O FIGURINO INVISÍVEL

A interpretação naturalista é a maneira com que determinados veículos se apropriam para elaborar uma estética onde o espectador tem uma absorção palatável do objeto, ou seja, da encenação; mas a interpretação deve transcender essa proposta, deve tornar incomum a sua personagem (entendendo que há uma contraposição entre o incomum e o lugar-comum) a ponto de transformar seu ser quase a uma condição ’surreal’ se necessário; a interpretação normal em contraponto com interpretação ‘surreal’ provoca uma contradição entre as encenações, esta figura que será estilizada deverá provocar situações estranhas, no entanto, dará ao espetáculo, uma condição mais verossímil como arte, menos artificial ou superficial, a interpretação estilizada de fato se relaciona com as figuras de linguagem tanto quanto ao ready made, ou seja, a metáfora do ser = ser como a pedra; a metonímia do ser todo cabelos, o hábito de sempre gesticular repetindo o sentido das palavras como o pleonasmo, uma intenção contida e suavizada das palavras e ações como no eufemismo; a interrupção brusca por outros assuntos como o anacoluto; o ator pode dar respostas com gritos ou gemidos, produzindo apenas sons fazendo parecer como as onomatopeias.

Essas ideias se incluem com o conceito que elaboro de figurino invisível, e virá evocar o sentido de figurino como metáfora, ou seja, a imagem do bombeiro que não necessariamente age como um bombeiro (como pode agir um bombeiro?), porque ele pode aspirar a ser um policial ou a ser um barco (a figura viaja como um barco e está longe), pois o figurino invisível é a interpretação da subjetividade do ser e não um clichê da personagem que faz parecer que todas as figuras interpretadas são moldadas da mesma maneira tanto na forma quanto no conteúdo.

A presença do artista no palco ou em qualquer situação deve promover um tipo de comoção que não é necessariamente uma catarse ou uma identificação imediata como acontece quando se é absorvido pelas atitudes do herói e seus feitos morais, mas uma provocação, um incômodo, uma reflexão a respeito daquilo que acabou de ver, mesmo que de certa maneira provoque um pesadelo, o objeto da arte deve estar sujeito ao pensamento em primeiro lugar e depois ao entretenimento, pois a arte deve ser configuradora e reformuladora do espírito do artista e do espectador respeitando a unidade sentida de cada um desses pela imagem e os sons únicos na percepção destes.

O fato de o ator estar representando quer dizer que necessariamente ele está promovendo uma interpretação particularizada, pois, a personagem que representa sofre influência do seu próprio imaginário, as referências que tem de seu próprio aprendizado no âmbito daquilo que troca com o que é externo a si e o recorte que faz daquilo que vê.

É certamente também impossível fazer uma construção idêntica ao objeto representado e ao fazê-lo, ideias e contextos já são diferentes.

A representação quando leva em consideração o fato de que cada pessoa aspira a uma determinada situação ou condição particular e que cada um é diferente do outro, ao tentar representá-lo o ator se aproxima da ideia de naturalismo, ou seja, tentar se servir das particularidades do objeto representado e, no entanto, o naturalismo paradoxalmente servirá de argumento para a estilização da personagem á medida que rejeita os caráteres de lugar-comum.

Bertold Brecht, dramaturgo alemão, descreve em “escritos sobre o teatro” que um ator chinês o inspirou a elaborar as suas teorias, este ator, chamado: Mei Lan-Fang, representava personagens femininos sem os imitar, ele se apropriava de movimentos femininos quando se tornava necessário demonstrar determinada personagem, ou seja, não há necessidade de uma interpretação nos moldes de um jargão, já que essencialmente uma parcela daquele corpo ativo de mulher é suficiente para representa-la.

É importante frisar que os elementos descontextualizados e recontextualizados como acontecem com os ready mades criados por Marcel Duchamp, objetos que reconfiguram a definição de um elemento e provocam uma oscilação de sentidos são os que dão o caráter poético à arte e que a pura representação como entretenimento leva-a a ser um objeto artesanal, onde só é possível ou só se quer dar trato à forma na possível expectativa de um aplauso.

Antonin Artaud, dramaturgo francês, contemporâneo dos dadaístas e surrealistas propõe um redimensionamento das ações onde as expressões corporais e vocais ganham valor intelectual e sensível passível de ser interpretado, o movimento do corpo, sua sonoridade e sua plasticidade tanto quanto as experiências provocadas por gritos e onomatopeias que como disse, devem ser objetos apropriados, podem reproduzir narrativas da mesma maneira que as palavras, por ele o expectador permanece como integrante do processo de construção da encenação onde este expectador não se posiciona de forma passiva a digerir confortavelmente o espetáculo, este estranhamento incomodo promovido pelo autor reelabora o modo de ver e consequentemente o diálogo intelectual entre ambos.

O ator que interpreta e tem dificuldade de estilizar durante seu processo criativo, pode cair nos recursos fáceis, ou seja, na simples narração das falas, no entanto, atores que trabalham com teatro de bonecos, têm como característica mais aparente a caricatura da interpretação; no teatro de bonecos quase sempre o ator está escondido por um tecido chamado empanada ou ocultado por roupas pretas e uma iluminação de foco e a visualização é deslocada para esse boneco, assim, as impressões sobre ser burlesco caem sobre o boneco como se elas fossem transferidas para ele e qualquer coisa pode ser executada até o nível do bizarro, desde que as pessoas não estejam olhando para o ator e sim para os bonecos, dessa maneira, os fantoches, por exemplo, permitem que o intérprete liberte sua voz e expressão corporal, que as estilize e estas assumem propriedades transferidas que o ator poderia usar em si mesmo.

O bufão, figura grotesca que frequentou as cortes medievais, tinha feições deformadas, às vezes corcundas, às vezes anãs, possuía o direito de tripudiar dos nobres e também do próprio rei, expondo suas fraquezas e incapacidades, porém, justamente por estes seres serem disformes, seus comentários eram tomados como tolices e imediatamente associados à suas figuras.

Compete observar que com o títere será então como assumir a posição do bufão da corte e no seu caráter de nobre, o ator evita ser ridículo, no entanto, exteriora o desejo de se manifestar diferentemente e sem ser repreendido por seus amigos e colegas.

Esta forma de manifestar pode ser justamente a estilização corporal e vocal necessárias à boa interpretação.

R. D. Laing, psicanalista e psiquiatra inglês, em seu livro “O eu dividido” apresenta o termo: esquizoide, traduzindo-o como uma ruptura do relacionamento do indivíduo com o mundo e uma ruptura de relação com seu eu, ou seja, tem dificuldade de sentir-se junto com os outros e de estar à vontade no mundo; Laing narra histórias de David que está sob a apreciação do conceito de self desencarnado, ou seja: o corpo é sentido mais como um objeto entre outros objetos no mundo, do que como cerne do ser do indivíduo, o ser esquizoide sujeito ao self descarnado isola a participação do self verdadeiro de todas as ações e cria uma personagem estilizada para integrar o meio que vive, tal como o ator que transfere características para o boneco que o torna imaginário ou fantasioso e pode ser em si um bufão imitando seres e evocando maneirices.

Laing apresenta o “caso David” com características que o destacam e assim, deste modo, destaca a identidade de uma criatura, o estudo do psiquiatra desenvolve-se partindo de um fato importante na vida do paciente que é a perda de sua mãe, David então passa a assumir o papel de sua mãe nas funções da casa, o que parece normal para o pai.

Durante o seu crescimento David sempre assumiu um comportamento da maneira como conviesse para a mãe: “fui simplesmente o que ela queria”, como um habilidoso ator e distanciando assim, seu verdadeiro eu da personalidade; no momento em que surgiu um vazio após a sua morte, ou seja, perde a referência da pessoa para quem representava, por estar tão familiarizado com o fato de simular, será facilmente seu substituto e sua capacidade de criar personagens será também o fruto do distanciamento entre seu self verdadeiro e sua personalidade, esta, estando vazia possibilita que se configure em qualquer pessoa, no ator tomando como metáfora a designação de desencarnamento, é importante separar o indivíduo da personagem construída como um ser estilizado, e que este ser tenha bastante personificado o seu ser; para David, o isolamento de seu eu verdadeiro não permitia viver as experiências enriquecedoras da troca com o outro, portanto promove o esvaziamento de si até leva-lo ao vácuo, o rompimento evitou o relacionamento criativo com outros, mas a apropriação consciente do ator por essa atitude no palco promove o efeito contrário, será a substituição do ator excessivamente espontâneo e natural que coloca o seu corpo diante da plateia e não no palco, ou seja, ele dignifica o seu ego em contraposição com a personagem do texto, desvalorizando aquilo que é mais importante do que ele: a dramaturgia; o não desejo de estilizar, a não preocupação com a dramaturgia corresponde a negligencia-la e não promover intenções recíprocas negando a circularidade de subjetividades que envolvem o ator, o texto e o público que deseja entrar em contato com a poética.

Este ser então estará oscilando entre pertencer ou não a este mundo, da mesma maneira que um objeto é recontextualizado e vive a experiência diante do expectador de ser e não ser, ao tomar vida, esta forma que está presente evoca em analogia de representação às manifestações culturais de cunho espiritual e seus ritos de passagem, ou seja, um ser sobrenatural na sua manifestação cênica, uma consciência que anima a forma que têm as personagens, tais como o índio que segundo Lux Vidal em seu livro: ”O grafismo indígena”, pinta completamente o corpo porque na sua concepção, não se consideram seres naturais como são os animais com quem convive, a pintura fará referência à pele da lagarta que em seguida se encasula e a cobra que troca de pele remetendo então a uma construção da criatura, da personificação de alguém que adota as características da natureza que não são suas ou religiões de matriz africana ou Kardecista que trazem consigo a concepção de viração onde o corpo (anulando seu self verdadeiro) é um suporte para que outra criatura (falso self) também o personifique; em determinado momento a idéia de negar a personificação verdadeira caracteriza-se claramente pelo termo usado que nomeia o corpo chamado de: aparelho ou cavalo.

Independente do caráter ritual ou religioso é importante frisar o zelo ou cuidado com que as pessoas que participam destes rituais no sentido de fazer aflorar o outro ser.

Partindo desta observação pode-se considerar que se existe naturalismo nas formas de representação teatral, ela se apresenta na veracidade do ser manifesto na personagem.