolhido sofrerá três abordagens diferenciais por se tratarem também de corpus totalmente distintos, visto que, mesmo tendo como referência um mesmo corpus distinguem-se todos de suas abordagens peculiares entre si. Certamente, não iremos tratar aqui da literatura pela literatura em si, mas de outros tipos de discursos possíveis de serem estudados independentemente de regras ou formas acabadas, posto que o próprio corpus por si só transcende e se justifica em recursos e elementos para sua análise. Pois, como diz Todorov:

“Cada tipo de discurso qualificado habitualmente como literário tem ‘parentes’ não literários que lhes são mais próximos que qualquer outro tipo de discurso ‘literário’”.

É possível se trabalhar na escolha de um corpus para se desenvolver um estudo comparado diferencial mesmo dentro do contexto literário e ainda assim pode se negar a hierarquização e quebrar os paradigmas estabelecidos pelo que se diz universalizante. Agora, sintamos a comparação diferencial ao relacionarmos esse corpus com outros gêneros distintos que não contemplem o universo propriamente da literatura e que sejam outros tipos de linguagens? Certamente estaremos literalmente trabalhando a concepção heurística negando qualquer possibilidade de hierarquização. Assim sendo, o nosso objetivo, aqui, de nos distanciarmos de qualquer comparação de igualdade, quando a escolha do corpus, por si só já é a própria negação e se faz diferenciar de convenções estabelecidas, porque estaremos diante de um dado inusitado com características ainda a serem desvendadas e trabalhadas através do exercício da pesquisa como objetivos heurísticos. Eis o que nos diz Ute:

Importa, portanto, incluir nos corpus também outros tipos de textos e outros tipos de discursos além daqueles que possuem já a etiqueta “literária”.

Podemos perceber que a proposta de Ute no que tange a comparação diferencial trata-se basicamente da comparação entre textos especificamente literários para que se engendre o dialogismo intertextual, ou a intertextualidade como ela prefere denominar, do texto e intertexto. Vemos que ela trata de relações diferenciais entre o mesmo gênero. Desta feita, nosso objetivo é por sua vez priorizarmos aqui o dialogismo e a intertextualidade que pode existir entre os gêneros, ou melhor, entre os corpus, haja vista iremos tratar de outros corpus de gêneros diferentes, buscando dialogar tomando como referência o texto literário, que é A Causa Secreta, o conto de Machado de Assis, assim como, mais uma vez, no diz Ute:

Proponho conceber a relação intertextual ainda mais especificamente como uma resposta a uma proposta de sentido de um texto ou de um discurso anterior...

Sabendo-se que existem múltiplas formas de se conceber a escrita da obra literária , esse fato se tornará muito mais vasto, mais livremente de se conceber um dado novo, quando comparamos a obra literária (tendo esta como ponto de partida) com o cinema, a música, o teatro, a revista em quadrinhos e tantos outros gêneros. Parece-nos que o texto Comparação Diferencial Como Abordagem Literária não nos é suficientemente específico para abarcar quão complexo universo de pesquisa, precisar-se-ia de muito mais tempo e dedicação exclusiva para tal fim, que no momento aqui não nos vem ao caso.

Sendo uma comparação diferencial como abordagem não propriamente literária, mas podemos dizer artística, pois trataremos comparativamente, aqui, da literatura, do cinema, do teatro e da história em quadrinhos. Tudo isso, porém, cônscios de que jamais iremos dá conta da complexidade e riquezas de elementos que este corpus contém.

Tomando como referência teórica o estudo do texto A Comparação Diferencial Como Abordagem Literária de Ute Heidmann, procuraremos aqui desenvolver um ensaio através do conto: A Causa Secreta de Machado de Assis buscando através da literatura as linguagens da sétima arte e do quadrinho, conhecido como a nona arte, que fazem um dialogismo intertextual do conto machadiano através do filme de Sérgio Bianchi e da história em quadrinhos de Francisco S. Vilachã, ambos tendo como base o conto: A Causa Secreta.

1 - A Causa Secreta, o conto.

A Causa Secreta é um conto escrito por Machado de Assis, publicado originalmente em 1885 na Gazeta de Notícias e agrupado em 1896 na sua obra intitulada Várias Histórias fazendo parte da quinta coleção de contos que foi levada ao público. É tido como um de seus clássicos mais sombrios, e também um dos que caracterizam o extremo do mal na natureza e na sociedade.

A Causa Secreta machadiana trata-se de um conto onde aparecem três personagens (Maria Luiza, Fortunato e Garcia) após várias conversas se encontram, agora, em silêncio numa sala; Fortunato é enfermeiro e Maria Luiza, sua esposa; Garcia é jovem, recém-formado em medicina, onde este forma parceria com Fortunato e juntos eles abrem uma casa de saúde. Garcia que conheceu Fortunato por acaso, em alguns encontros fortuitos, passa a perceber as supostas habilidades de Fortunato em ajudar ao próximo como enfermeiro e termina se tornando amigo do casal, passando a frequentar a casa todos os dias. Fortunato que é um homem rico e sádico aproveita a amizade de Garcia, que é médico, para dá vazão as suas técnicas de perversidades e crueldades com os animais, como anatomista e fisiologista, isto presenciado muitas vezes por Garcia e Maria Luiza.

2 - A Causa Secreta, a História em Quadrinhos

A História em Quadrinhos ilustrada e roteirizada por Francisco S. Vilachã toma como referência o conto A Causa Secreta de Machado de Assis, onde busca através das ilustrações do ambiente e acima de tudo dos personagens retratar as expressões e sentimentos dos mesmos, isto é, segundo as suas próprias impressões de leitor e de intérprete do texto machadiano; e mesmo fazendo uso das expressões e falas de alguns personagens ou como narrador, consegue dá vida a sua história. Para isso, vejamos a seguir onde e como se deu a origem da história em quadrinhos:

Banda desenhada, BD, história aos quadradinhos ou história em quadrinhos, quadrinhos, gibi, HQ, revistinha é uma forma de arte que conjuga texto e imagens com o objectivo de narrar histórias dos mais variados géneros e estilos. São, em geral, publicadas no formato de revistas, livros ou em tiras publicadas em revistas e jornais. Também é conhecida por arte sequencial e narrativa figurada. A banda desenhada é chamada de "Nona Arte” dando sequência à classificação de Ricciotto Canudo. O termo "arte sequencial" (traduzido do original sequential art), criado pelo desenhista Will Eisner com o fim de definir "o arranjo de fotos ou imagens e palavras para narrar uma história ou dramatizar uma ideia", é comumente utilizado para definir a linguagem usada nesta forma de representação, sendo no entanto um termo mais abrangente já que uma fotonovela e um infográfico jornalístico também podem ser considerados formas de arte sequencial.

O roteirista e desenhista Francisco S. Vilachã identifica o narrador do conto como sendo o próprio escritor Machado de Assis e quanto aos personagens, Fortunato e Garcia, ele retrata as expressões dos seus rostos, mas são os olhos quem investigam, através dos comportamentos de Fortunado extasiado pelas cenas de horror e da dor alheia e os de Garcia aos comportamentos sádicos de Fortunato, isso no segundo encontro que Garcia tem com Fortunato no teatro de S. Januário, vejamos:

“Nos lances dolorosos, a atenção dele redobrava, os olhos... iam avidamente de um personagem a outro...”

“...A tal ponto que o estudante suspeitou haver na peça reminiscências pessoais do vizinho.”

3 - A Causa Secreta, o filme

Em 1994 o cineasta Sérgio Bianchi, estreou um longa metragem com o título do conto, A Causa Secreta de Machado de Assis, interpretado por Ester Góes, Renato Borghi e Cláudia Mello, tendo ganho vários prêmios participando naquele mesmo ano do Festival de Gramado e posteriormente sendo exibido em Nova York. Assim como em 2008, o diretor Julio Bressane e os atores Selton Melo e Alessandra Negrini estreiam A Erva do Rato, porém sendo este baseado também no conto Um Esqueleto também de Machado de Assis. O filme foi exibido no Festival de Veneza. Ainda neste mesmo ano, o conto A Causa Secreta fez parte de um seriado exibido pela rede televisiva Record chamado de 200 Anos de História. A Versátil, produtora de filmes, apresenta pela primeira vez em DVD, A Causa Secreta, filme de Sérgio Bianchi, classificado como drama de 1994 e de 97 min., baseado livremente no conto homônimo de Machado de Assis.

Interpretado por Ester Góes, Renato Borghi e Cláudia Mello, os personagens do filme, pelos quais irá se desenrolar as ações, dirigida por Sérgio Bianchi que através do conto A Causa Secreta transforma o seu filme num grupo de pessoas que irá representar um espetáculo sobre a dor, a dor alheia, numa peça teatral, onde para isso ele cria antes de se ter a peça propriamente dita, os personagens do filme que desenvolvem uma pesquisa sobre a dor humana embasada no conto machadiano, ou seja, vão buscar exemplos do cotidiano para inserir na peça e, assim sendo, eles vão a hospitais, bares, escolas, ruas da capital paulista para registrar essas ações; com isso, Bianchi cria como diretor da peça o ator Renato Borghi, Zé Mauricio, o qual se faz muito rigoroso e tirano com o grupo, que é formado por Cláudio, Paulo, Marisa, Luiz, Carol, Alba, Carlos, Carla, Suely e outro personagem masculino sem nome. Destas pessoas do grupo irão entrar como representantes da peça os personagens do filme, Cláudio com o papel de Fortunato; a atriz Cláudia Mello, Marisa, no filme, e Maria Luiza, na peça, esposa de Fortunado; e Paulo como Garcia, estes são os personagens centrais do conto; temos também ainda Luís que representa Gouveia e Carol que é substituída por Suely que é a que fere Gouveia. Eis, a seguir, o conceito básico do significado cinema:

Cinema (do grego: κίνημα - kinema "movimento") significa a técnica e a arte de fixar e de reproduzir imagens que suscitam impressão de movimento, tal como significa a indústria que produz estas imagens. As obras cinematográficas (mais conhecidas como filmes) são produzidas através da gravação de imagens do mundo com câmeras (câmaras) adequadas, ou pela sua criação utilizando técnicas de animação ou efeitos visuais específicos. Os filmes são assim constituídos por uma série de imagens impressas em determinado suporte, alinhadas em sequência, chamadas fotogramas. Quando essas imagens são projetadas de forma rápida e sucessiva, o espectador tem a ilusão de observar movimento. A cintilação entre os fotogramas não é apercebida devido a um efeito conhecido como persistência da visão: o olho humano retém uma imagem durante uma fração de segundo após a sua fonte ter saído do campo da visão. O espectador tem assim a ilusão de movimento, devido a um efeito psicológico chamado movimento beta.

O diretor Sérgio Bianchi baseia-se livremente no conto A Causa Secreta de Machado de Assis, por isso, que o fato de ser livre percebe-se nitidamente que parece se tratar de uma outra estória. Aqui é justamente onde se nota de cara o diferencial do qual iremos tratar neste estudo. A princípio a primeira cena do filme nos leva a uma referência ao conto machadiano, quando uma malta de capoeiras ataca Gouveia, empregado no arsenal de guerra; no entanto, a cena cinematográfica nos traz à nossa realidade mais próxima, como é a do nordestino que chega a São Paulo e primeira recepção que tem é com a violência; ou seja, é violentamente esfaqueado por um estranho gratuitamente; onde justamente Carlos, ator que irá fazer o papel de Fortunato é quem o recebe nos seus braços o pobre nordestino esfaqueado. E a partir daí, outro diferencial explícito com relação ao conto, pois Sérgio Bianchi, inteligentemente consegue transformar A Causa Secreta machadiana em três abordagens distintas, ou seja, temos o filme propriamente dito, com seus atores e atrizes (Ester Góes, Renato Borghi e Cláudia Mello); em seguida temos os personagens do conto machadiano (Fortunato, Maria Luiza e Garcia) e temos por sua vez, uma outra abordagem que nos surpreende a todos, as personagens do teatro em si, como Cláudio, Paulo, Marisa, Luiz, Carol entre outros. Assim sendo, podemos dizer que temos na obra de Sérgio Bianchi, a literatura, como sendo a narrativa machadiana em sua intitulação; a sétima arte, sendo o filme propriamente dito; e o teatro, na encenação dos personagens, tudo isso, baseado livremente em A Causa Secreta.

Também podemos observar no filme A Erva do Rato, de Júlio Bressane, um imbricamento de dois contos machadiano, que são eles A Causa Secreta mais uma vez e Um Esqueleto, mas isso, sem deixar de se firmar numa obra autêntica, posto que o filme não é adaptação do autor no sentido estrito da palavra, sendo que a personagem sem nome (no papel de Alessandra Negrini), assume por sua vez os dois personagens ao mesmo tempo, de Maria Luiza, no conto A Causa Secreta, e de Luiza, esta que foi morta por Dr. Belém, no conto Um Esqueleto; Bressane como diretor contemporâneo por sua vez procura retratar as mesmas esquizofrenias ou mazelas humanas, onde tudo começa dentro de um cemitério quando ele (Selton Melo), por acidente, conhece ela (Alessandra Negrini); e assim como Machado de Assis com os personagens Fortunato, sádico, e Dr. Belém, ciumento doentio e assassino, em Bressane vemos um homem que também não tem nome (no papel de Selton Mello) assumindo os dois personagens machadiano (Fortunato e Dr. Belém), com fetiche e fissuramento por fotografar a própria mulher nua, ao ponto de mesmo depois de ela morta continua a fazer as mesmas cenas eróticas, agora, com o esqueleto dela. O filme numa visão um tanto surreal podemos aduzir um triângulo amoroso e uma suposta ou explícita traição se inserirmos a figura do rato como personagem dessa tríade, pois em se tratando de arte a possibilidade desse acontecimento não é remota e Bressane não foi ingênuo para que isso seja possivelmente explorado.

4 - Uma resposta literária como processo constante da criação

“Metade do mundo não consegue entender os prazeres da outra metade.”

Narrador do filme A Causa Secreta

No que tange especificamente a este estudo, diremos, no princípio era apenas um conto, em seguida, veio a revista em quadrinhos, depois, o cinema; aí, não se mais pode controlar a infinidade de resposta como processo constante de criação sobre A Causa Secreta. Se o conto machadiano por si só nos dá condições de repensar a vida por vários vieses enquanto leitor, imaginemos nós enquanto roteirista e desenhista e, acima de tudo, enquanto cineasta; é o que podemos identificar na comparação diferencial em estudo.

Nesta comparação diferencial entre esses três gêneros trabalhados que são a sexta arte como a literatura, a sétima arte como o cinema e a nona arte, a história em quadrinhos, - não esqueçamos o teatro como a quinta arte - é notadamente plausível a distinção deste estudo comparado, por isso, faz-se necessário tomar os devidos cuidados para não se enveredar para o campo da prolixidade; haja vista, tem-se a frente um complexo universo de estudo e pesquisa para que se venha atingir realmente seu escopo; porém, aqui, iremos nos ater apenas a comparação diferencial entre os textos de forma bastante superficial, deixando para um outro ensejo, com mais fôlego, esse aprofundamento. Vejamos o que nos diz o texto abaixo:

Se é verdade que a escrita literária advém de um dialogismo fundamental plurilíngue e intercultural e se é verdade que ela nos oferece um poderoso antídoto contra os perigos do Único e do Mesmo, os estudos literários recebem dela uma nova pertinência e um novo atrativo, porque ela pode nos ensinar alguma coisa de fundamental e de vital para nosso futuro.

Sendo o conto machadiano A Causa Secreta como reposta do processo de criação para a revista em quadrinhos de Vilachã e para o filme de Bianchi, ambos com estilos próprios para evolução da mesma ideia machadiana é perceptivelmente notória a livre interpretação que ambos fazem do conto machadiano, para dar autenticidade a sua criação. Enquanto Vilachã busca retratar através de ilustrações e de narrações retiradas do próprio conto A Causa Secreta, ele também nos mostrar expressões e ações das personagens, artisticamente bem retratada nas faces e nos olhares de cada figura. Vilachã retrata em sua revista o próprio Machado de Assis como o narrador da história; percebemos que Vilachã se faz fiel aos diálogos existentes no texto machadiano, bem como, as narrativas chaves, isto sem desmerecer a sua intenção criativa e interpretativa dando vida e expressividade a cada personagem machadiana através das suas figuras, ambientação e cenários segundo a sua interpretação enquanto leitor e ilustrador para sua revista em quadrinhos.

O enredo do conto machadiano é quão bem assimilado por Vilachã, em sua revista em quadrinhos, que qualquer leitor desatento passa a assimilar com mais nitidez o que se deixou de se perceber numa leitura desinteressada ou imposta numa sala de aula de ensino médio, mormente hoje em que se tem muito mais priorizado a imagem em detrimento da leitura textual literária, ainda mais por se tratar de imagem sem movimento, ou seja, sequencial, em que se pode voltar à página na hora que quiser para se certificar da história e se ter uma compreensão mais apurada da mesma.

Vejamos algumas expressões narrativas da HQ, em que Vilachã nos mostra com bastante clareza:

...examinava tudo ... (Aqui a expressão de Fortunato e seu olhar são autênticos. Percebe-se a atenção da figura através de seus olhos e fisionomia centrados no documento); ...ordenava tudo... (Como aqui também o dedo indicador de Fortunato em riste dando ordem para os empregados); ...compras e caldos... ...drogas... ...e contas.... (As figuras por si só expressam o sentido da ação que dispensaria qualquer informação legendada).

Certamente o conto não nos mostra nada disso que o ilustrador nos apresenta nas suas figuras; eis aqui o diferencial, portanto, que se tem entre o conto “narrado” e a revista “ilustrada”.

Se os textos intraduzíveis obrigam os tradutores a inventar outra forma de dizer, como nos mostra Ute; certamente o cineasta engendra a sua obra prima mesmo partindo de algum referencial. É o que podemos observar na obra cinematográfica de Bianchi que tem como origem o conto machadiano A Causa Secreta.

A sétima arte tem o poder extraordinário de nos fazer crer que nossos próprios sonhos e imaginações são possíveis de serem retratadas de forma quão próxima à nossa realidade que se chega a ver coisas absurdas feitas por pessoas reais, como são os muitos exemplos de extermínio em massa dentro da própria sala de cinema após determinadas sessões em que se tem como foco a violência; diga-se de passagem, essa atitude, geralmente, advém de pessoas desequilibradas mentalmente, no entanto, não se exime o fato de se perceber o que se há de real em tudo isso. Pois, ao se ler o conto machadiano, é possível imaginarmos, logo em primeiro momento, no início da história, as expressões de cada personagem após uma sessão de tortura que é feita por Fortunato com um rato: Maria Luiza, a expressão de medo e de horror; a de Garcia de repugnância e a de Fortunato de prazer e satisfação. É justamente isso que o diretor Bianchi procura nos mostrar com os seus personagens cinematográfico, só que ele vai além do nosso imaginário quando cria o personagem Zé Maurício, este quem dirige a peça que vai encenar A Causa Secreta. Zé Mauricio se faz um diretor perfeccionista onde procura tirar dos atores e atrizes o máximo deles para apresentar autenticidade nas expressões, que chega a se tornar um homem cruel, sádico, exigente e rigoroso, a ponto de se confundir com o próprio Fortunato, o personagem machadiano; (a cena em que Maria Luiza, representada pela atriz Cláudia Mello, e personagem Marisa, está a bordar na sala, logo no início do conto). Nesta cena Zé Maurício, representado pelo ator Renato Borghi, exige de Marisa não menos que 10 vezes a ação de expressão de constrangimento, para que ela se finja constrangida para assim atingir a perfeição da personagem, Maria Luiza.

Há na arte cinematográfica de Bianchi muito mais do que se pode ler no conto machadiano e do que se ver na HQ de Vilachã, porque o filme consegue abranger todos esses campos possíveis e imaginários que a narrativa e a ilustração são capazes de nos instigar ou pensar a seu respeito, enquanto o cinema nos aproxima mais ainda da realidade imaginativa. Seja por isso a produção cinematográfica se tornar muitas vezes muito cara para que seja produzida, onde isso também é mostrado no próprio filme quando Zé Mauricio enfrenta uma luta descomunal para conseguir dinheiro para produção da peça diante a grande burocracia proporcionada pelos órgãos públicos responsáveis pela cultura. Vemos aqui pontos que distanciam da obra literária machadiana, caracterizando assim, o diferencial comparativo que buscamos aqui.

Podemos destacar também os comportamentos dos personagens diante várias situações em que eles (personagens) são abordados por crianças nas ruas, nos bares, pedindo dinheiro ou alimento; comportamentos esses de extremo desprezo que dão para as crianças, onde sempre remetem e alegam que eles (atores e atrizes) não têm culpa e que a culpa é do governo; assim sendo, apontam o descaso das autoridades com os hospitais públicos; vemos, portanto uma denúncia social generalizada em que o enfoque é a educação, a saúde e a segurança.

O diferencial entre o conto e o filme se dá por vários vieses, a ponto de se haver um distanciamento deste daquele outro; digamos um distanciamento com o embasamento que se dá no início e no fim do filme como o próprio conto machadiano. Mas o diferencial explícito que temos é que, enquanto o conto machadiano inicia-se com os três personagens centrais da história; o filme por sua vez, encerra justamente com os mesmos três personagens, só que, na encenação da peça e no fechamento das cortinas do teatro, diga-se de passagem, no filme. Percebemos com isso quanta riqueza de diferencial a arte cinematográfica é capaz de proporcionar a um pesquisador atento e exigente.

Sérgio Bianchi busca, com a sua arte, através de A Causa Secreta fazer uma denúncia social que vai desde a produção do próprio filme, apresentando a burocracia e as dificuldades de se arranjar um patrocinador, as pessoas envolvidas, isso sem contar com os problemas pessoais de cada um, até a elaboração, ensaios e desfecho da peça. São tantos problemas que o filme aponta que o personagem Zé Maurício, diretor da peça, é caracterizado como sádico, setentão, ultrapassado, sectário e louco; ou seja, quase as mesmas características do próprio Fortunato, porém Zé Maurício é um perfeccionista que procura tirar o máximo que pode dos atores e das atrizes que ele dirige; isso se dá na cena do teatro em que Fortunato estar a torturar o rato, onde atores e atrizes estão nas poltronas servindo de plateia, no ensaio da peça, quando Carol a qual faz o papel daquele que fere Luiz, este que faz o papel de Gouveia; aqui, percebemos que, enquanto Maria Luiza no conto machadiano é uma mulher extremamente submissa e tomada pelo medo, diante as crueldades do marido Fortunato que se deleita com a dor alheia; Carol, mesmo sendo mulher, não permite o perfeccionismo e sectarismo de Zé Mauricio, então reage explosivamente e termina abandonando a peça por perceber no diretor as crueldades com ela e com os seus pares; e denuncia que todos são cruéis uns com os outros. Eis aqui mais um diferencial em que podemos apontar dentro da obra bianchiana.

É possível trabalharmos vários vieses na obra cinematográfica de Sérgio Bianchi, visto que ela jamais se esgotará diante de tanta riqueza de detalhes, porém acreditamos que para enfocar alguns diferenciais comparativos entre o conto e este, neste ensaio, pudemos identificar aqui um filão para que seja trabalhado como mais fôlego numa pesquisa com mais aprofundamento.

E mesmo que já tenhamos desvendado a causa secreta do conto machadiano, resta-nos ainda nos certificarmos quais são as causas secretas do filme bianchiano e da HQ vilachãiano; possivelmente, essas respostas caracterizarão por si mesmas o diferencial nesse estudo comparado.

5 – Referências:

ADAM, J. -M.; HEIDMANN, U.; MAINGUENEAU, D. et. AL. Análise textuais e discursivas: metodologia e aplicação. São Paulo: Cortez, 2010.

ADAM, J. -M.; HEIDMANN, U. (Eds.) Sciences Du texte et analyse de discours. Lauzane: UNIL, 2005.

ADORNO, T. W. Notas de literatura 1. São Paulo: Duas cidades, Ed. 34, 2003.

AMOSSY, R.; MAINGUENEAU, D. (Dirs). L’analyse Du discours dans les etudes littéraires. Toulouse: Presses Universitaires du Mirail, 2003.

BARROS, A. ; SANTAELLA, L. Mídias e artes: os desafios da arte no início do século XXI. São Paulo: Unimarco, 2002.

BARTHES, R. O óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

BLANCHOT, M. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

DELEUZE, G. Crítica e clínica. São Paulo: Ed. 34, 1997.

DIDI-HUBERMAN, G. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998.

FOUCAULT, M. O pensamento do exterior. São Paulo: Princípio, 1990.

GRACQ, J. La littérature à l’estomac. Paris: José Corti, 1950.

HEIDMANN, U; ADAM, J. –M. Textualité et intertextualité des contes. Paris: Classiques Garnier, 2010.

HEIDMANN, U. (Dir.) Poétiques compares dês mythes. Lausanne: UNIL, 2003.

MAINGUENEAU, D. Discurso literário. São Paulo: Contexto, 2006.

MAINGUENEAU, D. Contre Saint Proust ou la fin de la littérature. Paris: Belin, 2006.

MELLO, R. (Org.) Análise do discurso e literatura. Belo Horizonte: NAD | FALE | UFMG, 2005.

SANTAELLA, L. Semiótica aplicada. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2002.

SANTAELLA, L. Cultura das mídias. São Paulo: Experimento, 1996.

TATIT, L. Análise semiótica através das letras. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.

6 - Referências Complementares:

ASSIS, Machado de. Literatura Brasileira em quadrinhos. A causa secreta. Escala Educacional. Casa Verde, São Paulo.

http://pt.wikipedia.org/wiki/A_Causa_Secreta#cite_note-7 http://pt.wikipedia.org/wiki/Banda_desenhada

http://pt.wikipedia.org/wiki/Cinema

http://www.adorocinema.com/filmes/filme-130295/

http://www.revistacinetica.com.br/ervafabio.htm

Versátil, produtora de filmes, DVD, A Causa Secreta, Sérgio Bianchi, baseado livremente no conto homônimo de Machado de Assis. 97 min., drama, 1994.